31.7.02

Sordidez


Ele sempre desejou ser um dos personagens dos contos do Rubem Fonseca. Achava glamouroso a violência, os detetives canalhas, as tramas e lugares sórdidos. Até a escatologia o atraía. Era meio estúpido, a despeito do seu ótimo gosto literário.

Vivia pensando em ter os diálogos mordazes do personagens de Fonseca. Não que tivesse a mínima chance de ter algum. Não conhecia pessoas mordazes e as que fugiam um pouco do comportamento obtuso que lhe era peculiar, não lhe davam atenção. Quando dava a sorte de encontrar alguém cínico ou irônico gostava de criar discussões, onde sempre era irremediavelmente arrasado pelos seus interlocutores. Como a sagacidade não era seu forte, demorava a responder aos argumentos dos conhecidos um pouco mais eloquentes. Gaguejava, suava e era sempre humilhado, servindo de chacota nas rodas que frequentava.

Tinha um empreguinho medíocre, onde executava uma função medíocre, de forma idem. Se prestassem bem atenção no seu serviço, o descobririam completamente desnecessário. Tanto que passava grande parte do seu expediente fumando no corredor, pensando em prostitutas, assassinatos, policiais corruptos e respostas loquazes para qualquer situação. Ficava angustiado com sua modorrenta vida e pensava em dar uma guinada radical em sua rotina. Só não sabia o que fazer pra que isso ocorresse.

Começou a beber todos os dias, talvez por influência de um dos personagens de "Feliz Ano Novo" ou "O Cobrador", não sabia. Aparecia bêbado no trabalho, e se antes suas ocupações no escritórios eram nulas, agora ele estava atrapalhando o serviço alheio. Ficava horas seguidas no corredor, fumando sem parar. Um dia, seu supervisor lhe chamou para uma conversa. Sua conduta havia se tornado incompatível com as regras da empresa. Deveria passar no dia seguinte para assinar o aviso prévio.

Era um emprego de merda, como costumava pensar, mas era sua única fonte de renda e, além da leitura obsessiva dos livros do Rubem Fonseca, tudo o que tinha que para fazer na vida. Saindo da firma, bebeu mais e foi, ébrio, para casa. Foi direto ao quarto do pai. Sabia onde seu velho escondia um velho 38 e pegou-o. Voltou para o bar e bebeu a noite inteira.Desmaiou de bêbado, no banco da praça, abraçado ao embrulho com o revólver. Sentia no tato o glamour que a arma trazia. Ia, finalmente, mudar sua vida.

Chegou trôpego e fedendo ao escritório. Foi direto à sala do seu supervisor. Vendo seu lamentável estado, o supervisor lhe recebeu com uma chuva de impropérios. Ele sentiu seu sangue, infestado de álcool, subir-lhe a cabeça. "É agora" , pensou, "vou mudar minha vida!". Partiu para cima do supervisor, acertando um soco no meio do nariz. A cara estupefata e o sangue que jorrou da fronte do supervisor o deixaram feliz. Os protestos do supervisor só serviram para aumentar sua fúria. Ele nem precisou do revólver, já posto em sua cintura. Pegou o abridor de cartas e enfiou na jugular do supervisor, um jorro vermelho manchando sua camisa. "Ainda não acabou", pensou.

Saiu para o corredor. A secretária foi sua segunda vítima. Vendo a camisa dele suja de sangue, começou a gritar. Foi interrompida pela bala que lhe atravessou o olho direito. A cena o deixou feliz: a secretária chorava um pranto rubro, apenas por um olho.

O estampido chamou a atenção das pessoas. Um segurança, correndo em sua direção, levou um tiro no abdômen e outro no braço, caindo agonizante. Um contínuo tentou tirar a arma da mão dele, sendo reprimido por um golpe no rosto. Enquanto chutava o rosto caído do contínuo no chão, outro segurança apareceu, acertando-lhe o ombro com uma bala. Revidou com impressionante precisão, transformando o peito do segundo segurança uma massa de carne sanguinolenta. O contínuo, se recuperando do golpe, consegue segurar suas pernas e derrubá-lo. Ele caiu já atirando no contínuo, abrindo um buraco em sua testa. Seu ombro alvejado estava em brasa, tinha apenas uma bala, estava caído no chão com as pernas presas por um contínuo morto. Enquanto o número de pessoas que chegavam ao lugar aumentava consideravelmente, ele pensou "Ainda não"…

O terceiro segurança escapou daquela que foi a última bala do velho 38 que ele carregava. Em seguida, tudo foi muito rápido. Levou um chute no rosto do terceiro segurança e nem viu que cinco pessoas se amontoaram sobre seu corpo, golpeando-o por todos os lados.

***

Seria julgado pela morte de quatro pessoas e pela tentativa de assassinato de mais duas. Seu pai, homem com certa influência, lhe arranjara um ótimo criminalista. A linha de defesa era a da insanidade do réu. Ele estava sentado, impassível. Não se podia imaginar o que passava por sua conturbada cabeça. O advogado dele era realmente bom, fazia sua defesa de forma perfeita. Se ele, além de ótimo advogado fosse telepata, leria na mente do seu cliente o pensamento incessante: "ainda não, ainda não, ainda não, ainda não, ainda não, ainda não…"

Inesperadamente, ele pede a palavra. O juiz assentiu, e, pela primeira vez na vida, ele foi brilhante. Com argumentos bem pensados e uma oratória convincente, explicou os motivos dos seus crimes e alegou não ser louco. Seu advogado, vendo seu caso indo por água abaixo, tentou fazê-lo se calar. Seu pai só voltou a sentar contido pelos policiais no tribunal. Agora tinha certeza que seu filho enlouquecera.

Foi condenado a três penas máximas. Foi levado diretamente para o presídio, ficando em um cela superlotada. Em poucos dias, notando sua boa condição e nascença, começou a ser maltratado pelos outros presos. Fora espancado e humilhado várias vezes. Fizeram dele a diversão da cela, a mulher de todos, sem direito sequer a ter um protetor. Limpava toda a cela sozinho, levava bordoadas de todos, sem motivo aparente, as vezes o deixavam sem comida, como castigo nem sabia porque.

Estava feliz.

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