15.8.02
Raso
Acordou sentindo-se superficial. Não no nível das ideias, onde até se destacava. Sentia-se leve no corpo, como se fosse uma folha de papel.
Teve medo de sair de cama e com o impulso tomado ir parar no teto. Sentia que tinha apenas duas dimensões. Se alguém se dispusesse, poderia pegá-lo e fazer dele um rolo, como uma planta de arquiteto em papel vegetal.
Se aventurou em levantar. Não saiu flutuando como temia, mas ainda se sentia leve, sem peso. Se vestiu. As roupas lhe dariam alguma massa, pensou. Não funcionou. A vestimenta que lhe cobria a nudez adquiriu suas propriedades corpóreas.
Começou a se desesperar. Resolveu não sair de casa. Só de imaginar o que poderia lhe acontecer na rua – o vento, as trombadas com as pessoas nas calçadas – tremia. Esperava sinceramente que esse problema acabasse rápido.
Mas não acabou. As horas, os dias, as semanas foram passando. Ele dormia, acordava, voltava a dormir e continua praticamente etéreo. Não sabia mais o que fazer. Não comia mais, não atendia o telefone. E o mais revoltante: ninguém deu por sua falta. As semanas viraram meses. Ele não definhava, mesmo sem se alimentar. E mesmo desaparecido, nada de procurarem por ele.
Desenvolveu uma teoria. Perdera a massa porque era, metaforicamente uma pessoa rasa. Começou a achar que não havia mesmo porque alguém procurá-lo. Todas as suas amizades eram superficiais, assim como seus assuntos, seus gostos, sua vida. Era uma espécie de ironia do destino.
Resolveu se matar. Abriu a janela do quarto, que desde sua mutação vivia fechada pelo medo que tinha das correntes de vento no 13º andar, e resolveu se jogar. De um pulo só, saiu flanando pela janela. Como ele esperava, seu corpo não caiu. Ergue-se no ar, como uma pipa contra o vento. Ao se ver voando, pensou que de repente sua vida até que valia a pena. Desistiu de se matar. Mas o que faria agora?
Pássaro de primeira viagem, não conseguia controlar seu voo. Seguia a vontade das brisas, as vezes indo acima dos arranha-céus, as vezes dando rasantes pelas avenidas repletas de carros e civilização. Quem o via, julgava ser um boneco de ar. Bem feito, mas um boneco. Cansado e meio enjoado das suas acrobacias involuntárias, começou a gritar por socorro. Mas ninguém o ouviu.
Uma corrente de ar quente o elevou, mais alto que nunca. O desespero e a falta de ar o fizeram desmaiar. Da rua, as pessoas apontavam para o balão que ia tão alto. Não conseguiam ver-lhe a forma.
14.8.02
Vida
A despeito dos lenços acenando
E dos choros de adeus
O barco parte
Não importam as vagas
Ou os caprichos das marés
O barco segue
Do outro lado
Há um porto
Novas pessoas choram
De alegria
O barco chega
13.8.02
Esfínge
Nunca esperei que isso fosse acontecer comigo, conosco aliás. Te encontrei – ou terá sido o contrário – tão casualmente. Acho que, no final das contas, são esses tipos de encontro que são os definitivos. Ou não, se analisarmos nosso momento agora.
Você fala, fala, e não diz nada. Sim/não, ser/não ser…Você não se decide. Talvez esse seja seu problema. Talvez esse seja o nosso problema.
Não me venha com essa dialética. Você está usando minhas armas, como sempre. O problema é que você é melhor com elas que eu mesmo. Eu me entrego sempre, esse é meu verdadeiro mal. E fui logo me entregar pra você, com seus mistérios, seus encantos escondidos…
Ah…sua verborragia me cansa, sabia?
Lá vem você com seus vocábulos guardados para nossas discussões. Não faça pose para mim. Sei da sua inteligência, sei o quanto você é esclarecida. Sei também que isso só realça seus segredos. Você é minha esfinge. Eu não te decifrei e agora você me devora. O mal é que não sou digerível: por isso você me vomita.
Não sou sua esfinge, amor. Não tenho segredos, nunca os tive. Sou transparente. Em momento algum te desafiei com meus mistérios inexistentes; nunca te ameacei com meu apetite. Não sou antropófaga. Não te devoro, nem física, nem psicologicamente. Se você foi vomitado? De certa forma, posso até concordar com isso. Você é indigesto.
Tudo bem. Nada de mitos para justificar o fim. Descobrimos agora onde errei, onde erramos. Você não tem estômago.
9.8.02
Shopping
Acordou de manhã e soprou o sono que ainda tinha. Somente ele fazia companhia à sua cama alemã, vencedora de um prêmio de design europeu. Esfregou os olhos, se espreguiçou e levantou. Foi até o banheiro. Banho quente (jacuzzi), barba (lâmina inglesa), escovar os dentes (Crest). Saiu renovado. Tomou um café da manhã saudável: frutas, suco, frios. Se arrumou. Se sentia bem e precisava se sentir assim para fazer o que pretendia.
Se arrumou com esmero. Colocou o melhor terno – aquele que ela adora – passou gel no cabelo, colocou o sapato italiano comprado na, agora mais que nunca, distante lua de mel. A gravata era da mesma procedência. Se vestiu como ela sempre pedia que se vestisse. Ele odiava se vestir assim, como um janota qualquer. Mas a ocasião exigia.
Colocou o Ray-Ban que havia ganho de presente dela no 1º aniversário de casamento. Se olhou no espelho. Estava realmente elegante. Ela adoraria. Isso, claro, se ela fosse vê-lo. Ela foi embora, e ainda levou a mala que ele havia comprado em Nova York para as férias na Riviera.
Pegou sua Walter PPK – era fã de James Bond – e apontou para sua cabeça. Antes de disparar, imaginou a cara dela vendo seu Armani sujo de sangue.
7.8.02
Desperdício
Desperdício é perder o contato com quem se gosta. Não só o contato físico, que no final, a despeito do que pensam as mentes lascivas e sexistas, nem é o mais importante. Falo de um contato mais sutil. Algo como mentes em sintonia, ou algo do gênero. E foi gratuitamente, assim, do nada – ou nem tão do nada assim. Erro eu, erra você, no fim erramos todos e perdemos a direção. Não que antes houvesse alguma estrada a ser trilhada, algum caminho em comum. Poderíamos, ao menos, poder mandar tchauzinho um para o outro, cada qual em sua trilha. Hoje? Nem isso. Não há mais diálogo, não há mais nada.
Será mesmo algo irreversível? Será que o que tínhamos é algo morto, putrefato, enterrado em catacumbas seculares? Não quero crer nisso, não mesmo. Mesmo as mais distantes paralelas se cruzam no infinito. E lá, nesse lugar hipotético, nesse Éden imaginário, estaremos tão perto que nossas mãos acenando poderão se tocar.
5.8.02
Carnaval
O pierrot escondeu minha colombina
Fugiu do baile com ela na mão
E para mim, abandonado e pobre folião
Nada além de confete e serpentina
Evoé, Momo
Como se na Quarta de cinzas
Não fosse eu o morto
Quem está por trás da máscara
Que pierrot é esse que brinca
E fica feliz com meu mal?
Minha fantasia, rasgara
Na minha folia, ele afinca
A lâmina com que cortou meu carnaval
Olê, olê, olê, olá
Sumiu minha colombina
De nada vale o que sobrar
31.7.02
Sordidez
Ele sempre desejou ser um dos personagens dos contos do Rubem Fonseca. Achava glamouroso a violência, os detetives canalhas, as tramas e lugares sórdidos. Até a escatologia o atraía. Era meio estúpido, a despeito do seu ótimo gosto literário.
Vivia pensando em ter os diálogos mordazes do personagens de Fonseca. Não que tivesse a mínima chance de ter algum. Não conhecia pessoas mordazes e as que fugiam um pouco do comportamento obtuso que lhe era peculiar, não lhe davam atenção. Quando dava a sorte de encontrar alguém cínico ou irônico gostava de criar discussões, onde sempre era irremediavelmente arrasado pelos seus interlocutores. Como a sagacidade não era seu forte, demorava a responder aos argumentos dos conhecidos um pouco mais eloquentes. Gaguejava, suava e era sempre humilhado, servindo de chacota nas rodas que frequentava.
Tinha um empreguinho medíocre, onde executava uma função medíocre, de forma idem. Se prestassem bem atenção no seu serviço, o descobririam completamente desnecessário. Tanto que passava grande parte do seu expediente fumando no corredor, pensando em prostitutas, assassinatos, policiais corruptos e respostas loquazes para qualquer situação. Ficava angustiado com sua modorrenta vida e pensava em dar uma guinada radical em sua rotina. Só não sabia o que fazer pra que isso ocorresse.
Começou a beber todos os dias, talvez por influência de um dos personagens de "Feliz Ano Novo" ou "O Cobrador", não sabia. Aparecia bêbado no trabalho, e se antes suas ocupações no escritórios eram nulas, agora ele estava atrapalhando o serviço alheio. Ficava horas seguidas no corredor, fumando sem parar. Um dia, seu supervisor lhe chamou para uma conversa. Sua conduta havia se tornado incompatível com as regras da empresa. Deveria passar no dia seguinte para assinar o aviso prévio.
Era um emprego de merda, como costumava pensar, mas era sua única fonte de renda e, além da leitura obsessiva dos livros do Rubem Fonseca, tudo o que tinha que para fazer na vida. Saindo da firma, bebeu mais e foi, ébrio, para casa. Foi direto ao quarto do pai. Sabia onde seu velho escondia um velho 38 e pegou-o. Voltou para o bar e bebeu a noite inteira.Desmaiou de bêbado, no banco da praça, abraçado ao embrulho com o revólver. Sentia no tato o glamour que a arma trazia. Ia, finalmente, mudar sua vida.
Chegou trôpego e fedendo ao escritório. Foi direto à sala do seu supervisor. Vendo seu lamentável estado, o supervisor lhe recebeu com uma chuva de impropérios. Ele sentiu seu sangue, infestado de álcool, subir-lhe a cabeça. "É agora" , pensou, "vou mudar minha vida!". Partiu para cima do supervisor, acertando um soco no meio do nariz. A cara estupefata e o sangue que jorrou da fronte do supervisor o deixaram feliz. Os protestos do supervisor só serviram para aumentar sua fúria. Ele nem precisou do revólver, já posto em sua cintura. Pegou o abridor de cartas e enfiou na jugular do supervisor, um jorro vermelho manchando sua camisa. "Ainda não acabou", pensou.
Saiu para o corredor. A secretária foi sua segunda vítima. Vendo a camisa dele suja de sangue, começou a gritar. Foi interrompida pela bala que lhe atravessou o olho direito. A cena o deixou feliz: a secretária chorava um pranto rubro, apenas por um olho.
O estampido chamou a atenção das pessoas. Um segurança, correndo em sua direção, levou um tiro no abdômen e outro no braço, caindo agonizante. Um contínuo tentou tirar a arma da mão dele, sendo reprimido por um golpe no rosto. Enquanto chutava o rosto caído do contínuo no chão, outro segurança apareceu, acertando-lhe o ombro com uma bala. Revidou com impressionante precisão, transformando o peito do segundo segurança uma massa de carne sanguinolenta. O contínuo, se recuperando do golpe, consegue segurar suas pernas e derrubá-lo. Ele caiu já atirando no contínuo, abrindo um buraco em sua testa. Seu ombro alvejado estava em brasa, tinha apenas uma bala, estava caído no chão com as pernas presas por um contínuo morto. Enquanto o número de pessoas que chegavam ao lugar aumentava consideravelmente, ele pensou "Ainda não"…
O terceiro segurança escapou daquela que foi a última bala do velho 38 que ele carregava. Em seguida, tudo foi muito rápido. Levou um chute no rosto do terceiro segurança e nem viu que cinco pessoas se amontoaram sobre seu corpo, golpeando-o por todos os lados.
***
Seria julgado pela morte de quatro pessoas e pela tentativa de assassinato de mais duas. Seu pai, homem com certa influência, lhe arranjara um ótimo criminalista. A linha de defesa era a da insanidade do réu. Ele estava sentado, impassível. Não se podia imaginar o que passava por sua conturbada cabeça. O advogado dele era realmente bom, fazia sua defesa de forma perfeita. Se ele, além de ótimo advogado fosse telepata, leria na mente do seu cliente o pensamento incessante: "ainda não, ainda não, ainda não, ainda não, ainda não, ainda não…"
Inesperadamente, ele pede a palavra. O juiz assentiu, e, pela primeira vez na vida, ele foi brilhante. Com argumentos bem pensados e uma oratória convincente, explicou os motivos dos seus crimes e alegou não ser louco. Seu advogado, vendo seu caso indo por água abaixo, tentou fazê-lo se calar. Seu pai só voltou a sentar contido pelos policiais no tribunal. Agora tinha certeza que seu filho enlouquecera.
Foi condenado a três penas máximas. Foi levado diretamente para o presídio, ficando em um cela superlotada. Em poucos dias, notando sua boa condição e nascença, começou a ser maltratado pelos outros presos. Fora espancado e humilhado várias vezes. Fizeram dele a diversão da cela, a mulher de todos, sem direito sequer a ter um protetor. Limpava toda a cela sozinho, levava bordoadas de todos, sem motivo aparente, as vezes o deixavam sem comida, como castigo nem sabia porque.
Estava feliz.
29.7.02
Narciso e o amor
Mesmo que a expressão "os opostos se atraem" carregue em seu cerne muito de verdade, não podemos deixar de levar em consideração o lado narcisísta do amor. Não existe amor possível sem que o objeto da nossa admiração não nos reflita, por pouco que seja. Temos a necessidade de nos reconhecer no objeto que amamos. Não há amor sem que não nos encontremos no outro, se quando encararmos o lago que ele é, não vejamos nossa própria face.
Se não temos um referencial nosso em quem amamos, o próprio amor se esvai. Narciso sem lago, sem reflexo, o amor onde não nos identificamos é seco, como um espelho d´água vazio. O amor olha para seu leito sedento e não se vê. Morre a míngua, esturricado, língua pra fora implorando por um lugar onde possa mergulhar e cumprir seu destino de afogado.
26.7.02
Liberdade (Tardia)
Com uma corda
Enforquei meu amor Tiradentes
Ele queria – Veja se concorda!
Me fazer inconfidente
Peguei uma foice
E esquartejei esse amor
Como se um naco de carne fosse
Espalhando seus pedaços ao redor
Para que eu sempre me lembrasse
E que fosse meu exemplo maior
Exposta minha dor, na minha face
Não me meteria mais com seu mistério
Nem me envolveria com seu segredo
Fiz isso para não viver o despautério
De punir meu coração com o degredo
25.7.02
Uno
Quem nos visse
Se surpreenderia
Acharia impossível
Que isso existisse
E exclamaria
Diante do inverossímil
Perdendo o bom tom:
Casal tão indivisível
Em cheiro, cor, som
Tão unida parceria
Só desafiando a física
Da primeira lei de Newton
24.7.02
Ontem, a noite
Cortei o dia no seu talo
Realizando assim o infinito
Fatiei em gomos
Cada uma das minhas esperanças vãs
Madruguei no morro
Só pra perder o medo do só
Corromper era a palavra
Que gritava de dentro dos meus ouvidos
Anunciei as boas novas:
Uma mordida na maçã do dia
Espelho de circo
E de repente
Você olha para o lado
E vê que quem você ama
Não tem mais nada em comum
Com você
O reflexo não bate
Nesse, que era seu espelho
Constatação
As pessoas à minha volta
Tropeçam no amor
Enquanto andam nas ruas
Para mim
Sobram as merdas dos cachorros
Deixadas nas calçadas
Tropeçam no amor
Enquanto andam nas ruas
Para mim
Sobram as merdas dos cachorros
Deixadas nas calçadas
Exterminador
Ele entrou na boate, do alto do seu metro e noventa, como entraria o Exterminador do Futuro. Mirava todas as mulheres com seu olhar predador, assassino, já roubando a atenção de todas. Seus olhos azuis atraiam todas de forma inexorável. Ele era o dono da situação. Estava em seu ambiente.
Ele encontra depois de alguns minutos a vítima da noite. Ajeitou seus cabelos louros de mariner e partiu em direção à sua escolhida. Ela era perfeita: morena, cabelos longos lisos, todas as curvas realçadas pelo seu tubinho preto, indefectível. Ele sabia o que fazer, tinha as palavras e gestos exatos, decorados nas milhares de horas na caça. Chegou do lado da vítima e a abordou.
Incrível, não deu certo. Ele ficou surpreso. Porque diabos ela não caía na sua armadilha, tão bem armada, como sempre? Teve que usar, depois de muito tempo, um plano B. Nada. A presa era arredia. Isso tornava a caça mais interessante e ela não era uma vítima que se poderia deixar fugir. Hoje não seria o dia da caça. Não mesmo.
Plano C, plano D e nada ainda. A presa estava saindo da sua armadilha e ele não tinha nada o que fazer. Estava ficando desesperado. A caça já pedia licença, queria dar uma volta, beber alguma coisa. Ele pediu para acompanhá-la. Ela disse que não precisava. Tinha gostado dele, mas não ia rolar nada. Ele insistiu, quase passando do assédio para a grosseria. Ela dominou a situação, conseguindo se desvencilhar dos seus braços fortes. Antes de ir, ela lhe deu um prêmio. Fora um bom caçador, e por isso, lhe deu um beijo, de leve nos lábio. Saiu rápido, antes que ele tivesse uma reação.
Ele estava acabado. A noite para ele já não tinha mais sentido. Ficou cabisbaixo, até curvado. Seus hipnotizantes olhos azuis estavam opacos. Mesmo esse arremedo do antigo caçador ainda atraia outras vítimas, que eram solenemente desprezadas. Ele estava aprisionado.
No outro lado da boate, ela olha para pista com seu olhar selvagem. Ele dera o azar de não ter acompanhado a entrada triunfal dela. Veria que o olhar dela era igual ao dele.
22.7.02
O Êxtase do Tempo
Toca agora
A leve flama
Do tempo
Com seu tato
Percorre suas fibras
E tessituras
Sente o seu volume
Veja ele lentamente
Amalgamar-se
Aos seus sentidos
E como ele se apodera
Do seu corpo
Agora que és uno
Com o tempo
Sente seu êxtase
19.7.02
Desde que Shakespeare inventou o mundo
Otelo era pai de Bianca e Catarina. Se preocupava com o destino das duas, claro. Enquanto Bianca, sua caçula era a extroversão em pessoa, Catarina era arredia como um cavalo xucro. Ambas já estavam em idade de casar, E Bianca, inclusive, já havia tido vários noivos. mas Otelo era metódico: na casa dele, havia de se seguir as regras. Casa-se primeiro a mais velha, depois a mais nova.
Bianca, cansada dessa história, tratou de arranjar um garoto de programa para que se passasse por pretendente da irmã. Seu nome era Romeu, e por coincidência, era filho de uma família que vivia às turras com a família de Otelo, os Monteletos. As desavenças entre as duas famílias começaram por um motivo bobo: Otelo queria que sua primogênita se chamasse Julieta. Hamlet Monteleto, na época melhor amigo de Otelo, roubara-lhe o nome da filha, batizando a irmã mais velha de Romeu com esse nome. Depois desse dia, nunca mais se deram bem.
O problema todo começou quando Romeu, esquecendo o trato meramente comercial, se apaixonou por Catarina. E pior ainda, o tiro havia saído pela culatra: Quem se apaixonou pelo jovem scort boy foi a mulher de Otelo, Desdemona.
Romeu não queria nada com a Mona (apelido da esposa de Otelo) e Catarina não queria nada com Romeu. E como o pretendente não largava do seu pé, Catarina, percebendo a paixão de sua mãe por ele, os intriga com Otelo, seu pai. Enfurecido pela suposta traição, Otelo mata Desdemona, com um tiro na cabeça. O próximo seria Romeu.
Catarina – que de tão ruim, nem se abalou muito com a morte da mãe – leva seu pai, em plena sanha vingativa, até à casa dos Monteleto. Lá, encontrou Romeu sendo amparado por sua irmã, Julieta. Bianca havia avisado ao Romeu que seu pai tinha a intenção de matá-lo e contou sobre o assassinato de Desdemona. Atormentado pela culpa, Romeu havia tomado um frasco inteiro de barbitúricos. Estava agonizando nas mãos de sua irmã. Otelo, vendo que sua vingança fora consumada sem precisar matar outra pessoa, vai embora, junto de sua filha Catarina. Não chegaram a ver Julieta cortar os pulsos, por conta da tristeza de ver seu irmão morrer em seus braços.
Bianca além de avisar Romeu, havia chamado a polícia para prender seu enlouquecido pai. Otelo chega em casa e a vê cercada de viaturas por todos os lados. Entra na sala e, vendo sua caçula conversando com o delegado – ao chão ainda jazia o corpo da sua esposa – percebe ela a delatara. Tomado pelo ódio, lhe disfere três tiros, antes que qualquer policial pudesse fazer algo. Bianca morre e Otelo é preso, onde ficou o resto dos seus se lamentando pelas mortes que causou num momento de loucura.
Catarina ficou sozinha, como queria e rica como nunca imaginou que ficaria por conta da herança da mãe. Não tinha arrependimentos e, finalmente, estava feliz. Sobre tudo que havia ocorrido em sua vida, costumava dizer que os homens são assim mesmo: "Fazem muito barulho por nada".
16.7.02
O Troco
– É pegar ou largar. Não posso fazer mais nada.
Depois do cobrador falar a inesperada e absurda proposta, ela e ele tiveram que concordar que até tiveram sorte. Eles podiam nem saltar no mesmo ponto, o que geraria uma certa confusão. E, se o ônibus não tinha troco e eles podiam levar o deles unidos em uma única nota, qual era o problemas deles trocarem o dinheiro numa banca qualquer? Desceriam juntos mesmo. E era melhor que levar o famigerado vale-transporte como troco.
Ela e ele desceram no mesmo ponto, meio sem graça, meio sem ter o que falar um para o outro. "Um absurdo não terem troco, não?" , "Pois é!" e nada mais havia a ser dito. Ela tinha que comprar um maço de cigarros. Ele notou que ela olhava o volume que ele carregava no bolso da camisa e ficou na dúvida se perguntava se ela queria fumar. Afinal de contas, ela precisava comprar cigarros, o que além de saciar seu vício, seria a alforria dos dois. Dinheiro trocado, cada um seguiria seu caminho.
Entraram no primeiro boteco que encontraram. Pra azar deles, não vendiam o Marlboro Lights que ela fumava. Ele comentou que era um curiosa coincidência: fumava a mesma marca. O silêncio constrangedor depois da frase dele só foi quebrada com a explicação do próprio. Não tinha ofertado um cigarro pois ela ia comprar. "Sem problemas!", ela respondeu. Estavam ambos atrasados pra o trabalho, mas ele fez questão de acompanhá-la até encontrar sua marca de cigarro.
Duas bancas de jornal e outro bar depois e a busca ainda seguia. Ela pediu um cigarro para ele. Pagaria assim que conseguisse comprar seu maço. Ele se recusou. E riu pra ela. E o sorriso foi retribuído. Conversando, viram que tinham várias outras coisas em comum além de pegarem o mesmo ônibus e consumirem a mesma fumaça. Idades próximas, gostos parecidos, sem compromissos os dois. Tinham afinidades.
No terceiro bar, a busca acaba, até com uma certa relutância por parte dela e dele. Ele lhe ofereceu um café, não aceito, ela quis lhe pagar o cigarro, idem. Ele perguntou onde ela trabalhava e se ofereceu para acompanhá-la. Ela não aceitou de novo. Estavam atrasados. E ele iria para o outro lado da grande avenida. Ela ofereceu a ele seu telefone. Ele aceitou.
Almoçaram no dia seguinte, começaram a pegar o mesmo ônibus sempre, com horários combinados, saiam, com certa regularidade. Sem perceber, gostavam um do outro. E muito.
Depois de felizes anos juntos, sempre diziam que "Dinheiro traz felicidade, sim!". E tudo começou por causa de cinquenta centavos…
15.7.02
SP
Fui para a grande cidade, conhecê-la. Não contava com sua beleza concreta, seus labirintos de prédios tão próximos, a espera de que um minotauro moderno o guarde. Não contava com a vista enorme a minha disposição, onde pude ver toda sua grandeza e imponência e além. O frio das suas ruas largas, o vento que dava potência a esse mesmo frio, a tremedeira inevitável. A classe de teus moradores e a maior classe de algumas moradoras. Seus palácios em lugares inesperados, seus filhos ignorados em lugares mais que esperados. A sua miscigenação exposta em nossas caras de forma brutal, seus milhares de sotaques, peles, rostos. Um mundo inteiro dentro de uma cidade que é um mundo.
E apesar do contato com seu lado bom, apesar da ignorância mantida do seu lado ruim, a vontade de voltar persiste apenas por um motivo: não encontrar quem se queria.
11.7.02
Homem de Gelo
Depois da terceira desilusão amorosa em 2 meses, decidiu se tornar uma pedra de gelo. O processo era complicado. Tinha de abandonar o calor de todo tipo de emoção que restasse em seu corpo, trazendo com isso seus vários efeitos colaterais: rigidez das articulações, queda de cabelos e unhas, tremedeiras, entre outros, mais graves. Chorar, por exemplo – processo quase inevitável de ocorrer quando se expurgam todos os sentimentos de um corpo – poderia ser extremamente desagradável. As gotas congeladas descem pelo rosto, ainda em processo de congelamento, causando queimaduras.
Depois de haver sido esvaziado de todo tipo de emoção, já tinha a pele translúcida e congelada. Após reaprender a se locomover, apesar de suas articulações duras, teve que comprar uma roupa impermeável para não inundar sua casa. Dormia no freezer, local que aliás, teria que passar boa parte do tempo. Ele encarou o processo de transformação em gelo com altivez e determinação. Mas esqueceu-se desse detalhe. Teria que viver em uma câmara frigorífica, como um pedaço de carne resfriada. Esqueceu-se da contrapartida de ser uma pessoa congelada: derreteria em pouco tempo. Sem emoções, frio, sendo gelo, definharia, aos poucos. Como não queria viver recluso em uma geladeira, se deixou derreter.
Na sala sobrou um impermeável encharcado. E só.
10.7.02
Anjo
Eis que, por um acaso do destino, sua nave, que fugiu a tempo da destruição do seu planeta, caiu no meio da praia de Ramos, numa quarta-feira de cinzas ensolarada. Eram seis da manhã e ninguém percebeu. Alguns bêbados acordaram com o estrondo da queda, mas viram apenas uma alegoria de escola de samba fumegando na areia. Nada que merecesse sua atenção.
Dentro, uma criança. Bonita, risonha, olhos azuis profundos. D. Maria, negra, viúva e lavadeira, voltando da ala das baianas no desfile da Portela, viu aquela criança largada e achou uma judiação o que fizeram com o bebê. Levou o moleque pro barraco. Deu-lhe o nome Carlos.
Carlos cresceu forte e sem nenhuma doença. Desde novo, mostrou-se forte como um touro, e parecia precisar menos de alimento que seus esquálidos 4 irmãos adotivos. Sempre que a comida era pouca, fazia questão de dar seu minguado prato para os irmãos. Todos o adoravam.
Adorava a praia e parecia sempre mais forte quando sentia o calor amarelo do sol. Nadava sem medo nas poluídas águas da Baía de Guanabara. Enquanto seus irmãos e amiguinhos apareciam sempre com uma mazela qualquer depois de se aventurarem nas praias do subúrbio (tinha micoses e coceiras em profusão. Até hepatite uns haviam pego), Carlos nunca se abalava. E ficava horas nadando.
Adorava futebol e como era muito veloz e forte, em pouco tempo era o craque do time do bairro. Em um teste no Botafogo, seu time de coração, foi aprovado com louvor. Entrou direto duas categorias acima da sua idade. E ainda era o melhor jogador, disparado. Depois de efetivado, usava sempre uma camisa com a estrela solitária no peito. Se sentia bem com o uniforme.
Teve uma carreira meteórica no esporte. Desde as divisões de base, sempre foi titular absoluto da seleção brasileira. O interesse dos times internacionais foi inevitável e impossível de ser impedido. Foi jogar na Holanda, ainda com 14 anos.
Lá, sentiu muita saudade do Brasil. Seu rendimento não caiu, mas ele ficava triste e não se integrava ao grupo. Numa noite, desejou ter asas e voar em casa, rapidamente, só para beijar a mãe. Seu desejo, milagrosamente, se realizou: alçou voô e, chegou em algumas horas no Brasil. Quase matou a todos de susto. Voltou, voando de novo, para Holanda horas depois. Como sumiu sem avisar, foi punido no clube. Mais um motivo para ficar triste.
Ligou para mãe, que ainda não entendia como ele poderia ter chegado em casa na noite anterior, explicando o que acontecera. Estava muito deprimido de novo. A mãe lhe prometeu uma lembrança inesquecível e que o deixaria muito feliz. Aguardou, ansioso.
Semanas depois, recebeu a encomenda de D. Maria. Um colar, com uma carta. Explicava nela que fizera um cordão para o filho. No pingente, um cristal verde que estava grudado na alegoria onde ela encontrara Carlos, ainda bebê. Pediu que nunca tirasse ele do peito.
O presente deixou Carlos muito feliz. Não se desgrudava do colar, nem no banho. Mas nem tudo eram flores. Misteriosamente, Carlos caíra de rendimento. Não corria bem, não tinha forças, sentia tonturas no campo. Até doente, coisa que nunca havia acontecido, ele ficou. Baixou de cama, por semanas.
A doença era mais grave do que esperavam. Nem os maiores especialistas europeus conseguiram diagnosticar o problema do projeto de craque. A doença era um mistério. Carlo estava magro, pálido, uma sombra do que era. Sempre que se sentia pior, segurava o pingente: sentia a força de sua mãe adotiva na pedra verde.
Ele piorou. Pediu para voltar ao Brasil, para casa. Os médicos, desnorteados, recomendaram isso à diretoria do clube. Quem sabe não melhorava com umas féria junto à família?
Não melhorou. Aliás, piorava a olhos vistos. D. Maria ficou desesperada. Há poucas semanas, viu seu filho querido chegar saudável, como um anjo, de dentro das nuvens. Agora, o via definhar. Levou rezadeiras, benzedeiras, macumbeiras, todo o tipo de ajuda que podia oferecer. Não adiantou.
Carlos morreu dois dias depois de voltar para casa. Nas mãos, o pingente verde que a mãe lhe dera. Foi enterrado junto com ele.
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