23.1.03

Indisposição

Acordou estranhamente indisposto. Não queria levantar da cama, apesar da sua mulher o chamar para o trabalho. Não estava doente. Só não queria levantar da cama.

Não queria levantar da cama para ir pro seu emprego maçante de concursado federal, repartição, carimbos, memorandos, litros de café. Não queria o beijo de despedida dessa mulher que dormia ao seu lado a vinte anos, não queria ouvir “saudadinha, benhê”, aquela frase que ele detestava e ouvia da estranha que dormia a seu lado há tanto tempo toda vez que ele saía de casa para o seu trabalho maçante. Nunca reclamara do seu trabalho maçante, nem da estranha que dividia sua cama, nem do “saudadinha, benhê”, nem de nada. Ele não reclamava nunca. De nada.

Não sabia como tinha virado esse parvo, esse moleirão, que aceitava todas as pancadas que sua vida lhe proporcionava todo dia. Ele era feliz, antes. Não lembra bem até quando ele tinha sido feliz. Fez um esforço mental para se lembrar.

Quando ele era criança, com certeza ele era feliz. Rodar pneu na rua, subir em árvore, soltar pipa. Uma vida simples e comum, de moleque. Ele se esforçou pra se lembrar de cada passagem feliz que teve na vida, desde sua mais tenra idade. Era o que ele podia achar de consolo para essa vida que o havia dominado.

E se lembrou de tudo. Tudo mesmo. Ficou na cama. Não atendeu aos chamados da estranha que vivia com ele. Não foi ao seu trabalho maçante, nem ligou para avisar. Ele estava vivendo de novo. Na sua cabeça apenas. Era o que restava para ele.

E lembrou de cada dia, cada hora, cada momento, com precisão. E assim ficou. Dias, semanas, meses.

Ele ainda estava se lembrando do que tinha vivido com 10 anos de idade e sua barba já estava enorme. Suas articulações estavam travadas. Ele não se levantou da cama. Durante anos. Médicos, espíritas, equipes de TV. Todos foram ver o homem que dormia por anos, sem razão aparente.

Eles não sabiam. A razão era uma só. Ele estava vivendo. De novo.

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