18.4.07

Reservado


Solange achava incrível como um banheiro de faculdade, lugar de gente estudada e com educação, podia ser tão imundo. Nunca tivera tanto trabalho quanto agora, desde que arranjou esse bico de faxineira. O pior é que, além de pesado, era obrigação chata, uma eterna rotina de esperar as turmas saírem, pegar o material de limpeza e limpar a porcaria “desses meninos mimados”, como costumava dizer. Se soubessem o quanto Solange odiava seu serviço, veriam como fizeram certo em deixa-la com sua faxina apenas depois do fim das aulas. Se visse algum aluno fazendo das suas porcarias enquanto trabalhava, poderia cometer um desatino.

Tinha resolvido começar pela pior parte. Estava em um reservado feminino, limpando a privada e pensando que se tivesse uma filha que deixasse seu banheiro naquele estado, ela ia apanhar muito. Seguia na esfrega e nos devaneios quando ouve a porta se abrir. Se preparava para sair do reservado e dar uma bronca merecida na engraçadinha que pretendia sujar o banheiro fora do horário quando reparou que não era uma menina. Pelo menos, não uma menina sozinha, mas um casal.

Encostou a porta do reservado, deixando uma pequena brecha para espiar. Queria ver se conhecia o casal. Não conseguiu ver os rostos direito. O casal estava agarrado num desespero tal que parecia que não haveria amanhã para ambos. Solange ficou olhando, não sem certa malícia, os dois jovens que se atracavam.

- Pelo menos estão usando o banheiro pra uma coisa boa e não pra emporcalhar tudo - pensou.

Os dois namorados, não tomando conhecimento da vouyeur inesperada, tomavam mais e mais liberdade um com o outro. Solange, que no começo via a cena com algum prazer, começou a se sentir constrangida com os avanços do casal. Por respeito e vergonha - menos o primeiro que o segundo - , Solange fechou a porta do reservado e continuou sua limpeza, fazendo o mínimo de barulho possível.

Solange tentava seguir com seu trabalho mas os ruídos do casal tiravam sua concentração. Era uma mulher um tanto e quanto recatada, não estava acostumada a fazer o que os dois jovens estavam fazendo assim, em um lugar público. Achava até uma sem-vergonhice. Talvez devesse sair e acabar com a festa. Até porque, ela não ia ficar ali escondida esperando os dois exibidos terminarem para continuar sua limpeza. Decidida a interromper os arroubos amorosos do casal, Solange abre novamente a porta do reservado, devagar, para não flagrar nenhuma cena chocante demais. Não adiantou, mas o choque foi inesperado. Ao ver pela fresta na porta os dois agarrados, Solange percebe, horrorizada que o que era para ser uma transa se transformou em outra coisa: um assassinato.

No lugar de beijos, Solange viu o rapaz agarrando a moça por trás e a enforcando com uma espécie de fio. Os braços da garota, ainda se debatendo, lutando pela vida, deixaram Solange congelada. Ela não conseguia esboçar uma reação, além se forçar a não gritar. Apesar de terrificante, não conseguia deixar de ver a cena. Olhou, petrificada, até ver a moça parar de lutar e ser deixada, sem vida, no chão.

Com o desfecho macabro, Solange não se conteve e deu um suspiro. Assustada com a possibilidade de ter sido ouvida, tapou a boca com a mão e fechou a porta do reservado, devagar. As lágrimas corriam pelo seu rosto e ela procurou se controlar o máximo que pudesse. Depois de alguns segundos, ouviu com terror os passos do assassino, vindo em direção ao reservado. Solange tremia. Intimamente, rezava, sem saber se desejava que tudo aquilo não passasse de uma alucinação ou se pedia para que o homem fosse embora sem vê-la. Mas o desespero tomou conta de Solange de vez quando percebeu a porta do reservado sendo aberta, vagarosamente. Encolheu-se na parede, numa mudez cadavérica. Para sua sorte, estava atrás da porta e o homem saiu, sem notar sua presença.

Solange mordia seus lábios até quase sangrar. Chorava em silêncio, mas copiosamente. Esperou um tempo, desejando com todas as suas forças que o criminoso fosse logo embora. Queria abandonar logo aquele lugar, não queria estar no mesmo ambiente onde algo tão cruel tinha ocorrido. Controlou seu choro, viu que não estava mais tremendo e, criando uma coragem que não sabia que tinha, abriu a porta, vagarosamente. Olhou pela fresta da porta e não viu o homem, apenas as pernas estiradas da menina morta. Um leve tremor tomou conta do seu corpo ao vê-la. Colocou a cabeça fora do reservado, olhou para os dois lados e viu que estava sozinha. Apenas a presença inexorável da morta a acompanhava.

Andou com passos vacilantes em direção do corpo. Sentiu uma enorme pena da moça, que tinha morrido sabe-se lá por que razão. Não conseguia ver o rosto da morta, e isso a deixou ainda mais penalizada: além de assassinada, morrera com a face virada para o chão imundo do banheiro. Ainda estava imersa nesses pensamentos quando ouviu um barulho atrás de si. Solange virou-se e viu um homem entrar no banheiro. Não precisaria ter reconhecido as roupas do assassino. Ele vinha na sua direção segurando a mesma corda que tinha usado no pescoço da garota.

Solange não conseguiu sequer gritar. Sua voz tinha sumido, sentiu suas pernas bambas, seria incapaz de qualquer reação. O homem a mirava impiedosamente, sem piscar. Levantou as duas mãos esticando a corda que segurava.

A vontade de viver reacendeu-se em Solange. Ela começou a vasculhar com o olhar algo que pudesse usar como arma. Olhou as paredes do banheiro, o chão, a pia, os outros dois reservados. O homem se aproximava com passos lentos mas seguros e ela não encontrou nada que a ajudasse. Só viu sujeira. As paredes pichadas, o espelho encardido, a pia com manchas de ferrugem, o chão, com respingos e restos de papel. O homem estava cada vez mais perto e Solange viu, diante da morte iminente, que sua vida seria um constante limpar de coisas que ela não sujara, uma servidão à faxina injusta, e pior, para pessoas que não sabiam sequer da sua existência (?). Seus ombros penderam diante dessa realidade inescapável. Desistiu de procurar com o que se defender com olhos cansados.

O homem estava diante de Solange que, parada, não parecia pretender nada. O assassino leva a corda em direção ao pescoço dela e o último ato de Solange foi dar as costas ao homem.

Sem comentários: