10.9.02

Umbigo

Os ventos da mudança
Vêm de todos os lados
E eu, sentado,
Espero
A impaciência e o enfado
Hão de me conseguir
O que quero
São meus aliados
Nessa de ir e vir

Eu espero
As guerras e as torres que caem,
Confesso,
Não me abalam
Só aguardo o que me vem
Preciso desse egoísmo
Para ir além

Hai Kai


Fim de inverno
O pássaro que canta
Antecipa a estação

9.9.02

A chegada


…e num dia de chuva, quando ele nem mais esperava, ela chegou. Sua chegada era o que ele mais desejava. Há muito precisava dela, mais que tudo. Foram anos de uma angustiante espera. Acordava com ela na mente, passava o dia ansiando por ela, perdia o sono a desejando. Depois de alguns anos, desistira de esperá-la. Pelo menos acreditava nessa desistência. Em seu íntimo, ainda tinha fé na sua chegada.

E ela chegou. E depois de alguns minutos de regozijo, sentiu algo estranho. Não estava feliz, mesmo tendo em suas mãos algo com o que sonhara durante tanto tempo.

Percebeu que, depois de tanto tempo, era a espera que o mantinha vivo. E o anticlímax da sua chegada foi o bastante para perceber que nada mais fazia sentido.

6.9.02

O Sorriso


A garotinha me olhou de dentro do ônibus escolar do Centro Educacional da Lagoa. Eu estava de óculus escuros, e talvez isso tenha lhe tivesse despertado a curiosidade. Ela me deu um sorriso, mesmo sem saber que eu a estava observando.

Se ela soubesse da raiva imbecil que tenho dela. Uma raiva sem propósito e burra, proveniente da inveja que senti da sua melhor sorte financeira, da sua infância recheada de brinquedos e guloseimas aos quais nunca tive direito, das suas bochechas rosadas, da sua educação excelente desde o maternal, do leque de opções que ela terá no futuro e que eu não tive e nem tenho mais tempo de ter.

A garotinha sorriu para mim. Eu não retribui o sorriso.

5.9.02

Retas





Por mais distantes que estejam duas retas paralelas uma da outra, o infinito é sempre seu ponto de encontro.




4.9.02

Uma outra manhã


Aspirei todas as lágrimas num dia de sol. Ainda gotejava o orvalho da fria noite anterior e nem os pássaros ousavam sair dos seus ninhos. Revi cada ato dessa vida que me esbofeteava a cara a cada manhã e finalmente compreendi porque cada queda é uma nova conquista. Saí nu pelo quintal da casa, fazendo questão de deixar as roupas junto com as culpas vãs que me vestiam na cama.
Quando voltei à casa, já era outra manhã, um outro dia.

3.9.02

Antraz


Existe essa amiga que ama as palavras e as utiliza muito, muito bem. Ela só escreve em prosa. Diz que não gosta de poesia. Coitada. Se soubesse que cada uma de suas frases, até aquelas que são mais displicentemente jogadas no texto, é repleta de imagens quase táteis. Se soubesse da poesia que sua prosa é carregada, como parágrafo, cada linha, cada palavra é um labirinto repletos de variáveis. Se soubesse como ela inverte o senso comum a cada novo escrito e se soubesse que essa é a função da poesia, revelar novos sentidos para as coisas que nos acostumamos a só ver a olho nu. Se ela percebesse que ela abre novos caminhos, novas visões, novos sentidos a cada nova leitura que nos proporciona…Se ela soubesse…

Se ela soubesse não diria que não gosta de poesia…ela nunca falaria esse tipo de besteira.

Acato


A cada
canto
do quarto

A cada
manto
da cama

A cada
canto
acalanto

A cada
"acato"
que faço

Um pranto

2.9.02

Audácia


Eu, logo eu, falho e desnecessário como sou, cometi a audácia de me imaginar capaz de criar algo. EU, que nem consigo conviver com o que criam para mim, me meti tentar inventar mundos e histórias, atos e pessoas. Nem meu mundo, minha história e meus atos eu controlo!!! Tsk, tsk, tsk…

Que ousadia…

Fuga


Pensei que todo o problema era não conseguir correr até minha pernas virarem geleia. Não ter o fôlego necessário para seguir desabaladamente até o fim do dia, para ficar longe dos olhos de quem eu detesto e quero o máximo de distância.

Mal sabia que para conseguir fugir eu devia era desaprender a andar. Desaprender a me mover. Até como pensar eu deveria esquecer como se faz. Devia virar um objeto, inanimado, no canto mais escuro da minha casa e deixar o tempo passar, com sua poeira inevitável, suas teias de aranha e suas lembranças inúteis.

De outra forma, não há fuga possível de dentro do seu próprio esquife.

30.8.02

MERDA!


Me aconselharam ir à merda. Claro que eu não sabia o caminho. Até queria ir mesmo, deve ser um lugar diferente, e apesar do cheiro, provavelmente é mais interessante que essa pasmaceira que insiste em reinar por aqui. Fui até a rodoviária, comprei a passagem e esperei o ônibus que iria à merda chegar.

Esperei três horas no ponto de ônibus, e nada. Cansei. Nem à merda eu consigo ir. Vou mandar tudo pra puta que pariu em breve…

Será que ainda tem passagem pra lá?

O bingo


Chovia gritantemente no centro da metrópole e ele, desgraçadamente, não tinha levado um guarda chuva. Isso não o surpreendia, era o cara mais azarado que conhecia. Saiu de casa com um sol do agreste no couro; ao sair da estação do metrô, Deus havia produzido "O Dilúvio – parte II" sem avisá-lo. Rotina para ele.

Entrou numa transversal à principal avenida da cidade. Estava completamente ensopado, como se tivesse surtado e resolvido tomar um banho com as roupas no corpo. Entrou no primeiro prédio que encontrou, nem viu o letreiro. Importante era se abrigar da chuva torrencial.

Entrou em um saguão amplo e muito iluminado, com neons para todos os lados e luzes espocando na sua cara. Como ainda era tarde e não existem boates naquele região, viu que entrara num bingo. Eh, logo num lugar onde não se vive sem ter sorte. Muito azar. Ficou na dúvida entre enfrentar a fúria dos elementos do lado de fora ou arriscar a ter um enjoo vendo as pessoas velhuscas que arriscavam suas aposentadorias no local. Preferiu a pneumonia inevitável e já ia saindo quando ouviu um anúncio saindo de auto falantes muito bem camuflados:

"Atenção! Vai começar o sorteio do grande prêmio! Procurem seus lugares! Segurança, fechem as portas!"

Não entendeu o porque de fecharem as portas, mas antes que isso ocorresse, resolveu sair. Ao chegar perto da porta, o leão de chácara – um sujeito que deixou o termo "leão" ridículo. Melhor seria "rinoceronte de chácara" – barrou sua passagem. Argumentou que não ia participar do sorteio, que odiava bingos, que tinha um compromisso inadiável. Foi inútil. O segurança o conduziu, não muito delicadamente, até uma mesa. Na mesa havia uma velhinha, dessas com o cabelo roxo. Sua pele tinha a textura igual a pele da Cleópatra. Isso, claro, se ela ainda fosse viva. Usava aquelas "roupas de velha" que de tão antigas já pareciam estar na moda de novo. Ela não faria feio numa rave, com aquela indumentária e aqueles cabelos. E claro, os enormes óculos escuros que escondiam metade do seu rosto vetusto e borrocado de maquiagem. Ela não demorou a tentar ser simpática.

– Nossa, meu filho…você é muito novo para estar aqui! Acho que nunca vi alguém tão novo nesse bingo.
– Pois é, minha senhora…eu nem queria estar aqui, mas não me deixaram sair…
– Você está aqui por engano? – falou a velha com uma cara parva de espanto.
– É...Por que?
– Meu Deus!!! Mas isso…

A velhota foi interrompida pelo apresentador, que anunciou o início do bingo. Os números começaram a girar e a ajudante do apresentador tirou a bolinha. Ele tentou perguntar para senhora o que afinal estava acontecendo.

– Shhhhh! Quero ouvir o número…Silêncio!!!

Achava que isso já era demais. Ameaçou levantar, mas ao seu primeiro movimento, sentiu o peso da "pata" do segurança em seu ombro. Não tendo outro jeito, pensou em se divertir. Pegou a cartela à sua frente e prestaria atenção no sorteio.

– Ateeeeeeeenção!!!! E o primeiro número é o 32!!! Será que dona Henriqueta consegue hoje o rim que ela tanto precisa????

Não havia entendido. Um rim? Como assim, um rim? Não aguentando a curiosidade, interpelou a velhota de novo. Sussurrou-lhe no ouvido.

– Mas minha senhora?!?! Que diabo de bingo é esse que dá como prêmio um rim???
– Você não sabe mesmo o que está fazendo aqui, não?
– E tem algo pra eu saber? Isso é um bingo!!!

Então a velhinha explicou-lhe a natureza daquele bingo. Ali, o grande prêmio não eram carros, eletrodomésticos ou dinheiro. Eram órgãos. Órgãos humanos. A mecânica era a seguinte: a pessoa que completasse primeiro sua cartela ganhava, da pessoa que tivesse menos números em sua cartela, o órgão que ela precisasse. O órgão era extraído ali mesmo no bingo, numa sala nos fundos do prédio.

– A senhora bebeu? – ele falou, meio exaltado.
– Shhhhh….as pessoas querem ouvir os números!
– A senhora é louca! – disse, dessa vez em voz baixa.
– Claro, claro…

Ao concordar com ele, a velhota tirou seus enormes óculos. No lugar onde deveria haver um dos olhos, existia um buraco horrendo.

– Eu já perdi uma vez, meu filho…

Aquilo já era loucura demais para ele. Ele se levantou e partiu em direção á porta, decidido. Nem viu de onde surgiu o soco no estômago. Caiu no chão, gemendo e olhando o tornozelo do rinoceronte de chácara, ouviu seu delicado pedido para que voltasse ao seu lugar. Não via saída. Tinha que participar mesmo da brincadeira. Só temia, como sempre, seu azar. E além do mais, depois daquele soco, ele bem precisava de um baço novo.

43, 56, 21, 19, 33 – ponto! – 15, 31, 11…os números eram cantados, um após o outro, e ele tinha apenas uma pedra na cartela. A situação estava ficando desesperadora. A velhota ao seu lado, por exemplo, precisava de apenas mais quatro números para arrancar-lhe os olhos da cara. E ele ouvia cada novo número, cada nova comemoração nas outras mesas e nada de saírem seus números com pavor.

20 – opa! – outro número para sua cartela. Ele já estava ouvindo os velhos a sua volta falando que só faltavam 2 ou 3 pedras e que finalmente iam conseguir um rim, um fígado, etc. Se essa situação não se resolvesse em pouco tempo, seu coração estaria inutilizado, o que poderia ser uma pena para o vencedor. 03 – eba!!! – mais um.

O suor descia pela sua nuca. Ele tremia. Olhava para trás, pensando num plano de fuga que se revelava inviável com aquele brutamontes o vigiando de perto. Mais duas pedras e ele, com certeza, sairia mais leve do bingo do que entrou. O apresentador se pronunciou.

– Três pessoas estão por um número para ganhar o prêmio. Duas pessoas têm apenas 3 números e serão os "gentis" doadores…Chegou a hora de chamar nossos queridos ajudantes! Que entrem os "médicos"…

Abriu-se uma porta lateral e no meio de uma cortina de fumaça e efeitos visuais entraram dois sujeitos vestidos como médicos prontos para uma cirurgia. Só que sua roupa era preta, como as de um carrasco. Um trazia um bisturi na mão e outro um tubo de oxigênio.

– Pelo menos eles anestesiam o doador – falou a velhota – Me diz uma coisa: você usa óculos?

Ele se controlou para não esganar a velha. E quase voou no pescoço enrugado da senhora quando ela disse que estava torcendo contra ele. O outro doador era bem mais velho. Ele só desejava que todo seu azar ficasse acumulado nos olhos. Aí a velhinha ia ver o que é bom para tosse.

O globo girou com os números, a assistente de palco apertou a alavanca, pegou a bolinha e passou para o apresentador. O apresentador fez mistério, rufaram tambores pelo sistema de som, metade dos anciãos presentes estavam prestes a ter um ataque cardíaco e então é cantado o número.

– 07!!!!

O grito de bingo veio junto com o grito de alívio dele. Pela primeira vez na vida dera sorte em alguma coisa! Na sua alegria, nem reparou o desespero do sujeito que foi recolhido pelos "médicos" de preto, nem a decepção na cara da velhota ao seu lado, que chorava por não ter ganho o prêmio, borrando apenas um lado do rosto.

Se levantou, cantando. Logo após o anúncio do vencedor, abriram as portas do bingo. Ele passou pelo segurança tirando sarro, mostrando-lhe a língua. A chuva tinha passado, tudo estava perfeito. Ele chegou a imaginar uma nova vida, longe da sua contínua má sorte, uma vida onde as coisas começassem a dar certo para ele. Estava com o espírito leve, flutuando pela rua, praticamente.

Estava tão feliz que se distraiu e atravessou a principal avenida da cidade com o sinal aberto ao tráfego. Foi colhido por um ônibus. Ficou entre a vida e a morte. Depois de 2 semanas na UTI, veio a falecer. Ele precisava de um transplante. E não arranjaram nenhum doador para ele.

29.8.02

Solene


Não é porque te entrego, solene
As rédeas do que faço
Nem por querer colorir meus dias
Com o significado oculto do que dizes
Que lhe devoto admiração
Tão longe é o contato
Que nem existe
Mas celebro, dia a dia
O que temos
Não é mensurável
Nem tátil
Mas sua força tênue
É o que me faz singrar as palavras
Como um mar revolto
Não me obrigo a vasculhar sentidos:
Corto meu cabelo com fogo
Rasgo minhas veias com o vento
E o sangue que agora flui intenso
É minha humilde oferenda

28.8.02

A Salada


– Quero comer jabuticaba!

Quando casei com a Paula, não imaginava que ela era o tipo de mulher que teria desejos na época da gravidez. Ela sempre foi uma mulher séria, não acreditava em crendices e nem se deixava influenciar pelas besteiras que suas amigas esotéricas falavam. Não que ter desejos esquisitos durante a gestação fosse coisa esotérica. Tá mais pra crendice popular mesmo, coisa dos nossos pais e avós.

Começou de leve, eu nem percebi que eram "desejos" na acepção gestante da coisa. Era um cachinho de uvas durante a novela, uma pizza portuguesa antes do jantar, nada de muito anormal. Mas quando ela começou a pedir coisas que não era habituada a comer ou que nunca sequer tinha visto, eu logo vi o que era. Foi por volta do 4 mês que eu comecei a sacaneá-la:

– Tsk, tsk, tsk…Logo você, minha filha, com desejo?
– Não é desejo! Qual o problema de querer umas carambolas?
– Não haveria nenhum problema se não fossem 3 da manhã!

Como vocês podem ver, os horários começaram a parecer absurdos também. Não me importava, nunca precisei acordar cedo mesmo e eu achava até engraçado suas manias. A cada dia, era uma coisa diferente. E eu sempre me esforçava pra conseguir o que ela queria. Depois do 5 mês, conversando com a minha mãe, ela soube da lenda dos "desejos não realizados". A praga era o nosso querido filho nascer com cara de nespera ou de bife de fígado, caso ela não conseguisse comer as iguarias desejadas.

O tempo foi passando, e pra meu tormento, os pedidos começaram a se sofisticar. E não interessava a hora. Podia ser às 11 da manhã ou as 3 da madrugada, eu tinha que largar o que estava fazendo e me virar para conseguir o que Paula queria. No sétimo mês ela entrou numa fase "gourmet": um dia era um Parfait de salmão, outro um ravioloni de estragão ao molho nantua com cavaquinha e pistache, outro um bobó de camarão carregado no dendê…Além de variados, seus desejos estavam começando a ficar caros demais. Mas eu não podia ficar regateando num momento como esse. Não seria nada legal ter um filho com as feições de um tartar de atum com crème fraîche.

E não pensem que isso foi o pior. Quando Paula estava prestes a dar à luz, no meio do nono mês, ela me acorda, por volta da meia noite e me faz o pior de todos os pedidos. Ela queria uma salada de rins. Perguntei o que diabos era uma salada de rins e ela me ditou a receita, vinda diretamente de sua cabeça alucinada. Era uma mistura de rins de várias espécies de mamíferos e aves levemente cozidos, temperada com várias iguarias orientais raríssimas e verduras e legumes, quase todos fora de época. E tinha que ser naquela hora. Uma demora a mais e nosso filho nasceria roxo e com cara de víscera.

Anotei com rigor científico todas as dicas do..ahn…prato inventado pela minha esposa. Saí de casa a cata de todos os ingredientes, regateei com açougueiros, acordei feirantes, esmurrei portas de delicatessens e no fim, estava quase tudo pronto para o preparo. Quase, porque o rim de javali estava em falta no lugar onde eu comprava carnes exóticas. Eu já era amigo do açougueiro, tamanha era a minha freqüência em seu matadouro chique. Ele já me quebrara o galho milhares de vezes, mas dessa vez ia ser impossível.

Fui pra casa preocupado. E se ela reclamasse da falta do ingrediente? Ela era capaz de parir um rim ali, na minha frente. Resolvi acreditar que tudo era psicológico e ia fazer a salada de rins sem avisá-la da falta do rim de javali. No meio de tantos rins e temperos, ela não ia conseguir indentificar a falta de algo que ela nunca havia provado na vida.

Fiz o prato, levei pra Paula, que comeu tudo com muito (irch) gosto. Antes de dormir, como que lendo minha mente, ela me pergunta se eu tinha arranjado todos os ingredientes. Eu, claro, disse que sim, que ela ficasse tranqüila. Só pedi que ela não exagerasse tanto no próximo, ou quem teria o filho seria eu.

Não dormi bem. Tive sonhos horríveis, como um em que Paula dera luz a um par de rins, e o médico ainda batia nos órgãos, para fazê-los chorar. Em outro, um javali me perseguia com um dos seus rins fincado em uma das suas presas. Acordei desesperado. Não com os pesadelos, mas com uma dor isuportável no baixo ventre. Paula acordara junto comigo. A bolsa havia rompido.

Corremos para a maternidade, eu gemendo no carro de um lado, Paula do outro. No hospital, Paula foi para um quarto e eu fui parar em outro. Estava, vejam vocês, com uma crise renal braba. O médico me disse que, por algum motivo desconhecido, os pequenos cálculos que deviam estar nos meus rins se moldaram, virando uma única e grande pedra. E ela estava tentando sair pela minha uretra, o que causava a dor. Ela tinha que ser destruida, o mais rápido possível. Teria que fazer uma radiografia para ver o tamanho exato do cálculo.

No outro quarto, meu filho nascia, saudável e, o que era melhor, com feições humanas. No meu quarto, a imagem na tela computadorizada mostrava o enorme cálculo que tentava rasgar minhas tripas. Tinha a forma de um feto.

27.8.02

Revelação


Esse garoto, que eu e minha esposa demos tanto carinho, tanto amor. Nunca faltou nada para esse menino. Agora eu me pergunto se a culpa é minha, se as minhas viagens me afastaram demais do garoto. Será que se eu não fosse sargento da marinha isso tudo teria acontecido? Não…a culpa não podia ser minha, não mesmo. Eu dei para esse menino a melhor educação que eu poderia ter dado. E ele me responde dessa maneira...me traindo. Porque, sim, isso era traição. Eu já tinha na mente o futuro brilhante que ele teria na marinha, teria sido tudo o que eu não consegui ser…E ele me dá essa punhalada…Isso TEM que ser culpa da mãe dele. Sempre mimou muito esse menino…boa coisa não podia dar…




Ah, meu Deus…Claro que eu ainda vou amá-lo. Ele é meu filho. Essa revelação não muda em nada o meu amor por ele. Mas por que, Deus, por que?!?! Eu nunca deixei faltar nada pra ele. Ele estudo sempre onde quis, sempre teve os amiguinhos que quis, nunca o proíbi de nada. Mesmo quando o brucutu do seu pai estava em casa – nas raras vezes em que ele estava em casa – e não deixava você sair para onde quisesse, eu te deixava ir, não importando o quanto eu fosse ouvir dele depois. Ah….juro, não vou deixar de amá-lo, meu filho…E vou respeitar essa sua…tendência…mas me preocupa sua alma…Isso é anti-cristão…pense em Deus e como ele vai encarar essa sua vida em pecado!!!!




Não sei como eu posso estar me controlando dessa forma. É muita coragem desse…moleque falar isso para mim e eu não lhe arrebentar as fuças. Que disparate! Mas a culpa é minha, só pode. Se fosse no meu tempo, meu pai já teria me convencido a retirar o que eu disse com duas bordoadas. Mas eu sou muito controlado…E isso é até bom…eu podia matar o garoto.




Já até imagino o que seu pai vai falar pra mim. "Você mimou demais esse garoto!"…ele sempre diz isso. E, agora, começo a achar que ele tinha razão. Mas o que eu podia fazer? Eu te amo mais que amo a mim mesmo, meu filho.Não há nada que você não me peça que eu não faça na hora. Mas…isso!!!!…Já é demais…E meus netos? Eu que planejava ser avó em pouco tempo, cuidar daquelas criancinhas tão bem como cuidei de você…e agora? Terei cuidado bem de você
mesmo???




Não vou mais falar com ele. Não vou mais olhar para ele. Para mim, ele está morto. E é bom ele sumir da minha vista rápido…ou ele acabará morto para todo mundo…




Meu Deus…Onde eu errei? Não…foi a ausência desse pai dele…meses e meses viajando, sem um exemplo masculino dentro de casa…Esse que eu chamo de marido, que sempre colocou a sua carreira a frente da família…E se não fosse meu filho, minha cria, saída do meu, MEU ventre, eu teria colocado um par de chifres nele. Com MEU filho, eu já tinha alguém pra amar e cuidar, não precisava dele pra mais nada. Já meu filho, MINHA criança, precisava dele. Precisava de um pai por perto, pra educá-lo, mostra-lhe o que é certo…e onde ele estava? Viajando. Sempre.




(…)




Nunca pensei que uma simples revelação como a minha fosse causar tanto mal, ou melhor, trazer tanto mal à tona. Eu não percebi que a hipocrisia era o que levava o casamento dos meus pais adiante. Não queria a separação dos dois. Não foi essa minha intenção depois de falar a simples frase "Mamãe, eu gosto de garotos"…Não queria que minha mãe ou meu pai se culpassem. Não é nem questão de culpa. Como, culpa? Culpa de que? Se eu gostasse de garotas, de quem seria a culpa? Agora minha mãe vive sozinha, depois que seu anúncio de que ia se separar de papai o matou do coração. Vive na igreja, o dia todo. Diz que rezando pela minha alma. O que eu posso dizer para ela é que da minha alma, cuido eu. Vivo com quem eu amo, não incomodo ninguém…por que deveria temer o fogo do inferno? Por que sou feliz?


Saldo negativo


Tinha ouvido falar que investir em emoções era a mais nova tendência do mercado. O boato dizia que os rendimentos eram muito bons e a liquidez era excelente. Foi lá, tirou tudo o que tinha no banco, seus fundos de renda fixa, vendeu commodities e investiu tudo em emoções variadas.

Só que o mercado virou. Tinha gasto milhões em emoções como amor, esperança, amizade, lealdade e emoções correlatas. As ações desses sentimentos caíram vertiginosamente. Se deu bem quem investiu em rancor, ganância, ódio, mais fartas e sempre em alta nos dias de hoje.

O saldo negativo na sua conta bancária nem o afetava tanto. Mas quando teve que vender seu último papel de "esperança" para ter com o que alimentar a família, ele viu que não tinha outra solução: se jogou do 13º andar do prédio da Bolsa.

26.8.02

Asas


vertigem . [Do lat. vertigine, 'remoinho'.] S. f. 1. Med. Estado mórbido em que o indivíduo tem a impressão de que tudo gira em torno de si ( vertigem objetiva), ou de que ele próprio está girando ( vertigem subjetiva).
(…)
3. Fig. Desvario, loucura. 4. Tentação súbita.


No começo é o desejo. Daqueles que consomem a pessoas, dos que as fazem andar nas nuvens, que tira todos os pés do chão. O flutuar é bom, apesar de absorver muito as partes. Perde-se a perspectiva então.

Sem perspectiva, a vista das alturas pode chocar os estômagos mais sensíveis. Passa-se mal. A sensação do voar ainda é excitante e não se quer perdê-la de jeito nenhum. Mas o vício do voo é o mais contraditório de todos os vícios. Fica-se preso ao prazer da liberdade.

Quando o hábito de voar já não sacia mais, quando vê-se que os grilhões estão mais fortes que as asas que se ganhou, ocorre o seguinte: não se suporta mais o ar. O único desejo que se tem é manter os pés no chão. Chega-se a se odiar o ato de voar, vertigens começam a acontecer. Antes o mundo girava em torno dos graciosos voos. Agora, gira-se, como um satélite, sem vontade, na órbita de um astro desconhecido. Tudo o que se deseja nessa fase é uma âncora, algo que possa manter o corpo preso ao solo.

O que não se percebe é que essa âncora em pouco tempo se transforma, do dia para noite, em novas asas. E que o turbilhão que suga para o ralo do desejo só para para depois lançar todo seu conteúdo no céu começou novamente a girar.

Revolução


Apesar de ser uma situação tétrica, merecedora de uma solução imediata, não adiantava reclamar. O presidente não se encontra. Nem em seu luxuoso gabinete, cercado de segurança e isolado de todos os problemas, nem se encontrava em suas ações. Dizer que trocava os pés pelas mãos era um bruta eufemismo em se tratando da figura. Ele era, sem rodeios, uma verdadeira mula.

E sua visão obtusa do mundo infectou seus assessores diretos, seus ministros, todo o legislativo e o judiciário. O caos era inevitável em meio a tanto descaso e incompetência. Até o próprio presidente reconhecia que o limite estava próximo. Mas o que ele, coitado, poderia fazer?

Seu desastrado pronunciamento em rede nacional foi o responsável por tudo o que aconteceu. Disse que sabia ser o principal responsável pela penúria do seu povo, mas que a culpa não era só dele, que em países como o que governava, os problemas que os afligem remontam de muito tempo, e no caso desse país com vocação de colônia, mesmo com as riquezas para ser metrópole, são males que vêm desde antes da Revolução Francesa. Disse que seu governo e sua nação estava presa numa espiral história inevitável e irreversível. Como Pilatos, lavou as mãos.

Depois do pronunciamento, o povo se revoltou. Chegaram como podiam à capital do país e, munidos com paus e pedras, tomaram o poder. Não foi de forma pacífica.

Como Luis XVI, o presidente morreu degolado.

23.8.02

A peixaria


Durante mais de 60 anos, a peixaria dos Hermelindos nunca amanheceu fechada. Desde sua fundação, o patriarca Josefo Hermelindo tinha como filosofia "banca aberta, peixe vendido". Não importava se estava chovendo, se era feriado ou dia santo. Todo dia era dia de trabalho.

Os Hermelindos eram muito famosos no vilarejo de Marataúzes, Espírito Santo. Tinham a fama de exímios pescadores e de serem gente de muita fibra. Eram muito amigos de quem eram seus aliados e inimigos mortais dos seus desafetos. Só uma coisa rivalizava com a fama de homens do mar dos Hermelindos: sua cabeça quente.

Carmelo era o atual patriarca do clã. Neto de Josefo, Carmelo já corria pelos seus 60 anos, e não saía mais na sua jangada. Deixava isso por conta dos seus 3 filhos e alguns netos que já tinham idade e corpo para puxada do arrastão. Carmelo tinha plena confiança em Cícero, Jonas e Celso, sua prole. Tendo parado de ir para o mar, Carmelo ficou responsável pela peixaria. E como seu avô, nunca deixou de abri-la, por motivo nenhum.

Confiava e amava os filhos, mas seu xodó era seu neto mais velho, Carmo. Era o primogênito de Jonas, que homenageou o pai batizando o filho com tal nome. Tinha 17 anos e pelo viço do corpo, seria tão forte como fora o avô na juventude. Apesar de ainda novo, já se destacava nas pescas e manobrava a jangada como poucos. O apego ente neto e avô era tanto que despertava ciúmes. Principalmente em, surpreendentemente, Jonas.

Jonas nasceu em um época de dificuldade para os Hermelindos, por isso foi o menos adulado dos filhos. Se achava um injustiçado, seu pai nunca lhe demonstrou muito afeto e isso o ressentia muito. Quando Carmo nasceu, ele viu a parcela de amor que lhe cabia por parte de seu pai ser transferida para seu filho. Tomado pelo rancor, muitas vezes Jonas tratava mal o próprio filho. Isso só reforçava as ligações entre Carmelo e seu neto, que o procurava a cada novo destempero do pai.

Até que um dia – dia em que nuvens negras vinham pelo sudoeste anunciando que uma tempestade se aproximava – deu-se a tragédia. Conversavam os três, avô, pai e neto, sobre a pescaria do dia anterior. Contavam casos e histórias de antigas jornadas ao mar e se divertiam. Apesar de estar rindo, Jonas sentia uma pontada em seu coração toda vez que via o olhar que seu pai lançava a Carmo. Um olhar de afeto profundo, que ele nunca teve o prazer de ser o objeto. Estavam decidindo se iriam ou não à jangada, tentar pescar algo na parte da tarde. Pescador experiente, Carmelo não achava seguro. O vento era de chuva da braba, dizia, não convinha arriscar. Na empolgação da juventude, Carmo desdenhou da opinião do avô, dizendo que poderia ir, nem que fosse por pouco tempo, voltaria antes da borrasca cair sobre o litoral. Carmelo abraçou o neto, afetuosamente, e disse que sabia que ele era um Hermelindo de verdade, que era muito mais corajoso que seu pai, Jonas, mas que isso seria uma imprudência que ele não permitiria que fosse cometida. Ao ouvir isso, Jonas sentiu algo lhe subir à cabeça, já era demais. Se seu próprio pai era incapaz de lhe demonstar afeição, não aceitaria ser humilhado, ao ver sua coragem ser comparada com a de um fedelho.

Jonas estourou de vez. Cuspiu, de uma vez só, toda a mágoa que sentia do seu pai. Falou da infância abandonada que teve, da indiferença que sempre sentiu vir do pai, seu maior ídolo. Que sabia que Carmo era muito mais querido que ele. Mas não deixaria que seu pai comparasse a sua coragem com a do filho. Se ele achava Carmo mais corajoso, ele teria uma prova do quão corajoso ele poderia ser.

Jonas correu até a jangada pegou o arrastão e iria pro mar, não se importando com as vagas que já começavam a rebentar na praia. Carmo foi atrás do pai, implorando para ir junto, ele ajudaria. Ao encostar no ombro do pai, Carmo levou uma bofetada que o atirou longe. Carmelo não aguentou ver aquela cena parado e foi em direção dos dois, gritando com Jonas, falando para que ele nunca mais batesse em Carmo. Então ele disse:

– Pode deixar, pai. Nunca mais vou bater nele.

Partiu pro mar encapelado, apesar dos protestos do pai. Carmelo teve que segurar o neto para que não entrasse no mar atrás do pai. Foram vendo a jangada se perder no horizonte negro. E começara a chover. Quando não mais podiam ver a barca, Carmo se desvencilhou do avô e foi para mar. Gritando no meio da tempestade, pediu desculpas ao avô, mas precisava buscar o pai.

Carmelo recebeu toda a tormenta. Ficou na praia esperando pelo filho e pelo neto até o tempo amainar. Horas depois, só chegaram à costa destroços de uma jangada. Parecia muito com a dos Hermelindos.

No dia seguinte, Marateúzes acordou de alguma forma diferente. O ar ainda era límpido e o mar, acalmado depois da tempestade, acariciava a praia de leve. Mas definitivamente, algo havia mudado.

Naquele dia, algo estranho aconteceu. A peixaria dos Hermelindos estava fechada.

22.8.02

Piedade


Não tenho pena das vítimas da fome
Nem dos flagelados pelas guerras
Nem dos pais que perdem seus filhos

Não tenho pena dos aleijados e deficientes
Nem dos que são solitários
Nem dos que têm doenças terminais

Não tenho pena dos sem teto
Nem dos sem terra
Nem dos desempregados

Eles estão vivos
E de alguma forma
Podem compensar suas penúrias

Dignos de pena mesmo
São os pobres de espírito

Tenho pena dos preconceituosos
E dos invejosos
E dos intolerantes.

Tenho pena dos donos da verdades
E das mentes decadentes
E dos que se mantêm na ignorância

Tenho pena dos sem esperança
Dos sem sonhos
Das pessoas-zumbi

Esses não têm jeito
Respiram, andam e falam
Mas não estão vivos há muito