14.6.02

Operação


E quando ela terminou seu relacionamento com ele, ele decidira não mais amar. Refletiu e constatou que não vale a pena. Quando tudo são flores, é ótimo. Mas a tristeza da morte do amor não compensava. Também viu que não existe amor eterno. E resolvera que não queria mais carregar o peso de um amor defunto nas costas. Nunca mais.

Ele sabia que o amor surge do nada, e que era algo inesperado e incontrolável. O que fazer para evitar que surja o amor? Teve uma ideia. Arrancaria do peito seu coração.

Não queria meter médicos nessa história. Achou, com muita propriedade, que seria difícil encontrar um cirurgião que não se opusesse à essa ideia. Sabia que teria trabalho, mas ele mesmo se encarregaria da retirada do órgão. Um dia, chegando em casa, pegou uma faca e a esterilizou. Deitou-se, e começou a incisão. Nem pensara em anestesia ou qualquer outro paliativo para a dor. Achava que o sofrimento que sentia por amor era muito mais doído. Um cortezinho no peito seria moleza. Doeu muito mais do que esperava, mas era suportável. Viu seu sangue escorrer pela mesa onde estava deitado e tentou amenizar a hemorragia com as toalhas que havia reservado justamente para isso. Estancou como pode seu sangue e começou a abrir sua caixa toráxica. Era um trabalho hercúleo, tanto pela rigidez que não esperava encontrar em seu corpo como pela posição esdrúxula em que se encontrava. Mas foi em frente.

Sentiu seu coração pulsando e pensou mais uma vez se essa era mesmo a melhor solução. Lembrou de toda a felicidade que ele já lhe proporcionou e quase se arrependeu. Mas foi só pensar em todo sofrimento, dor e raiva que esse músculo lhe causou e tomou a decisão. Arrancou-lhe de um puxão. Essa dor foi mais forte. Quase não tinha forças para costurar o corte em seu peito. Mas no fim, deu tudo certo. Fraco pela falta de sangue, desfaleceu logo após terminar a sutura.

Ele se tornou uma pessoa mais tranquila. Não sentia mais aquele palpitar incômodo quando via alguém que já esteve dentro do maldito coração. Ficou um pouco mais amargo e taciturno, mas compensava. Seus amigos não acreditavam na operação que havia realizado em si mesmo, mesmo quando colocavam o ouvido em seu peito mudo. Para esses mais céticos, a solução era levá-los à sua casa. Guardava, em cima da sua tv, a prova: seu coração em um vidro com formol.

Havia uma amiga que era a mais cética de todas, e mesmo vendo o pote, não acreditava na sua história. Era uma amiga muito próxima e antigamente, muito querida. Antigamente porque não nutria mais esse tipo de sentimento, a afeição, por ninguém. Talvez, se ainda tivesse aquele músculo pulsando em sem peito, até se apaixonasse por ela. Mas ele não tinha mais coração.

Ela não acreditava que alguém pudesse viver sem amor, que dirá sem um coração! Investigou a história a fundo. Passava dias e dias com ele, querendo comprovar se realmente ele não tinha mais sentimentos. Ele não se abalava com a amiga. Ela estar ali ou não não mudava em nada sua vida. Essa vida estéril, sem amor, sem vida mesmo, que ele levava estava amargurando a amiga. Ela tinha que tomar uma atitude, achar uma solução. Pensou, pensou, pensou até que encontrou a saída.

A amiga convidou-o para sair e combinou de apanhá-lo em sua casa. Ela chegou mais cedo e ele ainda se arrumava. Ela esperou na sala. Ele pronto, foram jantar. No meio da refeição, a amiga pega na mão dele e se declara perdidamente apaixonada por ele. A vida triste que ele levava a havia tocado profundamente. Não conseguiria mais viver sem ele. Ela perguntou o que ele achava disso. Para surpresa dele, que esperava dizer que não poderia ajudá-la, se viu forçado a dizer que também a amava. A confusão em sua cabeça foi brutal. Como ele, sem coração, podia estar apaixonado? Sentia tremores e, inacreditavelmente, uma vontade incontrolável de chorar. E ele chorou. Ela o abraçou e se beijaram. Depois foram para casa, como um perfeito casal.

De manhã, ela teve que ir embora. Ele estava feliz. Confuso, mas feliz. Não entendia como poderia voltar a amar. Mas, definitivamente, estava amando. Ela se despediu com um beijo, deixando-o sozinho em sua confusão.

Mas assim que ela foi embora, descobriu o que houve. O pote não estava mais em cima da tv. Ela havia roubado seu coração.

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