10.6.02

Vozes


Levantou da cama sobressaltado, ouvindo vozes na sua cabeça. Era um sujeito cético até a raiz do cabelo, mas esse tipo de coisa – que estava ficando recorrente demais pro gosto dele – começava a incomodá-lo. Incômodo, no caso, era sinônimo de receio, medo, pavor, pra ser mais exato. Depois de acordar com uma voz de criança cantando no seu ouvido, ele abriu os olhos pra ver se tinha algum rádio ligado no quarto. Não tinha. Olhava para todos os lados, ofegante. Ele tinha certeza: era só em sua cabeça mesmo.

Voltou a deitar, imaginando se tinha poderes mediúnicos, se ia começar a "receber" santos ou pretos velhos ou exús ou que quer que fosse recebível. As vezes, tinha dúvidas do que era o pior, se o medo desse "dom" e sua desconhecidas implicações ou a vergonha que seria se ele acabasse tendo que ir a um terreiro pra ver o que afinal tinha. E se ele fosse e, no meio daquele batuque, ele começasse a rodar como um peru tonto e pedisse charutos e cachaça? Como ficaria a imagem dele?

A muito custo, conseguiu dormir de novo, algumas horas depois. Não por ter se tranquilizado ou pelo silêncio dentro da sua cabeça. Dormiu de exausto, de tanto esperar pela quietude na sua cabeça. Ele sabia que não poderia continuar assim. Assim que acordasse, iria resolver esse assunto.

Claro que ele foi a um médico. Sem crendices, ora diabos!, dizia. Foi a um neurologista. Pediu-lhe alguns exames, receitou uns remédios e pronto. O problema estaria terminado e…..nada, Não terminou. Nem as várias caixas de comprimidos tarja preta deram um fim às vozes. Foi a um psicólogo. Conversaram muito, fizeram regressão – em vidas passadas, fora soldado prussiano – receitou-se mais uns remedinhos. Sem efeito, novamente. Parecia que conversa não era a melhor maneira de acabar com o eterno diálogo na sua cabeça.

Dois mil anos de avanços médico–científico não resolveram seu problema, Decidira, relutante, a empregar métodos pouco ortodoxos de cura. Foi num centro espírita. Durante o culto, as vozes permaneceram num silêncio respeitoso. Mas foi colocar os pés na rua, parece que suas vozes resolveram colocar o papo em dia. Nessa noite, as conversar na sua cabeça foram tão animadas que não pregara os olhos. Sua última esperança era seu maior temor, um terreiro de macumba. Só de imaginar os efeitos de um ponto de umbanda sob as vozes o fazia tremer. Mas ele foi.

Surpreendentemente, assim que os atabaques começaram a ser tocados, ele começou a ouvir leves risadas em sua mente. Mais dois minutos, e as gargalhadas que ouvia dentro da sua cabeça o obrigaram a sair correndo do terreiro. Na rua, desesperado, ele berrou, implorando que as vozes se calassem. Inesperadamente, o clamor surtiu efeito. Até chegar em casa, não ouvira mias um pio.

Foi um silêncio restaurador. Chegou a acreditar que tinha resolvido seu problema. Vã ilusão. Ao deitar a cabeça no travesseiro, elas voltaram, e bem animadas. Conversavam sobre o terreiro. Ele não teve outra opção: perguntou qual era o problema com elas, as vozes. Explicou que, já que tinham que conviver juntos, seria melhor não atrapalharem tanto sua vida. E fez até a ameaça de acabar com a moradia se elas não se comportassem. Disse que acabaria estourando seus miolos se continuassem bagunçando tanto sua cabeça. Apesar de perturbadoras, parece que as vozes eram sensatas. Ficaram em silêncio depois da conversar que tiveram com ele. Depois de meses, tivera uma noite de sono tranquila.

Hoje ele coexiste com as vozes. Claro que ele ouve uns sussurros em horas inapropriadas, e tem que coibir com alguns "shhhhhh" quando começa a ouvir algum risinho. Estavam se dando até bem agora. O único incômodo foi que, com a intimidade criada, ele era frequentemente visto conversando sozinho. Na maior animação.

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