13.9.02

O literato


Amava tanto as palavras que resolver ter um contato maior com elas. Já não bastava apenas a visão ao lê-las ou a audição, ao ouvi-las. Queria que as palavras fossem percebidas por todos os seus sentidos. Precisava tocá-las, então deu-lhes volume. Precisou cheirá-las, então aromatizou-as. Mas o que ele queria mesmo era sentir o paladar das palavras.

Não começaria de forma abrupta. Começou engolindo letras e pontos. Então ele comeu o S, só para começar. Achava a forma sinuosa da letra apetitosa. Engoliu a letra de uma só bocada, lambendo os cantos da boca. Achou delicioso. Para rebater, engoliu um ponto de exclamação. Como sobremesa, um ponto e vírgula.

Depois de adaptado à dieta de letras, partiu para as palavras. Sempre desejou sentir o gosto da palavra "saudade", alardeada como uma das mais bonitas da língua portuguesa. Deliciosa. Ironicamente escolheu "delícia" como próximo prato do seu cardápio lexical. Também gostou.

Diferente das letras – as quais havia adorado todas – algumas palavras eram saborosas, outras não. O sabor da palavra "sutileza", por exemplo, era melhor que o da palavra "esdrúxula". Descobriu depois de algum tempo seguindo essa alimentação que certas palavras combinadas com outras podiam melhorar o gosto de ambas. Fazia receitas com as palavras. Os pratos eram as frases.

"Ora direi ouvir estrelas", "Já podeis da pátria, filhos" ou "Ser ou não ser, eis a questão" eram pratos mais pesados que "Alvorada, lá no morro, que beleza" ou "Olha que coisa mais linda". Catalogou as frases após degustá-las. Ditados eram ótimos petiscos. A poesia era excelente como uma salada ou uma entrada leve e a prosa era sempre o prato principal.

Sabendo como as palavras e frases combinavam em sua mesa, o caminho lógico era partir para os grandes jantares: os livros. Foi responsável por lautos banquetes, sempre bem acompanhado por Catulo, Camões, Cervantes, Dumas, Shakespeare, Machado. Era feliz, e melhor, bem alimentado.

Até que um dia ele comeu demais. Havia exagerado, tendo como refeição alguns filósofos alemães e uma ou outra página de Kafka. Passou mal. Correu ao banheiro e não teve outra saída: regurgitou todo seu lanche.

A ironia da coisa é que seu vômito ganhou o prêmio Jabuti do ano.

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