16.2.03

O Flàneur


...O flàneur é alguém abandonado na multidão...- Silvio Medeiros

Gostava de andar pelas ruas do Rio de Janeiro. Não tinha nenhum objetivo claro, apenas caminhava e observava tudo, pessoas, carros, prédios. Não era raro ser encarado, e quem o encarava, não raro o achava louco. Fitava esses com olhos curiosos. Achava que eram loucos. As diferenças entre as construções e as feições das pessoas o fascinavam. O mundo era um caleidoscópio que, parecia, só ele percebia. O cotidiano que para todos era uma prisão, para ele, era seu tesouro.

Nos dias de sol acordava com outra disposição. Tomava seu banho com calma, feliz por antecipação. Teria mais uma manhã de caminhada pelas ruas cariocas. Ia com calma, as vezes, ficava o dia inteiro andando. Não tinha emprego, não tinha compromissos, nem amigos. Morava de favor num quarto nos fundos de um quintal de subúrbio. Ganhava sua vida fazendo bicos, capinava um terreno aqui, carregava umas bolsas ali. Dava para seu sustento. Comia e tinha dinheiro para seu ônibus. Era o que bastava.

Não sentia falta de amigos. A empregada da casa onde tinha seu quartinho era sua única relação com o mundo das pessoas. Ela lhe entregava o café e o pão com manteiga, conversava brevemente sobre o tempo ou algo de muito anormal que houvesse acontecido na vizinhança – “o filho de dona Cida tinha sido preso” ou “a Marlene foi pega no flagra colocando um chifre no Alaor” – e se despediam. Ele não gostava que o papo se estendesse. Queria ir logo para as ruas.

Pegava seu ônibus, ainda lotado de gente indo para o trabalho. Olhava as caras cansadas e irritadas pelo empurra–empurra no ônibus ou pela rotina cansativa dos seus subempregos e não as entendia. Eles tinham a obrigação de ir para a cidade. Era tudo o que ele queria.

Ele sonhava com um emprego de contínuo. Imaginar ficar o dia inteiro pelas ruas e ainda ganhar para isso era tudo o que ele poderia desejar. Certa vez ele até conseguiu uma vaga de boy numa empresa na av. Rio Branco. Durou uma semana. Esquecia-se da hora andando pela cidade. Ia pela rua da Assembleia, seguia pela Carioca, passava pela Praça Tiradentes, entrava na rua do Lavradio e chegava na Lapa. Aí, era sua perdição. Podia seguir para o Passeio Público, ou ir até a Glória. Em um dia que achava estar com mais tempo, chegou a subir para Santa Teresa. Esse exagero foi decisivo. Seu chefe o acusara de ficar nos fliperamas o dia inteiro. Uma injustiça completa.

Depois dessa má fadada experiência, resolveu que sua vida era boa como estava. Tinha como manter seus parcos hábitos e era feliz assim. Tinha suas ruas e isso lhe bastava. Não se importava com o que diziam na sua vizinhança. Para todos, tinha perdido a razão, por isso não se importava em ser um cara sozinho. “Sozinho”, pensava ele, “idiotas! Eu tenho todos comigo e eles nunca me terão”.

Só que algo ocorreu, aos poucos, como um vírus inoculado em seu organismo. Sem perceber, suas ruas estavam ficando iguais. Aos poucos, ele deixou de perceber as variações entre rostos e prédios. Depois de algumas semanas, tudo para ele era igual. Um Rio de Janeiro formado por blocos de concreto de diferentes tamanhos, mas sem relevos e uma população de gêmeos entediados, andando como sonâmbulo pelas suas ruas. Ele esfregava os olhos, desesperado, a procura do seu antigo mundo fragmentado e lindo. Não adiantava. Era tudo uniforme. Tudo igual na sua feiura. Os rostos desconhecidos das pessoas eram seus melhores amigos. Pela primeira vez na sua vida, se sentiu completamente abandonado, só num mundo de feições eternamente conhecidas.

Um dia a empregada foi levar para ele sua média com pão. Encontrou-o chorando, num canto do seu quarto. Ao se aproximar dele para ver o que havia, ao ver seu rosto, deixou o modesto café da manhã ir ao chão. Ele não tinha lágrimas no rosto. O que escorria pela sua face era sangue. Ele havia furado seus olhos.

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