28.8.02

A Salada


– Quero comer jabuticaba!

Quando casei com a Paula, não imaginava que ela era o tipo de mulher que teria desejos na época da gravidez. Ela sempre foi uma mulher séria, não acreditava em crendices e nem se deixava influenciar pelas besteiras que suas amigas esotéricas falavam. Não que ter desejos esquisitos durante a gestação fosse coisa esotérica. Tá mais pra crendice popular mesmo, coisa dos nossos pais e avós.

Começou de leve, eu nem percebi que eram "desejos" na acepção gestante da coisa. Era um cachinho de uvas durante a novela, uma pizza portuguesa antes do jantar, nada de muito anormal. Mas quando ela começou a pedir coisas que não era habituada a comer ou que nunca sequer tinha visto, eu logo vi o que era. Foi por volta do 4 mês que eu comecei a sacaneá-la:

– Tsk, tsk, tsk…Logo você, minha filha, com desejo?
– Não é desejo! Qual o problema de querer umas carambolas?
– Não haveria nenhum problema se não fossem 3 da manhã!

Como vocês podem ver, os horários começaram a parecer absurdos também. Não me importava, nunca precisei acordar cedo mesmo e eu achava até engraçado suas manias. A cada dia, era uma coisa diferente. E eu sempre me esforçava pra conseguir o que ela queria. Depois do 5 mês, conversando com a minha mãe, ela soube da lenda dos "desejos não realizados". A praga era o nosso querido filho nascer com cara de nespera ou de bife de fígado, caso ela não conseguisse comer as iguarias desejadas.

O tempo foi passando, e pra meu tormento, os pedidos começaram a se sofisticar. E não interessava a hora. Podia ser às 11 da manhã ou as 3 da madrugada, eu tinha que largar o que estava fazendo e me virar para conseguir o que Paula queria. No sétimo mês ela entrou numa fase "gourmet": um dia era um Parfait de salmão, outro um ravioloni de estragão ao molho nantua com cavaquinha e pistache, outro um bobó de camarão carregado no dendê…Além de variados, seus desejos estavam começando a ficar caros demais. Mas eu não podia ficar regateando num momento como esse. Não seria nada legal ter um filho com as feições de um tartar de atum com crème fraîche.

E não pensem que isso foi o pior. Quando Paula estava prestes a dar à luz, no meio do nono mês, ela me acorda, por volta da meia noite e me faz o pior de todos os pedidos. Ela queria uma salada de rins. Perguntei o que diabos era uma salada de rins e ela me ditou a receita, vinda diretamente de sua cabeça alucinada. Era uma mistura de rins de várias espécies de mamíferos e aves levemente cozidos, temperada com várias iguarias orientais raríssimas e verduras e legumes, quase todos fora de época. E tinha que ser naquela hora. Uma demora a mais e nosso filho nasceria roxo e com cara de víscera.

Anotei com rigor científico todas as dicas do..ahn…prato inventado pela minha esposa. Saí de casa a cata de todos os ingredientes, regateei com açougueiros, acordei feirantes, esmurrei portas de delicatessens e no fim, estava quase tudo pronto para o preparo. Quase, porque o rim de javali estava em falta no lugar onde eu comprava carnes exóticas. Eu já era amigo do açougueiro, tamanha era a minha freqüência em seu matadouro chique. Ele já me quebrara o galho milhares de vezes, mas dessa vez ia ser impossível.

Fui pra casa preocupado. E se ela reclamasse da falta do ingrediente? Ela era capaz de parir um rim ali, na minha frente. Resolvi acreditar que tudo era psicológico e ia fazer a salada de rins sem avisá-la da falta do rim de javali. No meio de tantos rins e temperos, ela não ia conseguir indentificar a falta de algo que ela nunca havia provado na vida.

Fiz o prato, levei pra Paula, que comeu tudo com muito (irch) gosto. Antes de dormir, como que lendo minha mente, ela me pergunta se eu tinha arranjado todos os ingredientes. Eu, claro, disse que sim, que ela ficasse tranqüila. Só pedi que ela não exagerasse tanto no próximo, ou quem teria o filho seria eu.

Não dormi bem. Tive sonhos horríveis, como um em que Paula dera luz a um par de rins, e o médico ainda batia nos órgãos, para fazê-los chorar. Em outro, um javali me perseguia com um dos seus rins fincado em uma das suas presas. Acordei desesperado. Não com os pesadelos, mas com uma dor isuportável no baixo ventre. Paula acordara junto comigo. A bolsa havia rompido.

Corremos para a maternidade, eu gemendo no carro de um lado, Paula do outro. No hospital, Paula foi para um quarto e eu fui parar em outro. Estava, vejam vocês, com uma crise renal braba. O médico me disse que, por algum motivo desconhecido, os pequenos cálculos que deviam estar nos meus rins se moldaram, virando uma única e grande pedra. E ela estava tentando sair pela minha uretra, o que causava a dor. Ela tinha que ser destruida, o mais rápido possível. Teria que fazer uma radiografia para ver o tamanho exato do cálculo.

No outro quarto, meu filho nascia, saudável e, o que era melhor, com feições humanas. No meu quarto, a imagem na tela computadorizada mostrava o enorme cálculo que tentava rasgar minhas tripas. Tinha a forma de um feto.

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