25.2.03

Cigarros


Doeu quando percebi que ele se foi. Quando eu notei que ele tinha abandonado um casamento, uma esposa, filhos, um lar. E ele nem se deu ao trabalho de inventar uma desculpa ou teve hombridade de falar na minha cara que nos deixaria. Fui abandonada por um clichê:

- Querida, vou comprar cigarros e já volto!

Ele estava longe de ser um "marido exemplar", mas era o que eu tinha e eu o amava. Era um safado, um boêmio, um péssimo exemplo pras crianças. Mas eu o amava.

Nunca se sabia o que o louco poderia fazer. Ao sair do trabalho ele podia chegar em casa e levar a mim a as crianças prum restaurante ou podia simplesmente não chegar. Era assim. Quando lhe dava na veneta, sumia por dias.

As vezes chegava bêbado em casa. Nessas ocasiões, ele ficava imprevisível. Ou ele me batia sem um motivo aparente ou fazia amor comigo de forma brutal e maravilhosa. Uma coisa eu não posso negar. Ele fazia o que queria comigo, era só tocar nos lugares certos. E ele sabia, ah, como sabia.

E eu sempre me deixava levar pelas suas armadilhas sutis, sempre o perdoava, mesmo depois das brigas, das surras, das discussões na frente das crianças. Se não fosse com seu jeito de criança abandonada, era na cama que conseguia o que queria de mim, inclusive fazer as pazes.

Ele não valia um centavo. Era um cachorro. Mas eu o amava. Não...Eu era viciada nele, nas suas mãos e palavras, no seu olhar. Viciada, não era amor. Amor é algo bom. Quando nos apegamos a um hábito ruim, é um vício...Não era amor, não...Era mais um vício. Livrei-me dele, estou sofrendo, muito, muito mesmo. Todo vício dói para acabar, mas acabar com ele é sempre o melhor a se fazer Eu sou viciada nele, como ele é pelos seus cigarros...Os mesmos cigarros que serviram de desculpa pra me libertar...

Benditos cigarros!


18.2.03

O Telefone


– Eles não vão ligar...

Tudo começou com um anúncio de emprego. Estava na lona, à beira da bancarrota completa e precisava mesmo de um emprego melhor. Aí, vendo os classificados, vi o anúncio que, sem falsa modéstia, se encaixava perfeitamente ao meu perfil:



Liguei e marquei uma entrevista. O local onde seria entrevistado era uma saleta pequena na rua do Rosário, num daqueles prédios do século retrasado. Não tinha a menor pinta de que um emprego ali daria bons ganhos a ninguém. Era um cubículo mínimo e úmido, com mofo nas paredes, repleto de estantes entulhados com milhares de pastas. A recepcionista era uma mulher que poderia ter 25 anos muito mal vividos ou ser uma senhora conservada com 60 anos. Me disse para sentar que eu já seria atendido e continuou mascando seu chiclete, lendo sua revista de fofocas e lixando a unha. Estava já imaginando a furada em que me meteria, mas como já estava ali, resolvi pagar pra ver.

Alguns minutos de espera e um berro saiu de dentro do outro cômodo da sala:

– Dona Gorete!!! Pode mandar o rapaz entrar!!!

Ela só mexeu a cabeça em direção à porta que eu devia entrar, sem falar nada. Ao entrar na sala, me deparo com um sujeito baixinho, barrigudo e careca. Ele não sabia se me estendia a mão ou continuava levantando suas calças, que caiam da sua protuberante barriga. O sujeito não devia fazer a barba há alguns dias e pelos restos de comida que circundavam sua marmita na mesa, pude notar que higiene realmente não devia ser seu forte.

– Leonel Itajibe Pederneiras, um seu criado...Qual é a sua graça???

Depois de conter um ataque de riso diante de tão dantesco nome, meu segundo impulso foi o de sair correndo daquele lugar. Tudo aquilo era insólito demais, até prum cara no desespero como eu. Depois de ver que no mínimo eu teria uma história hilária pra contar no bar, resolvi ficar.

–Meu nome é Paulo Eduardo de Castro...
– Sente-se Paulo...o lugar é humilde mas é limpo
- aí eu não consegui conter um risinho – Sinta-se como na sua própria residência...Veio por conta do nosso reclame no jornal, não?
– Pois é...gostaria de saber do que se trata.
– Claro, claro! Você é um rapaz direto, não gosta de rodeios...Desde que te vi adentrando nesse recinto, percebi que você é um moço prático. Pensei cá com meus botões: esse é o nosso homem! Notei isso de primeira! Por isso, em respeito ao seu dinamismo, não vou ficar mais enrolando. Nossa corporação precisa mesmo de gente como você, ágil e...
– Ahn...entendi, entendi...mas em que consiste o trabalho?
– Ah, desculpe! Tinha me empolgado com você, só isso. Mas vamos direto ao que interessa agora, sem mais delongas...
– Isso
– Bom...Paulinho – posso ter essa intimidade com você, meu jovem? – Vou lhe passar uma lista com alguns nomes. Gostaria que você me desse uma opinião sincera sobre o que acha de cada um deles.


Ele pegou um papel meio amarrotado, com marcas de polegares engordurados nos cantos e me passou. Era uma lista com uns 50 nomes de personalidades nacionais. Eram socialites, apresentadores de programas dominicais, atrizes–modelos, jogadores de futebol da moda, cantores de pagode, sertanejo e música brega, entre outros. Ou seja, praticamente uma lista de convidados da “Ilha de Caras”.

– Confesso que, tirando alguns que nem conheço, não gosto de ninguém.
– Mas, me fale, com pureza d´alma, apenas “não gosta” ou detesta?
– Alguns são mais detestáveis que outros, com certeza.
– Detestáveis a ponto de serem odientos?
– Poderia dizer que sim.
– Se eles morressem, você não se incomodaria muito...É isso?
– Isso...alguns eu até poderia ficar feliz, caso morressem.
– Hmmm...Interessante, interessante.
– Mas o que isso tem a ver com a vaga que a sua “
corporação”? – tentei tirar toda a ironia ao falar a palavra, mas não consegui.
– Explicarei isso, meu jovem. A morte desse tipo de escória é o nosso negócio.
– ?????
– Ah....entendo sua perplexidade, caro Paulinho. Nossa corporação é, pelo menos eu considero, filantrópica. Nosso objetivo é eliminar o maior número possível de pessoas abjetas que tenha alguma influência na mídia. Começamos nossas operações há apenas dois anos, na Suíça, e agora já atuamos em 47 países.
– Ahn?!?! Você está falando sério? Veja bem, seu Itapuã...
– Itajibe...
– Isso, seu Itajibe....não vim aqui atrás de brincadeiras. Estou precisando mesmo de um emprego e não tenho tempo, nem dinheiro para ficar sendo alvo de palhaçadas como essa
– Calma, meu caro....não são palhaçadas...Isso é sério...


Ele me mostrou outra lista, essa com nomes estrangeiros e recortes de jornal, noticiando mortes “acidentais” de pessoas famosas em vários países. Era uma lista extensa com alguns nomes até famosos.

– Esse aqui também foram vocês?
– Isso...Esse foi um dos nossos maiores sucessos!
– E...como vocês executam essas..mortes?
– Bom, meu jovem...isso, para sua segurança, é melhor você não saber...
– E o que especificamente eu faria na sua corporação? Eu não gosto deles, mas não pensaria nunca em matá-los...
– Primeiro, vamos mudar esse termo, morte. Ele é muito pesado, tem uma carga muito negativa...Trabalhamos com “aposentadoria compulsória e definitiva de estrelas”...Não se preocupe. Você não terá uma atuação direta na operação. O seu cargo seria de “monitor do limiar aceitável de saturação” dessas personalidades.
– E o que faz esse monitor?
– Você vai prestar atenção ao que nossos alvos aprontam na mídia. A hora que você achar que eles passaram dos limites, com o perdão da expressão chula, quando eles “encherem de vez o seu saco”, você nos liga. Pronto. No dia seguinte eles estarão definitivamente aposentados.
– Só isso?
– Apenas isso...
– E se eu aceitar esse emprego?
– Bom.. Aí você vai receber esse kit
– nisso ele pegou uma pasta e me entregou – Nele você vai encontrar uma lista com os dez primeiros astros que você vai monitorar, um número de telefone para o qual deve ligar e um envelope com R$5.000, 00 em dinheiro.

Quando ele falou na quantia, peguei a pasta e conferi seu conteúdo. Estava lá o envelope, estufado, com 50 notas de cem.

– Apenas isso? E o que me impede de pegar essa pasta e sumir por aí? Ou sair daqui e ir direto à uma delegacia?
– Paulinho, Paulinho...E quem acreditaria na sua história? Você é um Zé ninguém sem emprego, sem provas contra nós...Todas as mortes são acidentais, não viu no nosso portfólio que eu te mostrei? Você é um rapaz inteligente. Sei que não faria isso. Quanto a fugir com o seu pagamento sem realizar sua tarefa, eu acho extremamente inapropriado...e perigoso. Veja quem nós conseguimos eliminar e em quantos países...Acha mesmo que conseguiria se esconder de nós? Por mais esperto que você seja, eu duvido. Veja bem, Paulinho. Você precisa do dinheiro, não vai se envolver diretamente em nada ilegal e vai fazer o mundo um lugar mais agradável de se viver. Por que não aceitar nossa oferta?
– Por que eu? Ou melhor, por que não qualquer outro? Você, por exemplo?
– Problemas operacionais, Paulinho. Eu recebo muito bem pelo meu trabalho. E se eu me metesse a fazer o seu trabalho, ia ser visto como um ganancioso. E a ganância não é muito bem vista nos nossos quadros...


Depois do choque, percebi que aquilo tudo só podia ser uma brincadeira. Aceitei a piada. Me despedi do sr. Itajibe e fui para casa. Ele me recomendou que assim que chegasse fizesse uma assinatura dos principais jornais e revistas e depois das sete da noite não saísse da frente da TV. Itajibe se despediu me dando seu cartão, com seu nome, sua função (gerente de operações – RJ) e o nome da corporação: “BETTER WORLD. Seria bem adequado, se fosse sério. Fui pra casa decidido a não gastar a grana até ver em que ia dar essa comédia.

Imaginando que poderia ser algum tipo de jogo dos próprios programas de TV, assisti a todos. Não tinha o hábito de ver esse tipo de lixo televisivo, e a maratona de 4 horas vendo apresentadores acéfalos fazendo palhaçadas para uma plateia demente me fez ver a ironia do nome “horário nobre”. As onze e meia da noite, vendo que nenhum programa fez qualquer alusão à Better World, resolvi testar a eficiência da corporação. Peguei o número do telefone na pasta e liguei. Atendeu uma mulher com todo o trejeito de telemarketing receptivo.

– Better World. Quem fala?
– Paulo de Castro..
– O novo monitor? Nossa...Ou você é muito eficiente ou tem muito pouca paciência!
– Você me conhece?!?!?
– Claro, Paulo...O sr. Leonel já nos passou a sua ficha..
– Ficha?
– Isso..mas são detalhes burocráticos. Qual alvo atingiu seu limiar de saturação?
– Ahn...foi Fulano de Tal...
– Fulano realmente me irrita. Se eu fosse monitora, ele já teria sido retirado há muito tempo..
– Há...pois é...É ele mesmo...
– Bom...seu pedido foi requisitado. Amanhã você terá o resultado. Mais alguma coisa?
– Ahn...não, não...Espera..Vem cá. Esse negócio é sério mesmo?
– Claro! Por que a dúvida?
– Sei lá...pensei que era algum tipo de pegadinha...
– AHAHAHAH....pegadinha?!?!? Nós trabalhamos justamente para acabar com esse tipo de coisa...
– É...eu sei..
– Então...não se esqueça: você é parte fundamental na nossa operação. Você manda!
– Tá...Bem...boa noite..


Fui dormir imaginando até onde iria tudo isso. Quem quer que estivesse fazendo essa brincadeira gastou um bom dinheiro e tempo só pra me sacanear.

Acordei pela manhã e nem lembrei de imediato da Better World. Saí de casa para tomar um café e comprar o jornal. Quase tive um enfarte ao ver a manchete:

Fulano de Tal morre em acidente automobilístico


Fiquei em pânico! O sujeito morreu mesmo! E segundo dizia a matéria, era um acidente nebuloso. DEUS!!! O que eu fiz?!?!?! Depois de passado o susto inicial, a última frase da atendente da Better World ficava ecoando na minha cabeça...

– Você manda!

Então eu tinha, mesmo que indiretamente, sido o mandante de um assassinato. O que eu devia fazer? Ir a polícia realmente não adiantaria. Além deles não acreditarem em mim, agora, se eles acreditassem, eu estaria envolvido. Pensando bem, Fulano de Tal não valia uma prisão. Mas eu, decididamente, estava fora da operação.

Fui correndo até o escritório do Itajibe. E quem disse que havia alguma coisa lá? Nada, além do mofo nas paredes, que lembrasse a existência do gerente de operações da BW. Voltei pra casa voando, e liguei pra corporação...

– Better World. Quem fala?
– Paulo de Castro...O que diabos está acontecendo?!?! Vocês mataram o sujeito!!! Vocês..
– Paulo...matar é um termo muito pesado. A Better World prefere a expressão “aposentadoria...
– FODA-SE a preferência de vocês!!! Vocês mataram uma pessoa!!!
– Que seja! Você sabia o que significava sua ligação.
– Eu pensei que fosse uma brincadeira!
– Por que você pensou isso? O sr. Leonel não foi claro na sua explicação do cargo?
– Foi, porra, foi!!! Mas, caralho!!! Como eu poderia imaginar que fosse verdade?!?!
– Mas é, Paulo...e é melhor você se acostumar com isso..
– ME ACOSTUMAR?!?! Vocês são loucos de pensar que eu vou continuar com isso!!!
– Paulo! Você tem uma meta, sabia? O sr. Leonel não te explicou?
– CAGUEI pro que o Itajupi..
– Itajipe
– QUE SEJA!!! Caguei pro que ele explicou!!! Eu estou fora!!! Quero saber onde eu devolvo a grana...
– Você não tem o que devolver. O envelope é por “aposentadoria” realizada. O dinheiro é seu. Você foi o mandante da operação.
– Mandante é o caralho!!! Estou fora!!!


Não sabia o que fazer. Eles tinham meu endereço, conheciam meu rosto. Eu estava encurralado. Resolvi ficar trancado em casa uns tempos. Sem jornal, sem TV, sem nada...Depois de dois dias, recebo uma ligação.

– Paulo?
– Quem fala?
– Aqui é Leonel no aparelho...
– Itajipe, seu filho da puta!!!
– Vejo que decorou meu nome, finalmente, Paulinho.
– Paulinho merda nenhuma!!! Quero devolver a grana! Estou fora disso!
– Não.
– Como não? O que não? Fala, porra!!!!
– Não existe a opção “fora disso” no nosso acordo..
– Acordo?!? Que acordo?!
– O nosso acordo. Eu te expliquei a natureza do trabalho, você aceitou, levou seu dinheiro. Agora você faz parte da corporação
– Corporação é o caralho, seu bosta!!! Estou fora!!!! Não faço mais essa merda de trabalho escroto!
– Paulinho...Você tem uma meta. É melhor cumpri-la...
– Enfie a meta no cu!!! Eu nunca mais ligo a tv se for necessário!
– Olha, Paulo...Eu já tive bastante paciência com você. Você até agora só me falou desaforos. Tenha, pelo menos, educação. E, para o seu bem, é bom que você volte a ver televisão...
– Volto nada! Já disse, estou fora...
– Essa é sua decisão definitiva? Sabe que implicações isso pode gerar?
– Sei sim, seu merda!!! E não me ligue nunca mais! Estou fora!!
– É uma pena...Nosso departamento de pessoal vai tomar as medidas cabíveis.
– Isso!!! Mande o “departamento de pessoal” me ligar mesmo...
– Certo...Paulo, só mais uma coisa...
– O que?
– Lembre-se...Tudo começou com seu telefonema. Na Better World, TUDO se resolve por telefone. Cuidado com as ligações que você receber daqui pra frente.

Bati o telefone. Não queria mais saber dessa história maluca. Era só deixar a poeira baixar um pouco e tudo estaria bem....ou não?

Eles sabiam onde eu morava e meu telefone e como eu era. E eu não sabia nada sobre eles. Só conhecia o Itajibe – que pelo visto eu nunca mais iria ver na vida – a dona Gorete e a voz da telefonista. Que chance eu teria contra eles? Que chance???

Estou a três meses praticamente sem sair de casa. Só saio me esgueirando, disfarçado, e até de orelhões na rua eu tenho medo. Fujo deles, pra falar a verdade. Como evito sair de casa o máximo possível, acabei gastando o dinheiro que eles me pagaram pelo serviço (serviço?) com entrega de comida. E é só para isso que eu uso o telefone. Nunca mais atendi a uma ligação sequer.

Alvorada


Se deram tão bem, que sem notar, passaram a noite inteira conversando. Estavam na praia, vendo o céu estrelado e nem perceberam a alvorada chegando, sutil. E só se calaram porque o sol, mais silencioso do que nunca, deu o ar de sua graça e chegou derrubando suas palavras na areia.

Isso não os abalou. Abaixaram-se, cataram cada palavra do chão, e continuaram.

16.2.03

O Flàneur


...O flàneur é alguém abandonado na multidão...- Silvio Medeiros

Gostava de andar pelas ruas do Rio de Janeiro. Não tinha nenhum objetivo claro, apenas caminhava e observava tudo, pessoas, carros, prédios. Não era raro ser encarado, e quem o encarava, não raro o achava louco. Fitava esses com olhos curiosos. Achava que eram loucos. As diferenças entre as construções e as feições das pessoas o fascinavam. O mundo era um caleidoscópio que, parecia, só ele percebia. O cotidiano que para todos era uma prisão, para ele, era seu tesouro.

Nos dias de sol acordava com outra disposição. Tomava seu banho com calma, feliz por antecipação. Teria mais uma manhã de caminhada pelas ruas cariocas. Ia com calma, as vezes, ficava o dia inteiro andando. Não tinha emprego, não tinha compromissos, nem amigos. Morava de favor num quarto nos fundos de um quintal de subúrbio. Ganhava sua vida fazendo bicos, capinava um terreno aqui, carregava umas bolsas ali. Dava para seu sustento. Comia e tinha dinheiro para seu ônibus. Era o que bastava.

Não sentia falta de amigos. A empregada da casa onde tinha seu quartinho era sua única relação com o mundo das pessoas. Ela lhe entregava o café e o pão com manteiga, conversava brevemente sobre o tempo ou algo de muito anormal que houvesse acontecido na vizinhança – “o filho de dona Cida tinha sido preso” ou “a Marlene foi pega no flagra colocando um chifre no Alaor” – e se despediam. Ele não gostava que o papo se estendesse. Queria ir logo para as ruas.

Pegava seu ônibus, ainda lotado de gente indo para o trabalho. Olhava as caras cansadas e irritadas pelo empurra–empurra no ônibus ou pela rotina cansativa dos seus subempregos e não as entendia. Eles tinham a obrigação de ir para a cidade. Era tudo o que ele queria.

Ele sonhava com um emprego de contínuo. Imaginar ficar o dia inteiro pelas ruas e ainda ganhar para isso era tudo o que ele poderia desejar. Certa vez ele até conseguiu uma vaga de boy numa empresa na av. Rio Branco. Durou uma semana. Esquecia-se da hora andando pela cidade. Ia pela rua da Assembleia, seguia pela Carioca, passava pela Praça Tiradentes, entrava na rua do Lavradio e chegava na Lapa. Aí, era sua perdição. Podia seguir para o Passeio Público, ou ir até a Glória. Em um dia que achava estar com mais tempo, chegou a subir para Santa Teresa. Esse exagero foi decisivo. Seu chefe o acusara de ficar nos fliperamas o dia inteiro. Uma injustiça completa.

Depois dessa má fadada experiência, resolveu que sua vida era boa como estava. Tinha como manter seus parcos hábitos e era feliz assim. Tinha suas ruas e isso lhe bastava. Não se importava com o que diziam na sua vizinhança. Para todos, tinha perdido a razão, por isso não se importava em ser um cara sozinho. “Sozinho”, pensava ele, “idiotas! Eu tenho todos comigo e eles nunca me terão”.

Só que algo ocorreu, aos poucos, como um vírus inoculado em seu organismo. Sem perceber, suas ruas estavam ficando iguais. Aos poucos, ele deixou de perceber as variações entre rostos e prédios. Depois de algumas semanas, tudo para ele era igual. Um Rio de Janeiro formado por blocos de concreto de diferentes tamanhos, mas sem relevos e uma população de gêmeos entediados, andando como sonâmbulo pelas suas ruas. Ele esfregava os olhos, desesperado, a procura do seu antigo mundo fragmentado e lindo. Não adiantava. Era tudo uniforme. Tudo igual na sua feiura. Os rostos desconhecidos das pessoas eram seus melhores amigos. Pela primeira vez na sua vida, se sentiu completamente abandonado, só num mundo de feições eternamente conhecidas.

Um dia a empregada foi levar para ele sua média com pão. Encontrou-o chorando, num canto do seu quarto. Ao se aproximar dele para ver o que havia, ao ver seu rosto, deixou o modesto café da manhã ir ao chão. Ele não tinha lágrimas no rosto. O que escorria pela sua face era sangue. Ele havia furado seus olhos.

12.2.03

Minha Mãe e o Transtorno


CRASH!!!!

– Buáááááááá...
– Menino! O que você fez??? Se eu te pego!!!! 2 anos é só me dá trabalho! Volta aqui, peste! Vou esquentar seu traseiro!!! Se com essa idade você já apronta, nem quero te ver com 20 anos...

***

– Vam´bora, Duda! Vamos logo! Ninguém vai ver!
– Sei não, Carlinhos...Se sua mãe chega...
– Chega nada!!! Ela foi na padaria...A gente sobe aqui na mesa e consegue pegar os biscoitos rapidinho...
– Carlinhos...é melhor não...
– Você é uma bichinha mesmo, Duda...

CRASH!!!!

– Carlos Alberto!!! O que você fez, sua peste?!?!
– Calma mãe!! Foi sem querer!!!
– Sei, foi...mas agora você vai apanhar de propósito!
– Não mãe, não...AH! Buááááááááááá...
– É isso que você merece, pivete!!!! Você vai aprender, nem que eu te mate de pancada!

***

– Carlinhos...isso faz mal, rapaz!
– E daí? A gente só tem 13! Isso só começa a fazer mal depois dos 50 anos...
– Mas Carlinhos...a sua mãe...
– Porra, Duda! Já vai começar com essa história de mãe??? Você é um cagão mesmo!
– Sou mesmo! Não vou fumar cigarro só porque você quer...
– Então sai fora, moleque...não quer virar homem, não vira...
– CARLOS ALBERTO!!!!!
– Ahn...oi mãe...
– O que vocês estão fazendo aqui na garagem??? O que é isso que você está escondendo nas costas?
– Nada, mãe...
– E nada agora faz fumaça? Deixa eu ver isso aqui...UM CIGARRO?!?!? Você ficou maluco, Carlinhhos?!?!
– Não, mãe!!! Eu só queria ver ele queimar!!!
– Quem vai queimar agora é a sua cara, moleque?!?! Que história é essa!!! Fumando?!?!?
– Não, mãe! Não...AH!!!!
– Seu marginal!!! Tem que apanhar muito ainda pra aprender!!!!

***

– Hmmmm...vem Silvinha...não custa nada...estamos sozinhos aqui...
– Mas Carlinhos...Não sei se estou preparada pra isso...
– Não está ainda?!?!? Eu estou!!! Olha aqui...
– CARLINHOS!!! Coloca isso pra dentro da calça!!!!
– Ah...vai dizer que você não gostou? Pega nele, pega...
– Não, Carlinhos!!! Nós somos primos!!!
– Ih, Silvinha..primo não é parente...
– Não sei, Carlinhos...se meu pai nos pega...ou sua mãe...
– Esquece minha mãe, Silvinha...ela tá roncando no quarto..
– Tem certeza, Carlinhos?
– Tenho, amorzinho...Isso...sem medo...
– CARLOS ALBERTO?!?!?! O QUE É ISSO?!?!?!
– Ai, merda...Nem vou tentar explicar mãe...Foi culpa da Silvinha!
– O que?!?!?
– Nem precisa falar nada, Silvinha! Você acha que eu vou acreditar que uma garota como você teria culpa nisso?
– Não tenho, Tia!!!
– Merda...
– Carlinhos... Você vai apanhar duas vezes...primeiro pela sem-vergonhice que você estava fazendo, depois, pelos palavrões que você falou agora...
– E merda é palavrão?

SLEPT!!!

– Ai!!! MERDA!!!
– Ah, seu moleque....Você não presta mesmo!!! Depravado!!!

***

– Alô?
– D.Odete?
– Sim. Quem fala?
– A senhora é a mãe do Carlos Alberto?
– Sim...mas quem fala???
– Aqui é a segurança do Shopping Sul. Aconteceu um pequeno transtorno numa loja daqui com seu filho.
– Meu filho?
– Isso. Ele foi apanhado roubando um CD...
– CARLOS ALBERTO? MEU FILHO? IMPOSSÍVEL!!! Ele é um amor de menino!!!
– Ahn, mas não foi só isso, senhora. Ele desrespeitou um segurança e o agrediu...
– Ah...Vocês NÃO PODEM estar falando do meu Carlinhos...Ele é a criança mais educada do mundo...
– Não parece senhora. Primeiro porque com 20 anos, ele não é uma criança...
– Pois pra mim, é...
– E segundo, ele REALMENTE agrediu um segurança...Nosso segurança teve que controlá-lo utilizando uma certa força...
– CERTA FORÇA?!?!? VOCÊS BATERAM NO MEU FILHINHO?!?!?
– Bom, nós tivemos que contê-lo e...
– E, nada!!! Vou para aí agora!!! Com a polícia!!! Meu filho não pode apanhar assim!!! Me aguarde, “senhor” segurança....

BLAM!!!

– Onde já se viu!!! Bater assim no filho dos outros!!! Transtorno!!! Tá bom....

Quando eu pegar o Carlinhos, vou esfolar ele vivo!!!

5.2.03

Sentidos


Não te escuto, mas me afogo em seus sons. Estou imerso em um labirinto de barulhos discretos que explodem em meu cérebro. Não há outro som no mundo, somente o da sua respiração, sua voz, o ruído dos seus passos.

Não sinto seu cheiro, mas conheço seu odor, como se sempre estivesse dentro de você. Sou parte do seu ventre, como se tivesse vindo do seu próprio útero. Eu não respiro ar, respiro você.

Seu gosto infecta minha boca, minha língua de nada serve, além de sentir seu sabor. Sinto seu paladar com minha boca, e cada poro da sua pele é o que há no mundo para ser provado.

Não existe o toque, mas sua textura é a única coisa tátil para mim. Como um Midas enlouquecido, tudo o que toco se transforma em você. Meu tato é apenas uma extensão do seu corpo.

Meus olhos são cegos: a única visão que me atormenta é a sua imagem. Ela me persegue por caminhos escuros e só encontro um pouso seguro quando encontro sua mão para me guiar. Só posso retribuir com milhares de beijos em braile.

4.2.03

Sabonetes

Ela se foi e levou minha coleção inteira dos Pixies. Levou meus livros do Cortazar. O DVD deve ter sido a primeira coisa a ir pra mala. O que havia de roupas que coubessem nela e não ficassem extremamente masculinas, ela levou também. Ela levou até uma samba-canção que, confesso, ela usava mais que eu.

Mas o que me fez explodir mesmo foi o ataque que ela fez ao banheiro. Quem, em sã consciência, ao se separar de alguém – unilateralmente e sem avisar, diga-se de passagem – perde tempo limpando o banheiro? E não falo de toalhas ou dos seus perfumes ou do tapetinho ridículo que ela comprou. Ela levou tudo!

Cheguei cansado do trabalho e ao abrir a porta, já percebo qual foi o resultado da nossa briga pela manhã. Só de ver com que cuidado ela tirou a fiação do DVD já deduzi com que humor e velocidade ela saiu do que costumávamos chamar de lar. Depois de constatada a fuga, fui ao banheiro tomar um banho, pra pensar melhor na situação. Foi aí que fiquei revoltado. Ela não deixou nem um sabonete no banheiro.

O que passa na cabeça de alguém que age assim? Só pode ser louca! Claro que o certo era nos separarmos. Ela se preocupa em levar mais de cinco mil pratas em equipamentos eletrônicos da minha casa e também em roubar 10 reais em sabonetes. Só pode ser um desvio de comportamento dos mais graves.

Não sei se foi o abuso do tunga que levei, a constatação que vivi anos com uma louca ou a falta de um banho que me fizeram ir à delegacia. Eu tinha todas as notas fiscais de tudo que ela havia levado – menos dos sabonetes, claro – e não ia deixar barato esse assalto.

– Furto...
– Anh?
– Foi um furto, senhor. Ela não assaltou o senhor...
– Que seja!!! Não é isso que importa. Ela me roubou! Levou até os sabonetes lá de casa!
– O senhor já me disse isso. Acalme-se. O senhor quer mesmo registrar um queixa contra sua senhora? Não existe a chance dela voltar com suas coisas?
– Eu não quero ela de volta! Você não entendeu?!?! Ela levou até os sabonetes!!! Uma pessoa dessas não é normal! Eu não quero ela nem perto de mim! Ela tem que ser presa! Alguém que faz isso é capaz de fazer qualquer coisa, até matar! Ela é um perigo para a sociedade!!!
– O senhor está exagerando. E não precisa gritar dentro do Distrito, por favor.
– Não preciso!?!?!? Eu fui roubado por uma psicopata em potencial e você fica me impedindo de fazer uma simples queixa! Porra!!!
– Senhor, modere sua linguagem! Posso prendê-lo por desacato!
– O que?!?!?!? O QUE?!?!?! Essa é boa!!! Eu, que pago meus impostos, caríssimos por sinal, em dia, venho pedir ajuda à polícia e sou ameaçado...Que merda de policial é você?!?!
–Já chega, senhor! O senhor foi avisado que não toleraria mais sua atitude agressiva. O senhor será levado AGORA para o xadrez...Quem sabe lá o senhor não se acalma...



Se isso não é uma inversão total de valores, não sei mais o que é! Tinha que ligar pra alguém vir aqui e pagar minha fiança. E no momento, não tinha ninguém mais pra recorrer. Liguei pra ela.

– Oi...
– O que você quer? Não adianta que não quero te ver, nem vou levar suas coisas de volta! Você hoje passou dos...
– Calma, porra!!! Você tem que me ajudar! Eu estou preso...
– O que??? Preso?!?!?
– É...é uma história longa. Vem aqui e paga minha fiança...
– Você não levou sua carteira, retardado?
– Olha...se você soubesse meu estado de nervos, não falaria assim comigo...
– Por que? O que você vai fazer? Fugir da cadeia pra me bater?
– Olha, sua....tá bom, tá bom...Você pode, por favor, passar na delegacia e me tirar daqui?
– Hmmmm....isso não é um golpe seu?
– NÃO, MERDA!!!
– Olha o tom!
– Tá bom...vem aqui logo, tá?
– Tá...Vou te quebrar esse galho...Mas me fala antes como foi parar aí.
– Humpf! Tá bom!!! Estou preso por desacato...
– Desacato? Já sei! Tomou uma multa e brigou com o guarda, né? Você anda muito estressado! Já falei pra você..
– Não foi nada disso...E se eu estou estressado, é muito por conta dessa sua mania de ir inventando as coisas...


Começamos mais um discussão inútil, e no caso, fora de hora também. Em poucos minutos, estávamos nos xingando, como de costume.

– HAHAHAHA...Você é mesmo louco!!! Está preso por causa de alguns sabonetes!
– Louco? Você é que é maluca!!! Por que diabos tinha que levar todos os sabonetes de casa?!?!
– Tá vendo como você é? Se mete numa merda sem tamanho por causa dessas suas obsessões, me pede um favor num dia em que eu nem quero olhar pra sua cara e ainda me ofende...Você não vai muito longe assim, sabia?


Triste era ter que dar o braço a torcer. Olha onde eu havia me metido, pelos mesmos sabonetes que começaram tudo. Eu estava ficando maluco, só podia ser...E pensando bem, o fato da única pessoa pra qual eu ligaria na situação em que me encontrava era sintomática. Eu não tinha amigos, e isso se deve muito ao meu comportamento um tanto quanto estourado. E por isso, dependia de uma louca pra me tirar da cadeia.


Ela me deu um chá de cadeira dos grandes, garanto que só de sacanagem. Me deixou a noite toda no xadrez e eu sem poder ligar pra ela, pra saber onde andava. De manhã, eu pensava em como era prático eu já estar preso: por causa da maldita demora dela, assim que eu a visse, eu pularia no seu pescoço e só soltaria dele quando ela estivesse roxa. Depois de algum tempo vem um guardinha dizendo que eu estava liberado...
– Aí, Sabonete! Tua mulher pagou tua fiança..se adianta...

SABONETE!!! Um maldito dum policial retardado fazendo pouco de mim por causa daquela maluca! Essa era a última humilhação que eu passava por causa dela. Ela me pagaria!!!

Mas quem disse que era a última? Assim que eu cheguei na recepção do Distrito pra pegar meus pertences, vejo que todos os policiais estão rindo de mim. Quando já havia pego tudo o que tinha trazido, me aparece um pacote com o meu nome. No que eu abro o embrulho, a Delegacia veio abaixo. Era um pacote de cheio de sabonetes. Dentro, um bilhete:

Tome, já que te causou tanto problema. Veja se consegue limpar sua barra com eles!

Não tinha assinatura, mas eu reconheci a letra. A risada dos policiais foi a gota no já cheio copo d´água. A noite passada acordado numa cela, a espera por ela e até a falta de banho me fizeram explodir de vez. Sai da Delegacia direto para casa da mãe dela...

Reconheço hoje que devo tentar controlar meus ataques. Hoje, estou cumprindo pena – 4 anos – por tentativa de assassinato. A prisão nem é tão ruim. Misteriosamente sou muito respeitado por aqui. Sempre que conto que estou preso porque tentei matar uma mulher que roubou uns sabonetes na minha casa, o papo morre de uma hora pra outra.