13.12.01

Caos




Você acorda, pra variar, às oito da noite, com a cabeça ribombando, as mãos trêmulas e ásperas, um gosto de cabo de guarda–chuva na boca e uma cara que não tem coragem de encarar no espelho. É, você está numa ressaca braba e o que te deprime mais é que ainda é quarta. Você levanta sem ter ideia do que fez na noite passada e só tem certeza de que está em casa por causa do cheiro: uma mistura de roupas sujas de meses, cigarro barato e comida chinesa azeda. O seu catre – aquilo não podia ser chamado de cama – ainda tem umas manchas avermelhadas que você não tem coragem encostar pra tentar identificar o que é. "Ô, vidinha de merda!!!" é o primeiro pensamento coerente que sai da sua cabeça. Você já não lembra qual foi a última vez que viu sua mãe, seu pai ou seus irmãos…aliás, nem lembra há quanto tempo não vê o sol!

Sem a menor paciência pra ficar analisando o porque dessa desistência de levar uma vida decente, você resolve tomar um banho. Isso, claro se você achar uma toalha no meio de tanto lixo. Uma peça de roupa limpa, isso você desistiu de procurar há semanas. Enquanto vai pro banheiro, só uma palavra pulsa em sua mente, como as doloridas veias do seu cérebro: Angélica.

Desde que ela partiu, com aquele sujeito estranho, sua vida acabou. Você tem impresso ainda no seu corpo o último segundo de sua existência, aquela mordida que levou de Angélica, no momento do gozo. Foi a melhor trepada que vocês dois já tiveram, e foi a última. Depois disso, pra que viver? Nem cuidou da mordida, que infeccionou e virou uma chaga purulenta que demorou a sarar (demorou? Quanto tempo faz isso tudo?). A última visão da sua vida foi Angélica partindo, de mãos dadas com aquele sujeito estranho, que você não sabia de onde havia surgido.

Sua pós–vida tem sido estranha. Você não se lembra do que faz a noite, mas com certeza são coisas extenuantes, dado o cansaço com que desmaia no catre. Mas isso é o de menos. Você não lembra de ter tido uma refeição sequer depois de…chega! Não lembrar mais do que faz lhe deixa mais angustiado ainda.

Finalmente você entra no banheiro, tendo o cuidado de abrir o armário para não ver sua repulsiva cara no espelho…Bom, você imagina que esteja repulsiva, pois nem se lembra quando foi que viu o próprio rosto. Você deixa a água quente cair no seu corpo, que estremece diante desse primeiro contato. Vem o relaxamento do corpo, mas não o da mente. O que tem feito te preocupa, mas o que você vai fazer hoje te preocupa mais, agora.

Saindo do banho, você toma a decisão de se alimentar. Do pouco que se digna a olhar do seu corpo, não há nada que te agrade. Você está branco como uma vela e magro como um palito de fósforo. Mesmo sem fome, você vai até a geladeira.

A geladeira conseguia feder mais que seu quarto. Olhando pra uma caixa de leite (que, pelo cheiro, veio com um pedaço de carne podre dentro), você tem uma vaga noção do tempo que deixou de viver. A validade de três anos atrás é algo assustador, ainda mais quando é no momento em que você consegue, finalmente, lembrar de algo. Essa caixa de leite quem trouxe foi a Angélica, na última noite, na última mordida, na última foda que tiveram….

Antes que comece a divagar de novo, você tenta reordenar seus pensamentos. Você sabia que não comia há algum tempo, mas um jejum de três anos é uma total impossibilidade. Dificilmente também teria um lapso tão grande de memória. A confusão começa a ficar total na sua mente…Se ao menos fosse dia, você poderia ia a praia, tomar uma água de coco…O sol…Há quanto tempo você não vê o sol? Há quanto tempo…

Você olha pro lençol no seu catre e corre para pegá-lo. Cheira a mancha, coagulada e asqueirosa. Um cheiro que você conhece e – incrível – lhe desperta o apetite.

A verdade começa a te esbofetear a cara, mas você custa a acreditar…Não, não pode ser…Não a Angélica…Aquele sujeito estranho…a mordida…o sol…Você corre até o banheiro, fecha o armário…E se vê no espelho. Nada.

Antes de desmaiar, um pensamento: "Meus dentes sempre foram tão grandes assim?"

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