23.8.02

A peixaria


Durante mais de 60 anos, a peixaria dos Hermelindos nunca amanheceu fechada. Desde sua fundação, o patriarca Josefo Hermelindo tinha como filosofia "banca aberta, peixe vendido". Não importava se estava chovendo, se era feriado ou dia santo. Todo dia era dia de trabalho.

Os Hermelindos eram muito famosos no vilarejo de Marataúzes, Espírito Santo. Tinham a fama de exímios pescadores e de serem gente de muita fibra. Eram muito amigos de quem eram seus aliados e inimigos mortais dos seus desafetos. Só uma coisa rivalizava com a fama de homens do mar dos Hermelindos: sua cabeça quente.

Carmelo era o atual patriarca do clã. Neto de Josefo, Carmelo já corria pelos seus 60 anos, e não saía mais na sua jangada. Deixava isso por conta dos seus 3 filhos e alguns netos que já tinham idade e corpo para puxada do arrastão. Carmelo tinha plena confiança em Cícero, Jonas e Celso, sua prole. Tendo parado de ir para o mar, Carmelo ficou responsável pela peixaria. E como seu avô, nunca deixou de abri-la, por motivo nenhum.

Confiava e amava os filhos, mas seu xodó era seu neto mais velho, Carmo. Era o primogênito de Jonas, que homenageou o pai batizando o filho com tal nome. Tinha 17 anos e pelo viço do corpo, seria tão forte como fora o avô na juventude. Apesar de ainda novo, já se destacava nas pescas e manobrava a jangada como poucos. O apego ente neto e avô era tanto que despertava ciúmes. Principalmente em, surpreendentemente, Jonas.

Jonas nasceu em um época de dificuldade para os Hermelindos, por isso foi o menos adulado dos filhos. Se achava um injustiçado, seu pai nunca lhe demonstrou muito afeto e isso o ressentia muito. Quando Carmo nasceu, ele viu a parcela de amor que lhe cabia por parte de seu pai ser transferida para seu filho. Tomado pelo rancor, muitas vezes Jonas tratava mal o próprio filho. Isso só reforçava as ligações entre Carmelo e seu neto, que o procurava a cada novo destempero do pai.

Até que um dia – dia em que nuvens negras vinham pelo sudoeste anunciando que uma tempestade se aproximava – deu-se a tragédia. Conversavam os três, avô, pai e neto, sobre a pescaria do dia anterior. Contavam casos e histórias de antigas jornadas ao mar e se divertiam. Apesar de estar rindo, Jonas sentia uma pontada em seu coração toda vez que via o olhar que seu pai lançava a Carmo. Um olhar de afeto profundo, que ele nunca teve o prazer de ser o objeto. Estavam decidindo se iriam ou não à jangada, tentar pescar algo na parte da tarde. Pescador experiente, Carmelo não achava seguro. O vento era de chuva da braba, dizia, não convinha arriscar. Na empolgação da juventude, Carmo desdenhou da opinião do avô, dizendo que poderia ir, nem que fosse por pouco tempo, voltaria antes da borrasca cair sobre o litoral. Carmelo abraçou o neto, afetuosamente, e disse que sabia que ele era um Hermelindo de verdade, que era muito mais corajoso que seu pai, Jonas, mas que isso seria uma imprudência que ele não permitiria que fosse cometida. Ao ouvir isso, Jonas sentiu algo lhe subir à cabeça, já era demais. Se seu próprio pai era incapaz de lhe demonstar afeição, não aceitaria ser humilhado, ao ver sua coragem ser comparada com a de um fedelho.

Jonas estourou de vez. Cuspiu, de uma vez só, toda a mágoa que sentia do seu pai. Falou da infância abandonada que teve, da indiferença que sempre sentiu vir do pai, seu maior ídolo. Que sabia que Carmo era muito mais querido que ele. Mas não deixaria que seu pai comparasse a sua coragem com a do filho. Se ele achava Carmo mais corajoso, ele teria uma prova do quão corajoso ele poderia ser.

Jonas correu até a jangada pegou o arrastão e iria pro mar, não se importando com as vagas que já começavam a rebentar na praia. Carmo foi atrás do pai, implorando para ir junto, ele ajudaria. Ao encostar no ombro do pai, Carmo levou uma bofetada que o atirou longe. Carmelo não aguentou ver aquela cena parado e foi em direção dos dois, gritando com Jonas, falando para que ele nunca mais batesse em Carmo. Então ele disse:

– Pode deixar, pai. Nunca mais vou bater nele.

Partiu pro mar encapelado, apesar dos protestos do pai. Carmelo teve que segurar o neto para que não entrasse no mar atrás do pai. Foram vendo a jangada se perder no horizonte negro. E começara a chover. Quando não mais podiam ver a barca, Carmo se desvencilhou do avô e foi para mar. Gritando no meio da tempestade, pediu desculpas ao avô, mas precisava buscar o pai.

Carmelo recebeu toda a tormenta. Ficou na praia esperando pelo filho e pelo neto até o tempo amainar. Horas depois, só chegaram à costa destroços de uma jangada. Parecia muito com a dos Hermelindos.

No dia seguinte, Marateúzes acordou de alguma forma diferente. O ar ainda era límpido e o mar, acalmado depois da tempestade, acariciava a praia de leve. Mas definitivamente, algo havia mudado.

Naquele dia, algo estranho aconteceu. A peixaria dos Hermelindos estava fechada.

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