30.1.03

Chaos...


- Peixes são tão bonitos! Alguns são até gostosos...Mas como fedem no prato!
- Você fala isso porque nunca comeu carne humana minha filha!


Honestamente? Toda propaganda é trocadilho. E trocadilhos fedem. Prefiro piadas: como aquela da conversa entre um tijolo e a tijola, terminando o relacionamento. Eles eram muito unidos, mas havia um ciumento entre eles...

Eu odeio aquela velha coroca que mora na minha rua. Mas adoraria ser seu genro.

Eu sou um cara higiênico. Sempre que chego em casa, faço questão de lavar as minhas mãos...É quase compulsivo, as vezes fico horas lavando-as, com variados tipos de sabão. Mas por mais que eu as lave, nunca consigo tirar esse cheiro de civilização delas...

Não diga "não, nunca", esta noite, de novo. Estes somos nós. Lamente-se por isso, mas não queime suas fichas. Não essa noite. Não de novo.

Quando deletamos algo do computador, simplesmente acabamos com algo que não existe, algo que não é real. É o mesmo que acontece quando apagamos uma memória. Mas apagar uma memória é bem mais complicado: não temos uma tecla DEL no cérebro...

No fim, há razões que a própria razão desmerece...Isso não faz sentido, e ainda por cima é um trocadilho. Por isso, não acredite no que eu falo. Eu mesmo tenho isso como um costume salutar...

29.1.03

Prosa do Desespero


Eu quero escrever algo como quem vomita. Estertorar o que há de bom nas palavras, morrer com elas. Tingir de rubro-sangue as paredes: perdigotos e frases vermelhas manchando o alvo de muros que nos encerram. Quero o ódio da sintaxe.

Quero palavras que rasguem esse céu azul, que tirem as pessoas da praia com sua torrente de eloquência numbica. Não restariam surfistas na ressaca de oratória. Suas ondas seriam muito fortes.

Quero palavras que transformem as púberes garotinhas hedonistas e fúteis, eternamente abraçadas aos seus ursinhos de pelúcia e gemendo à noite por seus astros em posters de parede em putas. Quero a devassidão das metáforas e a maldade dos solilóquios.

Guerras seriam criadas com as prosódias proferidas pela minha boca. Quero ser o inimigo público número um, caçado por todos os filólogos empedernidos e policiais truculentos. Farei de seus próprios dicionários e armas meu escudo.

Quero as últimas palavras do condenado. Quero minhas as palavras moribundas.

28.1.03

Notícias Impopulares


Não compro os jornais atrás das manchetes. De nada me importam as decisões da equipe econômica ou as novidades nos fronts internacionais. Não. O que me interessa é o cotidiano, as notas de pé página, os tijolinhos culturais, os anúncios de produtos que não vendem, as notícias que ninguém quer ler. Quero a parte comezinha dos diários.

Como a notícia sobre a pobre D. Amália, notória em sua vizinhança pela sua enorme criação de gatos. Um dia, D. Amália sumiu. Depois de dias sem dar as caras na rua, os vizinhos – sempre preocupados!– resolveram arrombar a porta da D. Amália. Encontraram-na caída no chão. Estava morta.
Quando a vizinhança percebeu o sumiço de D. Amália, a primeira teoria sobre seu sumiço era de que seus gatos haviam devorado seu corpo enquanto a velhota dormia. Coitados. D.Amália morreu de indigestão: havia comido seus 37 gatos sem um motivo aparente.

Outra parte do jornal que achei muito interessante, mas que passou desapercebida pela opinião pública em geral, foi a reclamação da Associação de Moradores da Rua Dorival, (a AMADOR) num dos subúrbios da Central do Brasil. Há dias que um bueiro estava transbordando, tornando o lugar, já tão abandonado pelas autoridades, insuportável. O cheiro estava deixando os moradores da localidade enjoados, e grande parte dos habitantes da Rua Dorival não conseguia mais respirar direito. O inusitado da história é que bueiro estava despejando Channel n° 5 pelas ruas, e não esgoto não tratado.

Tem também o anúncio do Motel Boa Cama com sua incrível promoção: Pague o período de 4 horas entre 13:00 e 16:30 e ganhe um almoço executivo. “Porque no Boa Cama, comer são as DUAS melhores coisas do mundo!”.

É esse tipo de artigo que eu procuro nos jornais. O mundo é mundo há muito tempo para mim. Prefiro esses microcosmos desconhecidos, essas zonas fronteiriças ao nada, onde o que acontece só interessa porque não tem importância.

25.1.03

O Esconderijo do Verbo


O esconderijo do verbo está naquela frase que você não disse que deveria ter dito. Ele se escondeu ali, no meio da sua garganta, criando um nódulo temporário, impedindo que suas cordas vocais vibrassem. Você tinha a frase ali, pronta, como dizem, “na ponta da língua”...só que ela não chegou até a língua.

O verbo se escondeu no meio dos fios telefônicos, um pouco antes de você ouvir o clique seco do outro lado.

Sujeito esperto que é, o verbo cria suas distrações, se utilizando do mimetismo. Ele cria uma distração, no momento em que aparece o silêncio constrangedor entre duas pessoas que não sabem o que dizer uma para outra.

Mas o verbo também sabe ser amigo, ao evitar que você xingue seu patrão quando ele te sacaneia ou te humilha na frente dos outros. Você sabe que o certo seria mandar seu chefe pro meio do inferno, mas sem achar o verbo certo, você não manda em nada.

O esconderijo do verbo fica nas entrelinhas do tudo.

23.1.03

Indisposição

Acordou estranhamente indisposto. Não queria levantar da cama, apesar da sua mulher o chamar para o trabalho. Não estava doente. Só não queria levantar da cama.

Não queria levantar da cama para ir pro seu emprego maçante de concursado federal, repartição, carimbos, memorandos, litros de café. Não queria o beijo de despedida dessa mulher que dormia ao seu lado a vinte anos, não queria ouvir “saudadinha, benhê”, aquela frase que ele detestava e ouvia da estranha que dormia a seu lado há tanto tempo toda vez que ele saía de casa para o seu trabalho maçante. Nunca reclamara do seu trabalho maçante, nem da estranha que dividia sua cama, nem do “saudadinha, benhê”, nem de nada. Ele não reclamava nunca. De nada.

Não sabia como tinha virado esse parvo, esse moleirão, que aceitava todas as pancadas que sua vida lhe proporcionava todo dia. Ele era feliz, antes. Não lembra bem até quando ele tinha sido feliz. Fez um esforço mental para se lembrar.

Quando ele era criança, com certeza ele era feliz. Rodar pneu na rua, subir em árvore, soltar pipa. Uma vida simples e comum, de moleque. Ele se esforçou pra se lembrar de cada passagem feliz que teve na vida, desde sua mais tenra idade. Era o que ele podia achar de consolo para essa vida que o havia dominado.

E se lembrou de tudo. Tudo mesmo. Ficou na cama. Não atendeu aos chamados da estranha que vivia com ele. Não foi ao seu trabalho maçante, nem ligou para avisar. Ele estava vivendo de novo. Na sua cabeça apenas. Era o que restava para ele.

E lembrou de cada dia, cada hora, cada momento, com precisão. E assim ficou. Dias, semanas, meses.

Ele ainda estava se lembrando do que tinha vivido com 10 anos de idade e sua barba já estava enorme. Suas articulações estavam travadas. Ele não se levantou da cama. Durante anos. Médicos, espíritas, equipes de TV. Todos foram ver o homem que dormia por anos, sem razão aparente.

Eles não sabiam. A razão era uma só. Ele estava vivendo. De novo.

17.1.03

O Desencontro

O Desencontro é uma encruzilhada onde todos sabem chegar, mas lá não há placas. Segue-se o caminho que o viajor decide. Mas ele invariavelmente está errado.

Todos que chegam à Desencontro esperam algum tempo, no meio da rua, por algo que não sabem ao certo o que é. Alguns se preocupam inutilmente com um possível atropelamento, que nunca vai ocorrer. Os carros não passam em Desencontro. Esses, de espírito mais prático, são os que mais sofrem para sair de Desencontro. Deve ter algo a ver com sua fisiologia.

Milhares de pessoas vão todos os dias à Desencontro, mas, misteriosamente, nunca há mais de uma pessoa na sua encruzilhada. Saber o que fazer em Desencontro é algo que se deve fazer só.

Algumas pessoas vão mais de uma vez à Desencontro. Depois de passar por essa experiência nem sempre agradável, eles tentam fazer um mapa de seus caminhos, mentalmente, e fazem diagramas em papeis e os levam consigo, para conseguir achar uma saída rápida. É um trabalho desnecessário. Nunca se sabe a hora exata de ir à Desencontro. E – novamente eles – os de espírito prático, que carregam seus guias amarrados às suas roupas, ao chegar em Desencontro têm uma terrível decepção: suas plantas, relembradas e desenhadas em papel manteiga com tanto cuidado se transformam em desenhos circulares, de muito pouca ou nenhuma utilidade.

Muitos dizem que os caminhos que se seguem à Desencontro são sombrios. Outros dizem que Desencontro leva à uma reta tranquila, com um destino feliz. Cada um acha a melhor maneira de sair de Desencontro.

Mas todos devem ir lá um dia.

16.1.03

Amigos para sempre


Nunca soube qual era o grande problema em sumir com um corpo. Um corpo! Um corpo é feito de carne! Existem milhares de coisas que podemos fazer com carne para que ela desapareça sem deixar vestígios. Carne é mole, macia. Você pode queimá-la, amassá-la, derretê-la com ácido ou picá-la em pedacinhos. Pronto, lá se foi o corpo.

Nos filmes os assassinos sempre são pegos quando se acha o corpo. Bom, as vezes não é por acharem o corpo, mas se você pensar que sem corpo não há crime, entende-se a importância de se dar um sumiço no morto.

Comecei a pensar nesse assunto depois que havia me decidido a matar alguém. Essa primeira decisão já me tomou algum tempo. Tinha alguns pudores em cometer tal ato, mas no final das contas me resolvi. Se formos pensar bem, só vivemos uma vez e eu acho que devemos experimentar de tudo enquanto temos tempo.

Queria sentir a sensação de acabar com a vida de alguém. Vocês vão pensar que eu sou um sádico maluco ou apenas um psicopata. Não é nada disso. Considero-me até uma pessoa calma e pacífica. Mas a vontade de cruzar a fronteira – estabelecida pela sociedade – entre o bem e o mal me excitava bastante. Restava apenas saber como fazê-lo de modo perfeito. E isso implicaria, é claro, em não ser pego. A experiência de passar um tempo na prisão não me apetecia tanto.

Minha primeira ideia era a de simplesmente esfaquear alguém no meio de uma rua movimentada do centro da cidade e sair correndo. Sou um cara de estatura mediana, sem traços característicos. Se eu dobrasse a primeira esquina me misturaria na multidão e nunca mais seria visto. Abandonei esse plano ao ver que ele não tinha um pingo de sofisticação. Não seria diferente de dezenas de assassinatos cometidos pelos pivetes todos os dias. Meu crime teria que envolver algo de intelectual.

Pensei então que o principal seria escolher uma vítima perfeita. Tinha que ser alguém cuja suspeita do crime nunca recaísse sobre mim. Alguém que eu não tivesse o menor motivo para fazer qualquer mal. Confesso que não demorei muito para achar a pessoa ideal. Mataria meu melhor amigo.

Não fiquem chocados! Eu nunca consegui ter essa ligação afetuosa profunda com ninguém. Pra ser sincero, acho as pessoas, em sua maioria, completamente enfadonhas. E o César, apesar de ser o meu melhor amigo, era terrivelmente tedioso. Era o tipo de cara que se acha o máximo. Para ele, cada frase que saía de sua boca era uma verdade absoluta e inquestionável. Acho que o que mais me incomodava nele era que ele era muito parecido comigo. E se ele resolvesse ter a mesma ideia que eu? Eu seria uma vítima em potencial para seu crime perfeito.

O que me fez escolher o Cesar definitivamente foi uma das suas frases de efeito que ele falou numa conversa entre amigos. Não havia ainda escolhido meu morto perfeito, até que ele lançou a pérola:

– Escolham sempre bem seus amigos. Eles podem ser eternos!

A frase estúpida e a cara de superioridade que ele fez após tê-la dito foram sua sentença de morte. Ele não só seria uma vítima ideal como merecia morrer.

Restava saber como matá-lo e como dar um fim em seu corpo. Não seria cruel com Cesar. Não se esqueçam, ele era meu melhor amigo. Ele não tinha culpa de ser uma boa pessoa para ser assassinada. Resolvi então dar-lhe um presente de despedida: ele morreria no mar, que ele tanto adora. Por ser sempre meu amigo e me ajudar a realizar uma experiência importante para mim, ele ganharia um passeio de barco, um dos seus passatempos preferidos.

Precisava arranjar um álibi para mim. Saí falando que ia fazer uma breve viagem, que resolveria uns problemas na Serra e à noite estaria em casa. Fui à marina e aluguei um barco com um nome falso. Paguei pelo dia inteiro, comentando com o encarregado que iria dar uma volta pelo litoral e que pegaria uns amigos em outras marinas. Assim ninguém acharia estranho se eu saísse com um amigo e voltasse só. Depois liguei pro celular do Cesar, convidando-o para almoçar. Disse que tinha alugado uma lancha, que iríamos ter uma refeição marítima.

– Por que isso tudo? Feliz com alguma coisa?
– Estou sim, Cesar. Vou fazer algo que sempre tive vontade de fazer e nunca pude. E você vai me ajudar nisso. Mas só vou te contar dentro do barco.
– Olha...Não me venha com homossexualismo, viu...Tenho muito trabalho no escritório e não vou ter tempo de te enrabar.
– Você é um humorista de mão cheia, Cesar. Estarei te esperando na porta do seu prédio, à uma e meia.
– Tá bom, amoreco...


Esse papinho rotineiro só reforçou minha vontade. Estava tudo pronto. Eu finalmente me tornaria um assassino. E o que era melhor, impune. Peguei Cesar no trabalho e corri para marina. Ele estava curioso e eu, como era de se esperar, ansioso. Fui calado até a marina, apesar dos insistentes pedidos para que eu explicasse o porque daquele meu sorriso. Entramos no barco servi o que seria a última refeição do Cesar:

– Você chama isso de “almoço”?
– Para de reclamar. Pode ser fast-food, mas pelo menos você está comendo com uma vista maravilhosa...E nem pagou nada por isso.
– Ta bom, feladaputa...agora me conta logo o porque de tanta alegria...
– Ok...fique de costas...quero te mostrar uma coisa.
– Ih...vê lá o que você vai fazer!!! Agora, olha só...virando viado depois de velho..


Quando ele se virou, acertei com um remo na sua nuca. Ele desmaiou imediatamente. Vi que sua cabeça sangrava. Não queria que ele morresse assim. Enrolei sua cabeça com um pano e comecei a executar o que tinha planejado como seu grand finale. Uns vinte minutos depois, ele acordou.

– Caralho, seu filho da puta!!! O que foi isso!?!?!?! Ficou maluco!!! Me desamarra!!! Vou te encher de porrada!!!
– Não, Cesar, não vai não...agora eu vou te explicar a razão da minha felicidade hoje.


Eu havia o amarrado firmemente com uma corda. E junto, amarrei um belo peso, de uns 15 quilos, só por precaução. Contei pra ele com detalhes tudo o que já contei para vocês. Expliquei-lhe minhas motivações, meus motivos e até o porque da minha escolha por ele. Apesar da minha eloquência, ele não ficou tão entusiasmado com meu plano como eu fiquei. Mas não tinha esperanças quanto a isso. Empurrei Cesar, que se debatia como um peixe–espada capturado, até a borda da lancha. Resolvi lhe dizer umas últimas palavras.

– Cesar....eu gostaria de dizer que não é nada pessoal, mas no fim das contas, até é. Sabe com são as coisas: como você mesmo disse, devemos saber escolher os amigos.

Quando fui atirar seu corpo ao mar, não percebi que uma ponta da corda ficou agarrada ao meu pé. Ao cair no mar, fui junto com Cesar, que se aproveitando da oportunidade, enlaçou seus braços amarrados ao meu pescoço. Isso, podem ter certeza, não estava nos meus planos. Afundamos uma vez, e eu, tentando me soltar do abraço que me seria mortal, acabei trazendo Cesar à tona junto comigo. Ele se segurava no meu pescoço com todas as suas forças, e enquanto nos digladiávamos, pude ouvi-lo gritar, antes de afundarmos pela última vez:

– Os amigos podem ser eternos...

10.1.03

Fórmula para se criar tempestades


Para se irritar o dia, basta esperar que ele surja radiante e não se dê a mínima para seu esplendor. Ficar na cama, imóvel, fingindo mal disfarçadamente um sono que não existe, é a maior das afrontas para um dia de sol. Para que a provocação se torne mais evidente, espere o dia lhe lançar um olhar de soslaio e pisque, enquanto finge dormir. O cinismo desse ato vai acabar com todo o bom humor do dia, fazendo com que ele desenvolva nuvens, primeiro aquelas brancas, bonitas, no fundo do horizonte. Se você tiver paciência bastante para continuar com a encenação, até o meio da tarde, o que era um dia lindo se transformará em pavoroso dia de chuva.


24.10.02

Engrenagem


Tentei fugir dessa máquina devoradora de vidas chamada tempo negando por completo sua existência. Não digo esse tempo-relógio, que de uma forma ou de outra, seguimos como escravos por pura falta de opção. Falo de algo mais complexo, daquele tempo-física, de que tanto falou Einstein, ou o tempo-filosofia, que tanto preocupou os antigos gregos.

Suas engrenagens invisíveis não são menos mortais porque etéreas. No seu status de "abstração", o tempo é, mesmo imperceptível, voraz e implacável. Nada resiste à sua fome. Cidades, pessoas e até monumentos erigidos com sua ajuda, como uma montanha, por exemplo, não representam nada diante da sua perenidade.

Passei a ignorar o tempo e seus efeitos. Via os dias, os meses e os anos passarem por mim, mas os imaginava - e eu os tratava como - meros subalternos do tempo, eram compartimentações do tempo criadas pelo homem, esse ser temporal e falho. Não lhes dava a mínima importância.

Por incrível que pareça, minha artimanha fez efeito. Ignorar o tempo me rejuvenesceu. Via todos à minha volta envelhecerem, seguindo o curso normal da putrefação cronológica de suas carnes, o que não ocorria comigo. Perguntavam-me sempre o que fazia para manter a aparência jovial por tantos anos. Eu respondia que ignorava o tempo. Os pobres ignorantes sempre riram dessa resposta.

Os primeiros contratempos foram, como vocês podem imaginar, o falecimento de várias pessoas que me eram muito próximas. Meus pais foram antes, como naturalmente haveria de decidir o feitor tempo. Mas quando minha esposa - contava com alguns anos a menos que eu - morreu encarquilhada e seca enquanto eu mantinha minha aparência de meia idade, comecei a notar a vingança sutil do tempo. Depois foi meu filho, que até faleceu cedo (tinha cerca de 50 anos), mas mesmo assim poderia passar facilmente como meu irmão mais velho.

O que o tempo não esperava ao me lançar essa maldição era a minha impassibilidade. Ao me tornar atemporal, eu simplesmente não conseguia mais me ater aos velhos laços sentimentais e emocionais que a humanidade rotineiramente se enreda. Senti a perda dos meus entes queridos? Claro, mas não era nada que me chocasse tanto.

E o tempo foi passando e eu, imbatível, segui ignorando sua existência. Vi guerras e pazes começarem e recomeçarem, demonstrando que mesmo sendo tirano, o tempo não é o melhor dos mestres para os homens. Vi os prodígios da ciência e da tecnologia mostrarem que o tempo, o mais paciente das divindades, também auxilia seus súditos. Tudo passava por mim, e enquanto mais eu aprendia, mais ansiava por conhecimento.

Mas eis que, séculos e séculos depois, o tempo finalmente me jogou em uma armadilha de onde não existia uma saída. Ele engendrou, pacientemente, essa forma definitiva de me dobrar, me obrigando a uma humilhante desistência.

Com todo meu conhecimento acumulado, eu era a pessoa mais sábia do planeta. Não que eu alardeasse esse fato, não queria a fama, que só me traria aborrecimentos. Meu conhecimento era apenas para mim, e eu desfrutava egoisticamente dele. Não escrevi livros nem treinei discípulos nas técnicas de superação do tempo. Eu era um ser uno e essa unidade me bastava. Mas sempre fui ávido por conhecimento e estava cada vez mais dependente de aprender. Essa foi a minha ruína. Depois de séculos e séculos de aprendizado e estudos, simplesmente não havia mais nada que eu não soubesse. Eu esgotara as dúvidas, o que decreta o fim das respostas.

Estava desesperado, mas sabia exatamente o que me restava fazer. Não havia mais sentido continuar vivendo. Eu decidi me matar. Quando eu ia executar o desmedido ato, o tempo, corporificado como nunca ninguém havia visto antes, me apareceu.

- Você viu onde seu orgulho lhe trouxe. Agora você sabe tudo, inclusive que de algumas engrenagens, não existe escapatória.
- Você tem razão. Eu mesmo me encurralei. Não me resta nada a fazer além de me matar.
- Não. Você não vai se matar. Isso seria uma dádiva para alguém que ousou desafiar o tempo. Você sabe o que eu quero, não?
- ....Sei. Sei exatamente o que você quer. Eu devia imaginar que você, cruel como sempre foi, iria me obrigar a esse tipo de humilhação.
- Acha mesmo que eu sou cruel? Será mesmo que ainda resta uma lição para você e justo eu, o tempo, aquele com quem você declarou guerra, terei que lhe ensinar? Eu não sou cruel, eu sou justo. Tudo tem seu ciclo. Você errou exatamente aí. Não compreendeu que tudo é parte de um único mecanismo. E que seu funcionamento depende que cada um dos seus elementos - ou engrenagens, se assim preferir chamar - esteja no seu devido lugar. Você cometeu o crime de parar essa máquina. Você nem tem idéia do mal que você causou. Na sua soberba, você quase abalou as estruturas do real. Não se pode fugir do tempo. Se você não fosse tão prepotente perceberia que, no fim, tudo que existe é eterno. Claro que não têm a eternidade efêmera que você encontrou.
- Eu percebo. E desisto. Sei o que você fará...pode me punir.

Depois disso, o tempo se esvaiu no ar. Assim que ele desapareceu, comecei a sentir minha pele esgarçar, me senti cansado e com a visão turva. Essa era a vingança definitiva do tempo. Ele iria me envelhecer. Ele cobrava agora os anos que lhe roubei. E vou sentir, literalmente, na pele, seu passar. Em sua marcha normal, o tempo é, na medida do possível indolor. Ao passar rapidamente, ele dói. Uma dor que apenas um criminoso como eu merece sentir. Eu vou morrer, mas só depois de sentir o peso dos milhares de anos que vivi desabarem sobre minhas costas.

Incurável


Então eu sou o errado
Eu sou o pária
O sem valor

Se é assim, eu assumo
Eu sou mesmo
Sou o plano que deu errado
A piada não entendida
A dívida não paga

Eu não quero saber da cura
Quando sei que essa doença
Não tem remédio

23.10.02

Estrago



Largou o lar sem a menor cerimônia, fugindo com um motoqueiro barbudo e cabeludo, cheio de piercings e tatuagens. Mais que a fuga, o chifre e o abandono de dois filhos pequenos para criar, o que irritou mesmo a parte abandonada foi o mau gosto da parte abandonante. Ele fora trocado por um estereótipo. Pior, um estereótipo de mau gosto, kitsch, brega. Isso, ele nunca perdoaria.

Sempre fora um cara comedido, educado, centrado. Ela era mais doida mesmo, mas não imaginaria nunca que seria a esse ponto. Mas ele devia ter desconfiado. Nas suas últimas discussões, ela sempre procurava leva-lo à loucura, era visível que ela queria que ele perdesse completamente o bom senso e a esbofeteasse. Ele chegou a ameaça-la na última briga.

- Infelizmente, você não é homem pra isso...quem dera fosse!


Ela saiu, trancando a porta do quarto. Ele saiu para arejar as ideias. Esteve mesmo a ponto de cometer o bárbaro ato de espancar uma mulher, a mãe de seus filhos. O que ela queria afinal de contas? Um marido, bom pai de família e responsável, ou um troglodita qualquer, que a esmurrasse pelo menor motivo?

Quando ele voltou, encontrou o armário do quarto meio vazio. Ela tinha ido embora, e levara suas roupas. Deixou um bilhete, explicando que não aguentava mais a monotonia dele, que ele era um chato e que fugira com contínuo do escritório dela, o motoqueiro cabeludo. No final da carta, ela ainda disse que esperava que agora, finalmente, ele tomasse uma atitude de homem.

Não tomou.

O tempo passou, mas não o ódio que ele sentia da mulher foragida. Um dia, sem mais nem menos, completamente sem aviso, ela aparece à porta de casa. Estava bonita, poderia dizer que a temporada com o brutamontes a fizera rejuvenescer.

- Você veio para ficar? - ele perguntou
- Vim ver as crianças. Do jeito que você é palerma, elas poderiam estar morrendo de fome...
- Se você realmente se preocupasse com isso, teria aparecido antes. 3 meses são mais que suficientes para uma criança morrer de fome.
- Sei disso...mas pelo menos comida você conseguiria arrumar, tenho certeza...
- Não preciso das suas ofensas. Responda: você veio pra ficar ou não?
- Não. Vim só ver o estrago que causei à sua vida.

Ele nem se deu ao trabalho de responder. Entrou no quarto e quando voltou, já chegou disparando o revólver que vinha trazendo na mão. Acertou três tiros no peito da mulher.

No chão, ela morria. E apesar da dor que devia estar sentindo, sorria.


4.10.02

Persistindo

Não,
Ainda não acabou.

Ainda não foi dito tudo
Ainda não matei a fome
Ainda não estou curado

Não,
Ainda falta um tempo

Falta crescer o bastante
Falta a vergonha na cara
Falta o pingo de senso

Não, ainda não
Quando acabar, eu aviso.

24.9.02

Vida: modo de usar


Eterno insatisfeito, resolvo todos meus problemas na base do chute: guio minha vida assim, descuidadamente, sempre triscando os postes e transeuntes. Não digo que é uma vida perigosa, mas devo respeitar alguns limites, claro. Não posso, por exemplo, deixar de gritar impropérios meia hora por dia pelo menos, ou corro o risco de deixar que as pessoas de ouvidos sensíveis se aproximem demais. Devo também lembrar sempre de mergulhar de cabeça em todo o tipo de incertezas que me apareçam na frente, sejam elas sobre minha futura vida ou minha certa morte. Fazendo isso, evito a acomodação e o mofo que acomete os recalcitrantes do cotidiano. Mau humor é a tônica, pois isso mostra minha aversão ao modo como tudo é conduzido bem debaixo do meu nariz ( e eu sou alérgico à feladaputagem que campeia nosso mundo). Viajar – mesmo sem sair do lugar – é vital para limpar o limo das articulações e das várias arestas corpóreas.

E, isso é muito importante, sempre sentir saudade do que não houve, desejando com ardor as novidades, mesmo que já velhuscas. Saber que o passado que não aconteceu também pode modificar, para melhor, nosso futuro.


17.9.02

Fim



Acabou. Não há de se procurar razões ou culpados. A coisa se deu assim: se esgotou por si mesma, sem chance de volta. É o fim.

Um fim anunciado, talvez. Mas quando não se faz nada para evitá-lo, ele vem. A inevitabilidade da coisa não chegou a transformar a urgência do que viria a acontecer em ação. Se se poderia evitar? Talvez. A questão é que o preço da impassibilidade é esse. Agora, tudo é findo.

Não há arrependimentos, contudo. Os ciclos vêm e vão, são coisas da vida. Não se chocar não é sinônimo de passividade. Querer demonstrar revolta ou perplexidade é, agora, um exercício inútil. É como se desejar fugir da morte. Não há saídas por aí.

E quem pode garantir que o fim de uma fase não será o começo de outra melhor? Quem pode afirmar que não se irão as amarras, não surgirão coisas novas, prontas para serem descobertas e exploradas? Quem garante que o fim não é o melhor que poderia acontecer?

Isso, é território que não nos pertence, ao qual não temos acesso. Vamos apenas vivendo, esperando por algo que nos revolucione a vida.

16.9.02

Amor de mentira


O sujeito acordou um dia, olhou para o lado, viu sua mulher e percebeu que ela lhe era uma completa estranha. Nada sabia sobre seus anseios mais profundos, o que ela realmente desejava para sua vida. Não fazia ideia de que sonhos podiam estar acalentando seu sono. Estava casado há 9 anos com a mulher.

Ficou olhando sua esposa. Até aquele dia sempre pensara que o motivo do seu casamento era o amor que nutria por ela. Mas o que era o amor? Isso, uma rotina de beijos de beijos de bom dia, o–que–quer–pro–café, almoços esporádicos no Centro da cidade, como–foi–seu–dia no fim da tarde, um jantar ou outro sozinhos ou com amigos e sexo mais ou menos interessante 3 vezes por semana, com certeza, não era sequer um invólucro de amor, nem mesmo seu mais pálido arremedo.

Saiu da cama sem fazer barulho. Juntou algumas roupas em uma mala, fazendo questão de esquecer ternos e gravatas. Pegou sua carteira e saiu.



A mulher, ao acordar, notou o sumiço das roupas e vendo a pasta 007 de couro do marido na mesa, notou que ele não tinha ido trabalhar. Achou estranho e ligou para o celular dele. Ele tocou a menos de 2 metros dela, de dentro do terno usado no dia anterior por ele.




Ele foi ao banco e zerou sua conta. Pegou cerca de 87 mil reais, colocou na sacola de ginástica que carregava e saiu. Foi a pé até a banca mais próxima e comprou um jornal. Foi direto nos classificados. Encontrou o que queria em pouco tempo:

Wanda
Loira tipo mignon, olhos azuis, 18 aninhos, muito liberal. Faz porque gosta. Atendimento em casas e motel. Tem privê. Tel: 9999–9999.


Ligou de um orelhão. Wanda parecia cansada, ainda não eram dez da manhã. Marcaram no apartamento dela.

Ele pegou o táxi e parou no prédio repleto de conjugados em Copacabana. Wanda apareceu, tinha acabado de tomar banho e mesmo não conseguindo esconder suas olheiras com a água e o sabão, era bonita. Ele tinha quase certeza que os 18 dela começaram a ser contados uns 5 anos depois do seu nascimento, no mínimo. Não que isso importasse.

Ele entrou sem falar nada. Ela já conhecia esses tipos esquisitos. Não ficou assustada, ele não parecia violento. Foi logo falando quanto seria o programa, mas ele o interrompeu.
– Quero saber quanto você cobraria para me amar…

Vendo a cara de estupor de Wanda, ele explicou sua proposta. Ele estava cansado da sua vida, tudo lhe era enfadonho. Estava cansado dessa vida real que lhe impuseram, da qual ele não teve forças para resistir. Queria emoções de verdade, nem que fossem de mentira. Queria paixões pagas, amores de mentira, mas que em sua falsidade, pelo menos parecessem com algo palpável. Perguntou quanto ela cobraria para deixá-lo morar com ela, por um mês. Pagaria o aluguel e os programas que ela faria à noite. As únicas condições eram a exclusividade – seria só dele, por um mês – e fingiria que o amava como nunca amou alguém antes. Ele queria devoção total, queria que Wanda o fizesse sentir não como o maior dos homens sobre a Terra, mas que ele fosse o único. Ela não sabia o que dizer, nem quanto cobrar e o que mais lhe assustava: esse era mais estranho que a maioria.



A mulher começou a ficar preocupada. O porteiro do seu condomínio de luxo tinha visto seu marido descer com uma mochila e roupa de ginástica, logo cedo. Ela ligou para o trabalho e nada, para a família e nada, para os amigos e nada. Não sabia onde ele poderia estar. Logo hoje ele foi resolver de aprontar uma dessas. Eles tinham um almoço marcado com a Marizete e o Edu. Onde andaria esse homem???




Wanda aceitou a proposta por 30 mil, recebendo mil por dia. Mil por dia era muito mais do que ela conseguia tirar, mesmo nas melhores épocas. Ela perguntou se ele traria algum tipo de mudança. Ele disse que a única mudança que era importante para ele nessa hora era a que fazia em sua própria cabeça. Wanda não deu importância à resposta. Já conhecia esses tipos esquisitos. Pediu para ver a grana e ele mostrou na sacola. Ela nunca tinha visto tanto dinheiro junto e pensou que o sujeito devia ser mesmo louco de andar por aí com aquela grana toda e pior ainda, mostrar para um garota de programa, na sua própria casa, que estava tão endinheirado. Ou ele tinha muita autoconfiança ou era mesmo maluco. Ele era mais estranho que a maioria.



No segundo dia desaparecido, ela resolveu dar queixa na polícia. Soube que seu marido tinha encerrado sua conta bancária e que não parecia nem um pouco preocupado com isso. Na delegacia, desconfiaram de um sequestro relâmpago, apesar de dois dias ser um tempo longo demais para ele não aparecer. A imagem do seu marido apareceu em todos os jornais e na TV. O engraçado é que ela nem conseguia ficar muito triste. Mas reparou que a foto usada na divulgação o deixava mais magro.




Wanda viveu os melhores dias da sua vida, assim como ele. Ela foi a melhor das mulheres e a amante mais devota. Ele gastou todo seu dinheiro com ela, em noitadas, presentes e viagens em profusão. Estava falido e feliz. No fim do prazo, ele se levantou, olhou Wanda deitada ao seu lado, e imaginou que, mesmo não tendo nada além de uma transação comercial com ela, achava que tinha sido mais feliz e que de certa forma a amava mais que àquela mulher com que havia se casado, há pouco mais de 9 anos. Foi embora sem fazer barulho, levando apenas o que tinha trazido no dia em que chegou ao apartamento. As roupas que comprara, os equipamentos de áudio e vídeo e outros eletrodomésticos foram deixados para traz. Wanda não acordou com sua saída.

Como se não tivesse demorado mais que alguns minutos, ele voltou para casa. Sua mulher ficou surpresa, mas se refez do susto em pouco tempo. Não teve arroubos de felicidade, mas também não foi indiferente. Pediu explicações, no que foi prontamente atendida. Após ouvir a história daquele homem com quem havia vivido tanto tempo, viu que não o conhecia. E se ele tinha o direito de procurar a felicidade, ela também tinha. Deixou-o na cozinha. Alguns minutos depois, voltou, mala em punho. Deu um tabefe na cara do seu marido e saiu, sem dizer palavra.

Nesse momento, ele teve a impressão de ter compartilhado primeira vez algo de real com sua esposa.



Wanda acordou sozinha na sua cama. Percebendo o que havia ocorrido, chorou. Ele não havia sequer dito seu nome para ela.


13.9.02

O literato


Amava tanto as palavras que resolver ter um contato maior com elas. Já não bastava apenas a visão ao lê-las ou a audição, ao ouvi-las. Queria que as palavras fossem percebidas por todos os seus sentidos. Precisava tocá-las, então deu-lhes volume. Precisou cheirá-las, então aromatizou-as. Mas o que ele queria mesmo era sentir o paladar das palavras.

Não começaria de forma abrupta. Começou engolindo letras e pontos. Então ele comeu o S, só para começar. Achava a forma sinuosa da letra apetitosa. Engoliu a letra de uma só bocada, lambendo os cantos da boca. Achou delicioso. Para rebater, engoliu um ponto de exclamação. Como sobremesa, um ponto e vírgula.

Depois de adaptado à dieta de letras, partiu para as palavras. Sempre desejou sentir o gosto da palavra "saudade", alardeada como uma das mais bonitas da língua portuguesa. Deliciosa. Ironicamente escolheu "delícia" como próximo prato do seu cardápio lexical. Também gostou.

Diferente das letras – as quais havia adorado todas – algumas palavras eram saborosas, outras não. O sabor da palavra "sutileza", por exemplo, era melhor que o da palavra "esdrúxula". Descobriu depois de algum tempo seguindo essa alimentação que certas palavras combinadas com outras podiam melhorar o gosto de ambas. Fazia receitas com as palavras. Os pratos eram as frases.

"Ora direi ouvir estrelas", "Já podeis da pátria, filhos" ou "Ser ou não ser, eis a questão" eram pratos mais pesados que "Alvorada, lá no morro, que beleza" ou "Olha que coisa mais linda". Catalogou as frases após degustá-las. Ditados eram ótimos petiscos. A poesia era excelente como uma salada ou uma entrada leve e a prosa era sempre o prato principal.

Sabendo como as palavras e frases combinavam em sua mesa, o caminho lógico era partir para os grandes jantares: os livros. Foi responsável por lautos banquetes, sempre bem acompanhado por Catulo, Camões, Cervantes, Dumas, Shakespeare, Machado. Era feliz, e melhor, bem alimentado.

Até que um dia ele comeu demais. Havia exagerado, tendo como refeição alguns filósofos alemães e uma ou outra página de Kafka. Passou mal. Correu ao banheiro e não teve outra saída: regurgitou todo seu lanche.

A ironia da coisa é que seu vômito ganhou o prêmio Jabuti do ano.

12.9.02

Ata-me


Ata-me
Assim
Ao seu mistério

Castra-me
Em mim
Minha luxúria

Ama-me
Enfim
Se eu te amo

Mata-me
Por fim
Porque eu mereço

11.9.02

O escultor de montanhas




Meu trabalho leva séculos, milênios. A paciência é minha maior virtude. Moldo meu material com calma, levando em consideração cada uma de suas arestas, cada uma de suas fendas. Esculpo cada uma das minhas obras com afinco e dedicação, gerando peças monumentais.

Eu esculpo montanhas.

Tenho como ferramentas os elementos. Cordilheiras inteiras, com sua beleza grandiosa, criadas, vagarosamente, pela erosão. Mares, rios e chuvas cavando seu corpo; o vento espalhando seus fragmentos, pouco a pouco; o calor do fogo da lava, moldando seu interior; e a terra, a grandiosa terra, a mãe de todos os elementos, alma do meu labor, compondo tudo.

Dedico minha vida ao meu trabalho.

Sou alheio aos homens e seus corpos frágeis e mortais e suas obras insignificantes. A eternidade está ao meu lado e crio minhas obras sob o signo da perenidade. Gerações e gerações vêm e vão e sequer parte do que faço pode ser percebido pela humanidade. E eles, demonstrando sua eterna tolice e arrogância, ainda ousam me desafiar, quando desafiam o que crio. Quantos já feneceram, ao tentar galgar seus cumes? Quantas cidades, com suas frágeis montanhas de concreto, foram engolidas com um simples expelir da seiva quente dos meus picos? E quantos não foram soterrados por seu mar sólido, que descendo de seu topo destrói tudo que não tem sua força?

Minhas obras são maiores que os homens.

Eu sou o escultor de montanhas. Não procuro reconhecimento. Nada além do resultado do meu esforço pode me recompensar. Meu trabalho remonta ao início dos tempos e no fim deles ainda estarei na minha lida. O que mais poderia me envaidecer?

Eu e minhas esculturas estamos nas bordas do tempo.

Oração


Acordei e fiz uma oração. Minha oração não se destinou a um deus velho e de barbas brancas que nos criou à sua imagem e semelhança, tampouco para o seu filho que se sacrificou por nós (?) sem que eu houvesse lhe pedido algo, e por isso mesmo não me julgo devedor de nada. Menos ainda para o Espírito Santo ou para o mistério da Santíssima Trindade, pois de mistérios a minha vida já está cheia. Não orei também pelas milhares de vítimas do terrorismo – seja ele oficial e aceito de bom grado pela comunidade cristã ocidental ou executado por xiitas – nem pelas crianças que morrem de fome nos quatro cantos desse planeta moribundo.

Orei, admito, para mim. Da forma mais egoísta que alguém já pode ter orado. Eu me permiti fazer isso. Não suporto mais qualquer tipo de dogma estabelecido. Misturo o sagrado e o profano, pecador confesso e convicto que sou. Rezei por meu próprio benefício, narcisisticamente. Orei para algo que não compreendo, mas sinto que existe. Não lhe vejo a face ou seus milagres, não o amo acima de todas as coisas e ainda assim, filho pródigo e ingrato, espero sua benção.

E não me arrependo nem em pensamento por isso.

10.9.02

Línguas


Então eu dou um beijo nessa boca e minha íngua invade sua boca e a sua língua invade a minha boca e assim vai, língua na língua, numa fala sem palavra, porque não precisamos de palavras nessa hora. E a volúpia das bocas e línguas nem precisa tomar conta dos nossos corpos atados, o beijo em si se basta e toda a volúpia cabe nesse espaço onde as duas línguas se cruzam. Sentimos o gosto um do outro e esse gosto é o mais saboroso que se pode provar.Dente, céu da boca, lábios, tudo fundido de uma forma única, tato e paladar, sentidos agora sem plural, uma sensação só, que desejamos nunca se separem, que esse momento não se acabe nunca.

Mas acaba.

E sua língua rollingstoneana começa a soltar palavras, como se essa fosse sua premissa básica, com se ela não tivesse sido criada para qualquer outra função, como se não soubesse fazer outra coisa. A torrente de sons e fonemas afoga nossos ouvidos, convidando a audição antes intrusa em nossa confraria de dois sentidos, sublimando com a urgência com que as ondas sonoras se propagam da sua boca tudo o que havia de volúpia.

Maldita é essa língua agora. Maldita é a língua que fala.