20.8.02

O Quadro


Era a pessoa mais alegre do mundo. Tinha seus problemas, é claro, como toda a humanidade. Mas seus amigos nunca o viram triste ou acabrunhado. Era a alma de qualquer festa, todos adoravam sua companhia, era o que chamavam de "pessoa alto astral".

Mesmo quando ficava triste, ele não demonstrava. Nunca o viram reclamando da vida ou maldizendo qualquer coisa. Escondia de todos seus queixumes. Detestava incomodar os outros com o que julgava serem problemas só seus. Seus amigos mais próximos até reclamavam disso. Achavam impossível que ele não quisesse desabafar algo, queriam ajudá-lo, sem saber sequer se tinham algum motivo para isso. Falavam que não podiam dizer "amigo é pra essas coisas" logo para ele, o maior de todos os amigos de todo mundo.

Tudo ia bem na sua vida. Resolveu fazer uma loucura: chamou seu melhor amigo, um pintor, e pediu que retratasse sua alegria em um quadro. Colocaria no centro da sua sala, para deixar exposta sua felicidade para os que o visitassem. Planejou a "inauguração" do quadro para seu aniversário, quando chamaria todos os seus amigos e lhes daria pequenas reproduções da tela de presente.

Seu amigo começou a pintar no dia programado. Ele estava bem disposto, mais feliz até que de costume. Tudo foi bem até o terceiro dia da pintura. Chegou em casa com – inacreditável – o rosto tenso. Seu amigo perguntou o que houve. Arranjara uma briga no trabalho. Pela primeira vez na vida, tivera uma discussão, e com pessoas que via todos os dias à anos. Pedira demissão. Não queria mais ver seus companheiros de serviço. Seu amigo notou que no dia ele manteve a mesma pose, exceto pelo rosto. Algumas rugas que nunca tinha notado estavam lá. E o sorriso era meio forçado.

Nos dias seguintes, o pintor começou a notar mudanças drásticas no amigo. Ligaram para ele do trabalho, pedindo que ele reconsiderasse sua decisão de ir embora. Seu amigo passou uma descompostura em que ligou, não voltaria nunca mais ao trabalho. Até xingou a pessoa que havia ligado. Quando outros amigos, de fora do seu antigo emprego, ligavam, dizia que não queria ver ninguém, que tinha problemas. Imediatamente, todos que ligavam se prontificavam em visitá-lo, querendo conversar, ver no que poderiam ajudar. Não aceitava a ajuda e quando insistiam, chegava a ser grosso com eles. O pintor não entendia o que poderia estar havendo com ele, a imagem da temperança. Agora era um sujeito irascível. E estava cada vez mais difícil encontrar qualquer traço de alegria para pintar.

Piorando a situação, os convites para sua festa, que já haviam sido entregues, começavam a voltar. Alguns alegavam problemas pessoais para não irem. Outros, os que tiveram alguma desavença com o ex-alegre, apenas devolviam o convite. Alguns até o ofendiam depois da devolução. Cada recusa em ir a sua festa o afetava profundamente. Vivia gritando pela casa, soltando impropérios para Deus e o mundo. Seu amigo pintor, agora o único admitido em sua casa até o dia da festa, não o reconhecia mais. Para pintar o quadro, começou a ver fotos antigas do amigo, agora que só faltava o rosto para o fim da pintura.

Uma semana antes do dia da festa, no dia planejado para o término da pintura, chegou mais um convite devolvido. Era o penúltimo. Foi a desculpa para ele destruir tudo que existia na sua frente. O pintor teve medo do amigo, nunca vira ninguém tão furioso em sua vida. Quando não havia mais nada quebrável na sua frente, ele se dirigiu para o quadro, gritando que, de alguma forma, o quadro roubara seu emprego, seus amigos, sua felicidade. O pintor se interpôs entre o amigo descontrolado e sua obra. Chamou-o de louco, disse que ele precisava de ajuda. Brigaram. Como nunca em sua vida sequer havia se chateado com alguém, muito menos se estapeado com outra pessoa, o pintor facilmente subjugou o amigo. O pintor foi até ao quadro e tirou o manto que o cobria. Estava pronto.

No chão, ele viu seu rosto, como não via há muito. Era a expressão da felicidade plena, tinha literalmente a felicidade estampada no rosto. Ficou chocado por um momento, sem saber o que fazer, sem saber o que havia ocorrido. Um quadro tão belo não podia ser a razão de tanta desgraça. O pintor arrumou suas coisas e partiu. Disse que não poderia mais ser amigo dele. E jogou um envelope em cima dele, no chão. Era o último convite para sua festa.

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