15.1.02

Pródigo


Ele voltou em um dia nublado. Ninguém esperava: a casa estava uma bagunça, não tinha uma comida especial pra ele. Como havia dito, ninguém esperava.

Havia saído de casa depois de uma ríspida discussão com o pai. Jurara nunca mais voltar. E quando o pai, não o levando a sério, disse que ele voltaria com o rabo entre as pernas pra pedir dinheiro em dois dias, ele sumiu. Estava fora há seis anos. Ninguém o esperava.

A mãe adorou a volta dele, claro. Choros, abraços, "como você está/por ande andou?" e o que pede a etiqueta do momento. O tempo o tornara um homem. A saudade tornara a mãe uma velha.

Ele não sabia e nem imaginava o que sua ausência havia provocado. A casa em sua memória agora só existia na foto que havia levado. Sua infância de filho único não poderia ter se passado ali. Não naquela casa sépia, como uma foto desbotada.

A mãe contou que a partida dele acabara com a alegria da casa. Disse-lhe que ele era o orgulho dela e do pai. Os dois esperaram ele voltar durante 2 anos. Rezavam em fronte a uma vela toda noite. Desistiram, quando a esperança se apagou. Hoje, a esperança morta é só um pedestal com parafina derretida.

Ele queria ver o pai. Segundo a mãe, o pai era quem mais tinha sofrido. No final, se julgava o único culpado de tudo. Foi definhando. Como a casa, as velas, a esperança. Estava trancado no quarto fazia dois dias.

Ele entrou no quarto, e o pai estava na cama, mais sépia que a casa. Imóvel. O cheiro denunciava o que ele tentara evitar com sua volta apressada. O pai não o esperara.

14.1.02

Gente séria tem me tirado do sério...

Tempos Modernos

A angústia de quem escrevia antigamente era mais tátil.
Não sai nada?
Ou nada que sai presta?
Ao lixo com a folha
Externava-se a raiva, abria-se a válvula de escape
As vezes, surgia o assunto tão esperado
Mas e hoje?
A angústia é a mesma…Mas
Como amassar essa folha virtual na minha frente?
Como rasgar um monitor?
Ele nem cabe na lixeira…
Quem gosta de frases edificantes é mestre de obras…

13.1.02

O Chamado


Levara sete anos pra atender o chamado da Cidade. Desde os 12 anos, ouvira falar de tal chamado e não dera a mínima. Todos os seus amigos, de uma forma ou de outra, já tinham atendido ao chamado, que de onde moravam, se ouvia alto e claro. Menos ele.

Morava perto da cidade. Mas o mais longe que tinha levado seu corpo era até a cidade vizinha, vizinha da Cidade. Não era implicância. Simplesmente não tinha motivos para ir. E a Cidade o chamava. Ele, todo ouvidos de mercador.

Ao 19 anos, não que tivesse tomado a decisão, teve que ir à Cidade. E foi. Para atender um pedido dos pais, mais foi. E o chamado da Cidade finalmente bateu forte. Ao ver seus vales de concreto, seu movimento, sua gente, o chamado ribombou em seus ouvidos. Ele precisou ser dominado pela Cidade, absorvido.

Foi o primeiro dos amigos a se mudar para a Cidade. Depois disso, voltou poucas vezes para casa.

***

Foi feliz na Cidade. Criou amigos, cachorros, família. Raízes, como dizem. Ninguém da Cidade poderia dizer que ele viera de outra cidade. Absorvera seus gestos, sua fala, seus movimentos. Na outra cidade, os poucos que se lembravam dele, tinham saudades.

***

Ficara, como todos um dia ficam, velho. A cidade já era seu lar, sua vida. Mas sentia, no fim da sua vida, falta de algo que não conseguia decifrar o que. Sua casa, sua prole, sua vida estava já pronta para serem entregues: já não eram seus. Mas algo ainda faltava. Não era na cidade que escolhera viver que conseguiria suprir essa necessidade.

***

A outra Cidade começou a entoar seu chamado. Levou três anos para atendê-lo.

11.1.02

Autocrítica


Qualquer pessoa que escreve algo para outra ou outros, sem que essa ou esses lhe peçam, sem que se receba por isso, sem ter algo edificante pra falar ou é uma pessoa insuportavelmente convencida ou incrivelmente estúpida. Ninguém dá a mínima pro que você acha do último livro que leu, filme que viu, cd que comprou ou dvd que alugou. Ninguém perguntou sua opinião sobre o que outra pessoa com seus mesmos defeitos escreveu em outro lugar, com a mesma intenção que você, ou sobre o que tem acontecido na Argentina ou sobre a seleção brasileira de futebol. E ninguém, NINGUÉM mesmo, quer ouvir suas críticas sobre o que quer que seja. Afinal de contas, quem é você pra criticar alguém ou alguma coisa? Você é uma pessoa que gasta seu tempo (in)útil – que parece ser grande, aliás – escrevendo baboseiras ao vento como se fossem recados para posteridade. No que isso pode te dar crédito?

Deficiente


Não sei porque...às vezes tenho a impressão que fiquei em recuperação no teste do pezinho...

10.1.02

Teoria do pensamento aleatório

Capítulo 6

Um hábito salutar é cortar com tesoura as conversas. Pegue os recortes, atire pro alto, e cada interloucutor pega o que conseguir. Por alguns momentos, a conversa quedará sem sentido. O fluxo de idéias, assim que restabelecido, tornará o papo mais fluente. O caleidoscópio oral criado poderá ser exposto em alguma galeria de arte.

Amortizados


Eu vi um homem morto essa manhã
Embrulhado pra presente, em seu papel amarelo
E não senti nada
Estava deitado em um ponto de ônibos
até concorrido]
E os transeuntes, como eu, nada sentiram
Quase lhe pediam licença
– Meu ônibus chegou, saia do caminho –
E não olhavam para trás

O rabecão que o levou
Não cobrou vale–transporte

7.1.02

Virtual

Vamos evoluir
Como vírus que se adaptam
Às adversidades
Vamos nos unir
Em conexões que se façam
Na interatividade
Redes neurais vão ruir
Sob o peso das memórias RAM
E dos córtex de alta velocidade

E o pensamento, antes único, será um só
E pensamento coletivo, de cada ser só
Vai ser livre em sua individualidade
Vai ser único em sua una liberdade

4.1.02

Conclusão


O inferno são os outros
De boas intenções, o inferno está cheio
E o inferno é aqui

Das boas intenções
Dos outros
Já estou por aqui

3.1.02

nonsense


As boas coisas dessa estrada fértil garantem, hoje, indivíduos já leves. Melhores níveis operacionais permitem que respire sem trabalho: uma vida xilográfica, zen.

2.1.02

Teoria do pensamento aleatório

capítulo 5

Se meus pensamentos todos coubessem nesse copo vazio aqui na frente (é um copo grande: cerca de 400 ml), o resultado seria uma mistura heterôgenea, sem a menor uniformidade. Fragmentar, podemos dizer caleidoscopicamente.

Não sei até que ponto a culpa de se ter sempre uma cadeia de pensamentos randômica é desse padrão de vida caótico em que vivemos. Até aí, também, isso não importa muito. O que não podemos fazer ao analisar essa questão é esquecer que desde o começo das nossas vidas, sempre tivemos uma ligação muito próxima com o caos. Para sermos o que somos, tivemos que vencer milhares de espermatozoides e todos tinham a mesma chance de fecundação.

Ano novo


O ano novo não vai te trazer nada de novo. Os dias continuarão tendo 24 horas e as semanas sete dias.

Suas funções biológicas serão as mesmas: você vai continuar morrendo e vivendo pelos mesmos motivos.

As pessoas também não mudarão, apesar de todas as promessas feitas.

E por pior que isso possa parecer, não é pessimismo. É uma simples constatação feita através da observação continuada desse evento chamado cotidiano.

Caostrofobia


OvirtualnãoseopõeaorealesimaoatualOvitualéoqueviráoupotencialmentevirácriandoumarealidadequenãoestámaisquepoderáestarÉumreal
diferentecomoutrosignificadoeoutromomentodeexplosão.orealéopossiveleovirtualéumarespostaaoatualsendoseutotaldesemelhante.

27.12.01

Caos




Você repara em seu relógio que é quase a hora de ir embora. O dia foi atribulado no trabalho. Apesar de ser aquela eterna rotina, hoje a rotina foi maior. Pilhas e pilhas de vias e 2as vias para rubricar e carimbar, telefonemas para atender e clientes para receber. Nada fora do normal em uma vida tediosa. Extremamente tediosa. Seus braços doem tanto que você desejaria uma amputação rápida: pelo menos ia parar de sentir esse incômodo. Pra variar, você é o último da repartição a sair e deve faltar pouco para o faxineiro aparecer para limpar a área. Esse é o sinal de que você deve ir embora, pegar o carro, fazer o trajeto trabalho–casa, tomar um banho de 5 minutos, comer um lanche sozinho e desmaiar na cama, para estar disposto para o recomeço de tudo. Daí acontece uma coisa rara, que é você pensar na inutilidade da sua vida, na completa irrelevância que a sua existencia representa para os outros…para você mesmo…e inclusive para sua empresa. No seu trabalho, você nada mais é que um carimbador–rubricador–telefonista–recepcionista autômato. Uma máquina, um objeto.

No meio desses pensamentos, você nota que não sente mais dor nos braços. Aliás, nada mais doi no seu corpo. Um relaxamento nunca obtido antes toma você completamente, e você chega a agradecer por isso. Você está quase feliz – quase…afinal de contas, você nem sabe mais o que é ser feliz mesmo – quando vê chegar o faxineiro. Você quase inveja o trabalho dele, andando por todas as salas, mudando um pouco seus horizontes. Quase o inveja, porque nem isso você sente mais. Você tenta se levantar e – surpresa! – não consegue. Tenta se mover e nada responde. Pernas, braços, cabeça…imóveis. Você tenta gritar, mas não consegue…

O faxineiro se aproxima da sua mesa. Molha o pano no detergente e começa a passar na sua mesa…depois disso, começa a passar na sua cabeça. Na maior naturalidade.

Evolução


Na escala evolutiva, o homem é menos de 1% mais evoluído que um macaco...O vírus HIV, se compararmos o primeiro isolado em pesquisas com o último, evoluiu cerca de 14%...

Onde está sua empáfia agora, Homo Sapiens??

Deus


Não há uma prova sequer de que Deus dê a mínima para os mortais.

Exaltar seu próprio poder e criatividade já seria uma ótima razão pra Ele criar o universo; Nada impede a Deus de ter orgulho: quem O recriminaria?

Esqueçam o fato do homem se achar o único ser pensante do universo. Achar que somos Sua máxima criação é a maior pretensão da humanidade.

Já é um fato comprovado que vulcões e terremotos e maremotos e furacões são armas terroristas de Deus.

O ato de transformar o verão no inverno, é uma forma de Deus aplicar a caostrofobia na vida cotidiana.

Para Deus, não há limpeza étnica: quando Ele mata, mata indiscriminadamente, sem se importar com a raça de quem morre.

Se Deus permitiu a evolução, fica provado que a humanidade é apenas um estágio imperfeito do que estar por vir; Ou sua criação máxima é mesmo a árvore.

No sétimo dia, Ele não descansou.

Tudo/Nada


Para falar sobre o tudo
Esvazie sua mente
Até não sobrar nada
Esteja oco, vazio,
Seja a própria definição do vácuo
O vazio leva à plenitude
Por mais contraditório
Que isso possa parecer
Há uma tênue fronteira entre
O tudo e o nada:
Cruzá-la é fácil
Difícil é se equilibrar em sua margem

21.12.01

A coisa



Uma conjunção de enzimas que passam por suas sinapses. Euforia, excitação, adrenalina passando pelo seu sangue, algo físico, biológico. Mutações corpóreas imperceptíveis ocorrem. Misture a isso a concepção cultural que se faz do termo. Visões românticas e idealizadas. Nada disso revela seu eterno mistério. É algo indefinível, incomensurável. O objetivo principal da vida, força motriz de tudo, elemento básico da busca incessante dos homens pela felicidade. Nem mesmo as metáforas o definem. Poetas e filósofos tentam em vão, desde tempos imemoriais. Resta apenas deixar-se envolver, se afogar nele, sem restrições, sem limites. Se não, não é ele. Quando ele chega não há mais nada: sua amplitude é infinita. Não há coordenadas, mapas ou algo que guie no meio de seus caminhos tortuosos. E sua maior dádiva é justamente essa: a oportunidade de se perder para sempre, não achar sua saída.