11.3.02

Chaos


O sono no coletivo era inevitável. Dormir tarde e acordar cedo já era um hábito há muito tempo, mas de uns tempos pra cá, você parecia mais ter aquela boa resistência de antigamente. Você já acha que tem mais é que agradecer a Deus por ter conseguido arranjar um lugar vazio rápido. Sorte, e isso não é muito comum, ainda mais em plena segunda. Você se sentou e nem fez o esforço de tentar impedir suas palpebras de se fecharem. Deixou-se levar pela correnteza do sono, embalado pelo movimento do coletivo.

Pode ter sido algo com que sonhou – o vestígio dele na sua memória tinha a vaga impressão de queda, o que terá sido? – que te fez acordar sobressaltado. O movimento, involuntário, de tentar se agarrar a algo o fez bater na pessoa sentada ao seu lado. O muxoxo da pessoa não te incomoda. E o seu pedido de desculpa não consegue mudar o mau humor do rosto do seu companheiro de assento. "Deve ser a segunda", você pensa. Esse pequeno drama cotidiano te fez esquecer de olhar pela janela. E de notar que você não está onde deveria.

***


O vento naquele terraço não poderia ter outra definição além da mais comum de todas: cortante. O que diabos poderia você estar fazendo no parapeito de um prédio, logo você, que tem pavor de altura? Não se sabe. Apesar da cena inusitada, você se sente estranhamente confortável nesse lugar. A familiaridade com um lugar no qual você nunca esteve, miraculosamente, também não te incomoda. Aliás, nunca esteve mesmo? Sim, esteve. De alguma forma, você SEMPRE esteve aqui. Esse é o seu lugar. Não importa o que as alucinações que você vinha tendo dissessem, que você não era daí, que você era de outro lugar. Você simplesmente não vai admitir isso.
Olhando pra baixo, você nem sente o medo que normalmente deveria estar sentindo. Sua calma o perturba, o deixa desatento, impede que você perceba a aproximação de uma pessoa. Essa pessoa você já viu. Muitas e muitas vezes.

***


"Onde diabos estou?"…Pelo pouco tempo que parecia ter cochilado, era estranho estar em um lugar que você desconhece tão completamente. Que ruas e prédios seriam esses? Não havia a possibilidade de ter pego a condução errada e você sabia de cor todo seu trajeto. Teria o motorista errado o caminho e entrado em algum bairro mais afastado? Pela falta de protestos no coletivo, essa não poderia ser a resposta. Não vendo uma solução, você se levanta e vai falar com o condutor.

– Que linha é essa, amigo?

O número desconhecido dado como resposta deixou você revoltado. Como pudera dar uma mancada dessas? Todo dia pegava o mesmo coletivo. Burrice, pura burrice…ou talvez cansaço. Vinha dormindo pouco ultimamente. Não sabia a razão dessa sua falta de sono, mas relacionava com os sonhos esquisitos que vinha tendo. Eram bizarramente reais, táteis até. Mas eles se desvaneciam completamente assim que você despertava. Mas as sensações que sobravam já eram o necessário para te atemorizar.

Você desce do ônibus em uma rua cujo nome nunca ouvira falar. Mas de alguma forma você a conhece. E quando você desce, um calafrio corre sua espinha: você, definitivamente, conhece o prédio em frente ao ponto.

***


Como você pode estar aí? O que você pretende? Como chegou aqui? Esse é o meu lugar, você não podia estar aqui, NÃO PODIA!!!! Suma!!! Volte de onde veio…

***


O que havia te impelido a entrar no prédio, você não sabe. Só sentiu a força incorruptível te empurrando entrada a dentro, te fazendo chamar o elevador e apertar o último botão. Em segundos você estava no terraço, abrindo a porta e sentindo o intenso vento. Um homem está no parapeito, em pé. Sua tranquilidade é absurda para a posição em que se encontra, um suicida em potencial. Você se imagina naquele lugar e, esquisito, vê que não veria nada demais nisso. Subitamente parece que seu medo de altura nunca existiu. Você até tem vontade de chegar na sacada e ver a vista. Mas sua presença é notada…e última pessoa que você esperava encontrar começa a gritar na sua direção…

***


Você não calculou direito a distância entre seus pés e a sacada. Ao girar o corpo para encarar aquela…aberração, seu precário equilíbrio acaba. A queda, por pior que fosse seu resultado, não devia deixá-lo tão apavorado. Mas você descobre, justo agora, que tem vertigens. O medo te faz perder as forças, rapidamente. Então você resolve ajudar aquele pobre homem que corre o risco de se esborrachar no asfalto. Você tenta agarrar sua mão, mas ao ver sua aproximação, ele simplesmente se joga. A morte, horrível e inevitável, não é o mais chocante. Pior de tudo é ver seu igual, seu espelho, um gêmeo morrendo. O suicida tinha a sua cara.

***

Você sobe no parapeito e fica estático, olhando para baixo. Não existe o medo de altura, nem com o vento forte que quase o empurra para o mesmo destino do seu igual. Você não tem ideia de quanto tempo ficou lá, inerte. Minutos, horas, dias? Não há como saber, nem como entender o que acabara de acontecer. Seria um sonho? Mais um dos sonhos esquisitos que têm tirado sua paz? Você fecha os olhos com força e, ao reabri-los, você está num coletivo. E você não tem ideia de onde está indo.

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