23.10.02

Estrago



Largou o lar sem a menor cerimônia, fugindo com um motoqueiro barbudo e cabeludo, cheio de piercings e tatuagens. Mais que a fuga, o chifre e o abandono de dois filhos pequenos para criar, o que irritou mesmo a parte abandonada foi o mau gosto da parte abandonante. Ele fora trocado por um estereótipo. Pior, um estereótipo de mau gosto, kitsch, brega. Isso, ele nunca perdoaria.

Sempre fora um cara comedido, educado, centrado. Ela era mais doida mesmo, mas não imaginaria nunca que seria a esse ponto. Mas ele devia ter desconfiado. Nas suas últimas discussões, ela sempre procurava leva-lo à loucura, era visível que ela queria que ele perdesse completamente o bom senso e a esbofeteasse. Ele chegou a ameaça-la na última briga.

- Infelizmente, você não é homem pra isso...quem dera fosse!


Ela saiu, trancando a porta do quarto. Ele saiu para arejar as ideias. Esteve mesmo a ponto de cometer o bárbaro ato de espancar uma mulher, a mãe de seus filhos. O que ela queria afinal de contas? Um marido, bom pai de família e responsável, ou um troglodita qualquer, que a esmurrasse pelo menor motivo?

Quando ele voltou, encontrou o armário do quarto meio vazio. Ela tinha ido embora, e levara suas roupas. Deixou um bilhete, explicando que não aguentava mais a monotonia dele, que ele era um chato e que fugira com contínuo do escritório dela, o motoqueiro cabeludo. No final da carta, ela ainda disse que esperava que agora, finalmente, ele tomasse uma atitude de homem.

Não tomou.

O tempo passou, mas não o ódio que ele sentia da mulher foragida. Um dia, sem mais nem menos, completamente sem aviso, ela aparece à porta de casa. Estava bonita, poderia dizer que a temporada com o brutamontes a fizera rejuvenescer.

- Você veio para ficar? - ele perguntou
- Vim ver as crianças. Do jeito que você é palerma, elas poderiam estar morrendo de fome...
- Se você realmente se preocupasse com isso, teria aparecido antes. 3 meses são mais que suficientes para uma criança morrer de fome.
- Sei disso...mas pelo menos comida você conseguiria arrumar, tenho certeza...
- Não preciso das suas ofensas. Responda: você veio pra ficar ou não?
- Não. Vim só ver o estrago que causei à sua vida.

Ele nem se deu ao trabalho de responder. Entrou no quarto e quando voltou, já chegou disparando o revólver que vinha trazendo na mão. Acertou três tiros no peito da mulher.

No chão, ela morria. E apesar da dor que devia estar sentindo, sorria.


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