18.3.03

Rito de passagem


Um dia ele acordou sabendo que não poderia continuar como estava. Não que ele não quisesse. Sua vida simplesmente tinha armado para ele uma sequência de piadas cruéis que ele não esperava. Em alguns meses, ele perdeu sua esposa, seu emprego, seus amigos e todo seu dinheiro. Atento aos recados do destino, ele acordou no meio daquela noite sabendo que isso era o começo de uma nova fase em sua vida. Se não sabia o que viria após isso tudo, sabia que devia se preparar para o que quer que acontecesse.

Sabendo que os ritos de passagem são rotinas obrigatórias para qualquer pessoa que atinja novas etapas em suas vidas, decidiu cumpri-los. Tinha conhecimento que tais ritos eram inevitáveis, que todos os realizam mesmo que não tenham noção de que os cumprem. Desde as sociedades primitivas eles eram vitais em várias ocasiões. E ocorrem até hoje, nos atuais trotes em corporações militares e faculdades. Como poderia escapar de uma tradição que perdura por séculos? Não poderia.

Seu primeiro ato foi o de jejuar por uma semana. Nos primeiros dias foi um sacrifício enorme. Depois, conseguiu se abstrair e esqueceu da fome por completo. Passou essa semana no seu quarto, telefone desligado, meditando. No final do sétimo dia, já tinha percebido que não precisava mais tanto de comida. Se alimentava espiritualmente e essa era toda a refeição que precisava para realizar sua evolução.

Nesse tempo de jejum, também descuidou da sua aparência, não achando necessário se banhar ou fazer a barba. Eram coisas vãs, que não teriam a menor importância no que planejava ser sua vida assim que alcançasse seus objetivos. Estava magro, barbado e meio fedorento. Se ele não se importava mais com sua alimentação, que dirá de coisas tão comezinhas como banhos ou um cheiro desagradável.

No fim, percebeu que sua real intenção nesse seu rito de passagem era se desligar completamente de seus sentidos. Nirvana? Ele nunca acreditou nessas baboseiras transcendentais, mas se o que ele estava vivenciando não era um estado de iluminação, era algo bem parecido. E quanto mais fraco ele ia ficando, por conta da sua privação de comida, mais claramente ele entendia as coisas. Sentia que seu próximo passo estava próximo, que ele finalmente ia progredir. E sentia também cada vez menos falta das coisas que achava tão importantes. De que valem emprego, amigos, esposa, dinheiro no banco? O que era essencial mesmo era estar bem consigo mesmo, e isso ele estava. Lembrava sempre da letra de Bob Dylan, “Like a Rolling Stone”: “quando você não tem nada, não tem nada a perder” e no fim das contas, ele entendeu perfeitamente o significado do verso. Isso era sua evolução, chegando, chegando...

E ela chegou, treze dias depois do início do seu rito de passagem. Foi encontrado morto por inanição.

14.3.03

Viajor


Eu viajo e não me importo com a paisagem. Eu sou a paisagem da paisagem. Sou observado por montanhas e rios e árvores. As estradas me percorrem e todos os caminhos acabam em mim mesmo. Tantos caminhos podem ser feitos, tantas trilhas, sem um movimento sequer. Sigo em frente, imóvel. Enquanto eu vou, eu fico e estou e estarei. Minhas idas são sem volta. Estou sempre voltando, sem ter partido.

É quando fecho os olhos que eu mais vejo o mundo.

12.3.03

A Fotografia


- Essa sou eu
- Jura?!?! Nossa...
- O que?
- O que o que?
- Por que o espanto?
- Ahn...nada, nada...
- Como “nada”?
- Nada, ué?
- Você não viu a cara que fez...Você ficou realmente espantado com algo..
- Éééé...bem...a foto é antiga, né?
- É sim...e daí?
- Bom...você está diferente...
- Eu sei...e isso e motivo pra você levar esse susto?
- Eu não levei um susto...
- Quando eu digo “nossa!” e faço a cara que você fez, é porque eu levei um susto.
- Bom...mas eu não sou você...
- O que você quer dizer com isso?
- Com isso o que? O que foi agora?!?!
- “Você não sou eu”...O que isso quer dizer?
- Parece óbvio, não? Eu não sou você! Pra começar, você está aí e eu aqui...Eu sou homem, você é mulher, eu...
- Desde quando floresceu essa sua veia humorística?
- Ahn?
- Taí, todo engraçadinho, fazendo piadinhas...E foge do assunto..
- Que assunto?
- Por que você levou um susto com a foto?
- Já falei que não me assustei...
- O que foi? Estava muito feia nessa época? Eu estou muito feia agora?
- Você NUNCA ficaria muito feia...
- Me bajular não vai te ajudar em nada..
- É sério...Você é linda.
- Parece que a foto, pelo menos no seu entender, discorda disso.
- Eu não falei nada sobre a foto...E que você...
- Eu o que? Fala logo!
- Está diferente...
- Isso você já disse...está ficando repetitivo. E complicando sua situação.
- Jura que não briga comigo?
- Não...Não sei o que você vai dizer...
- Tá...Pra começar...
- “Pra começar”??? Te desagradei em quantas coisas, afinal?!?!?
- Quem disse que você me desagradou?
- Você me pergunta se eu vou brigar por causa do que você achou da foto e quer que eu acredite que você vai me elogiar?
- Você não pode adivinhar o que eu vou dizer, pombas!
- Putaquipariu...Você sabe o quanto eu detesto quando você fala “pombas”!!!
- Começou a grosseria!!! E ainda arrumou outro motivo pra brigar comigo!
- Fala logo, merda! O que você não gostou? Eu estava melhor na época da foto ou estou melhor agora?
- O que vai te deixar menos braba?
- Caralho!!!...mas não dá MESMO pra conversar com você!!!
- Calma!!! Lá estamos nós brigando de novo por motivos bobos...
- Nunca uma briga é por motivo bobo...Ela sempre reflete algo mais profundo que desagrada um dos parceiros no relacio...
-...namento...CARALHO!!! Lá vem você com a psicologia barata. Que merda isso!!!
- Olha o tom!!! Não admito que você fale comigo assim!!!
- Foda-se!!! MERDA!!! Já estamos nós discutindo por um motivo babaca, como sempre!!!
- Eu já falei pra não falar assim comigo!!! Não aceitava esse tom do meu pai, não tenho porque aceitar de um namorado!!!
- Por isso não....Não me considere mais um namorado...
- Tem certeza que é isso que você quer? Não vou aceitar que você volte atrás...basta repetir o que você acabou de dizer...
- Olha...eu te amo, mas a gente não se acerta!!! Se uma merda de uma foto antiga onde você está um pouco mais gorda e com uma camisa verde ridícula é motivos pra nos estapearmos, fico em dúvida se vale a pena nos relacionarmos...
- O que?
- Se uma merda de uma foto...
- Não...Eu estou um pouco gorda e com uma camisa verde?
- Isso...uma camisa ridícula...
- Merda!!! Você não viu pra onde eu apontei!!! Essa não sou eu!!! Essa é minha irmã!!!
- Ahn???
- HAHAHAHAHAHA...Você é mesmo uma besta!!! Eu não sou essa com a camisa verde! Eu estou com o vestido azul, ao lado da minha irmã...
- Ih...é mesmo!!! Agora sim!!! Você está tão linda como hoje! Não mudou nada!
- Ah...você acha mesmo?
- Claro, meu amor...Exuberante!!! Claro que está melhor agora, que me namora..
- Ah...vem cá, vem...desculpa...Não queria brigar com você...Eu te amo...
- Eu também...Jura que a gente nunca mais vai brigar por besteiras...
- Claro, amor...Eu juro. Mas você vai ter que me ajudar nisso também.
- Claro, claro...Eu te ajudo sim...

(smack)

- Querido...só me fala uma coisa. A camisa da minha irmã é mesmo ridícula?
- Eu peguei leve, pensando que era sua. Para ser ridícula, ela tinha que melhorar muito. Ela é horrenda...
- Mesmo? Você sabe quem deu essa camisa pra ela?
- Não.......Quem foi?
- Eu...
- Entendo...mas os anos 80 não foram muito legais em se tratando de vestimentas, né? Na época devia estar na moda...
- Isso não vem ao caso...Você acha que eu tenho mau gosto? É isso?
- Eu falei isso?
- Não...mas deu a entender...
- Não mesmo...não tente adivinhar o que eu penso.
- Não, não...mas posso te falar, que mau gosto eu tive quando te escolhi...
- Ah, não....Não começa...
- Por que? Você tem sempre que começar tudo? É isso?

8.3.03

Amigos anormais ou “Meu Bestiário Particular”


De chata e comum, já me basta a vida. Por isso, depois de muito refletir, resolvi abdicar de todos os meus amigos “normais”. Por “amizades normais”, tome como definição – criada por mim, obrigado! – aquelas que você adquire através dos tramites legais: escola, faculdade, trabalho, vizinhos...São amizades fáceis, com as quais raramente temos aborrecimentos. Isso, claro, se você não considerar um aborrecimento a rotina de “happy–hour – pelada – futebol – com – churrasco – no – fim – de – semana – viajar – para – o – litoral – nas – férias – com – a família” que geralmente se tem com eles.

Mas como eu considero, me desfiz de todos. Alguns facilmente, outros com um certo aperto no peito. Não há arrependimentos, deixo claro. Fiz uma opção consciente, que definitivamente me pareceu mais satisfatória. Decidi ser amigos apenas dos párias, dos enjeitados da natureza, dos desclassificados e anormais. Eles são mais inconstantes e imprevisíveis que meus ex-amigos normais, obviamente, mas com certeza são bem mais excitantes.

Como o Bituca, o mendigo que circula pela Candelária e adjacências. Ele é um pedinte fora do comum, pela veemência de seus pedidos de esmolas e por seus métodos pouco ortodoxos para consegui-las. Ele aborda os desavisados que andam pela 1º de Março com dois cigarros acessos e ameaça as pessoas de queimá-las (daí seu singelo apelido). Muita gente já se viu com seus ternos e tailleurs chamuscados por não acreditarem em suas ameaças. As senhoras são suas vítimas preferenciais, visto que só a sua aparência já é o bastante para que elas lhes deem a esmola, as vezes nem precisando ameaçá-las com as brasas. Conta a lenda que ele já foi preso por cegar uma mulher que ousou desafiá-lo.

Ou então Apolinário, o berrador, que passa meses e meses sem falar palavra, mas quando resolve emitir algum som é para soltar gritos homéricos pelas ruas de Olaria. Dizem que quando criança, o pai de Apolinário, muito repressor e frequentador da Igreja de Jesus no Calvário dos Dias Apocalípticos, nunca bateu nele, mas toda vez que o pequeno Popó fazia suas peraltices, lhe dava sermões em altos brados durante dias seguidos. Apolinário chegava a implorar por uma surra ou um castigo dos brabos, mas seu pai se recusava. Preferia as broncas gritadas, que não só ensurdeciam a criança como o envergonhavam tremendamente perante seus vizinhos. Um dia, Apolinário se calou, e assim ficou por anos. De nada adiantaram as idas ao médico ou as rezas na igreja. Apolinário só voltou a falar no dia do funeral do seu pai, 6 anos depois do começo de sua mudez. Ele gargalhou em altos brados durante 7 semanas ininterruptas, só parando quando desmaiava de cansaço.

Outra amiga que tenho é a Candinha Pêra. Moradora de Copacabana, Candinha tinha 22 anos de casada com Péricles Pêra, um sujeito pacato, que não faria mal a ninguém. E era justamente essa passividade que irritava Candinha. A piada que ela repetia sempre era que o sobrenome do seu marido estava errado:

- Não devia ser Pêra, devia ser Banana!

Um dia ela se cansou do Péricles e resolveu parar de ter qualquer tipo de relação com seu marido. Ele, praticamente não percebeu isso, até que ele a flagrou tendo “intimidades” com um pepino em sua cama. Foi a primeira vez que Péricles tomou uma atitude em sua vida: se separou de Candinha.

Desse dia em diante, Candinha se tornou uma amante dos vegetais e frutas. A simples menção de uma salada de frutas a deixava excitada e quando fazia a feira, freqüentemente ela chegava ao orgasmo. Seu maior contratempo foi quando, descontrolada, em pleno supermercado, foi presa por atentado violento ao pudor. Ela ficou nua diante da barraca de frutas, se masturbando com uma laranja da terra. Ao ser algemada, chegou a comentar:

– Não consigo controlar minha tara por laranjas!

Hoje, Candinha está mais controlada, evita passar em feiras e pede para que suas compras sejam entregues em casa. Nem tento imaginar suas orgias solitárias feitas em casa, com seus legumes e verduras. As vezes ela é vista chegando às 4 da manhã em frente ao Hortifruti de Copacabana, ansiosa, esperando o caminhão da Ceasa chegar com vegetais frescos.

Esses são só alguns dos meus novos amigos. Falta falar ainda do Julinho, filho de Adelaide, que tudo o que fala são versos de músicas do Chico Buarque, da Letícia Manicure, traficante de cutículas para indústria de cosméticos, da Shelley Adriana, a prostituta que paga para fazer programas e de outros que me fogem à memória no momento. Meus amigos “normais” sentem minha falta e me procuraram ainda por uns tempos. Depois, parece, foram desistindo. Ouvi falar que todos têm me achado muito estranho ultimamente.

7.3.03

A mesmice


A presença da mesmice é aquilo que te acorda no meio da noite, sem que tenha tido pesadelos ou vontades fisiológicas, te sufocando; o suor que te cobre o corpo, mesmo debaixo de 10.000 btus de frio, empapando seu corpo e te deixando com um cheiro que afugentaria os cachorros mesmo que eles estejam a milhas de distância. Você nem sabe, mas a mesmice fede.

Você acorda sobressaltado. Olha pro lado e percebe que está na mesma solidão ou com a mesma companhia de sempre ao lado. A sua volta, suas mesmas coisas na mesma posição, no mesmo quarto. Se há algo a fazer? Claro. Mas o sono é tanto! Você volta a dormir. Como sempre.

25.2.03

Cigarros


Doeu quando percebi que ele se foi. Quando eu notei que ele tinha abandonado um casamento, uma esposa, filhos, um lar. E ele nem se deu ao trabalho de inventar uma desculpa ou teve hombridade de falar na minha cara que nos deixaria. Fui abandonada por um clichê:

- Querida, vou comprar cigarros e já volto!

Ele estava longe de ser um "marido exemplar", mas era o que eu tinha e eu o amava. Era um safado, um boêmio, um péssimo exemplo pras crianças. Mas eu o amava.

Nunca se sabia o que o louco poderia fazer. Ao sair do trabalho ele podia chegar em casa e levar a mim a as crianças prum restaurante ou podia simplesmente não chegar. Era assim. Quando lhe dava na veneta, sumia por dias.

As vezes chegava bêbado em casa. Nessas ocasiões, ele ficava imprevisível. Ou ele me batia sem um motivo aparente ou fazia amor comigo de forma brutal e maravilhosa. Uma coisa eu não posso negar. Ele fazia o que queria comigo, era só tocar nos lugares certos. E ele sabia, ah, como sabia.

E eu sempre me deixava levar pelas suas armadilhas sutis, sempre o perdoava, mesmo depois das brigas, das surras, das discussões na frente das crianças. Se não fosse com seu jeito de criança abandonada, era na cama que conseguia o que queria de mim, inclusive fazer as pazes.

Ele não valia um centavo. Era um cachorro. Mas eu o amava. Não...Eu era viciada nele, nas suas mãos e palavras, no seu olhar. Viciada, não era amor. Amor é algo bom. Quando nos apegamos a um hábito ruim, é um vício...Não era amor, não...Era mais um vício. Livrei-me dele, estou sofrendo, muito, muito mesmo. Todo vício dói para acabar, mas acabar com ele é sempre o melhor a se fazer Eu sou viciada nele, como ele é pelos seus cigarros...Os mesmos cigarros que serviram de desculpa pra me libertar...

Benditos cigarros!


18.2.03

O Telefone


– Eles não vão ligar...

Tudo começou com um anúncio de emprego. Estava na lona, à beira da bancarrota completa e precisava mesmo de um emprego melhor. Aí, vendo os classificados, vi o anúncio que, sem falsa modéstia, se encaixava perfeitamente ao meu perfil:



Liguei e marquei uma entrevista. O local onde seria entrevistado era uma saleta pequena na rua do Rosário, num daqueles prédios do século retrasado. Não tinha a menor pinta de que um emprego ali daria bons ganhos a ninguém. Era um cubículo mínimo e úmido, com mofo nas paredes, repleto de estantes entulhados com milhares de pastas. A recepcionista era uma mulher que poderia ter 25 anos muito mal vividos ou ser uma senhora conservada com 60 anos. Me disse para sentar que eu já seria atendido e continuou mascando seu chiclete, lendo sua revista de fofocas e lixando a unha. Estava já imaginando a furada em que me meteria, mas como já estava ali, resolvi pagar pra ver.

Alguns minutos de espera e um berro saiu de dentro do outro cômodo da sala:

– Dona Gorete!!! Pode mandar o rapaz entrar!!!

Ela só mexeu a cabeça em direção à porta que eu devia entrar, sem falar nada. Ao entrar na sala, me deparo com um sujeito baixinho, barrigudo e careca. Ele não sabia se me estendia a mão ou continuava levantando suas calças, que caiam da sua protuberante barriga. O sujeito não devia fazer a barba há alguns dias e pelos restos de comida que circundavam sua marmita na mesa, pude notar que higiene realmente não devia ser seu forte.

– Leonel Itajibe Pederneiras, um seu criado...Qual é a sua graça???

Depois de conter um ataque de riso diante de tão dantesco nome, meu segundo impulso foi o de sair correndo daquele lugar. Tudo aquilo era insólito demais, até prum cara no desespero como eu. Depois de ver que no mínimo eu teria uma história hilária pra contar no bar, resolvi ficar.

–Meu nome é Paulo Eduardo de Castro...
– Sente-se Paulo...o lugar é humilde mas é limpo
- aí eu não consegui conter um risinho – Sinta-se como na sua própria residência...Veio por conta do nosso reclame no jornal, não?
– Pois é...gostaria de saber do que se trata.
– Claro, claro! Você é um rapaz direto, não gosta de rodeios...Desde que te vi adentrando nesse recinto, percebi que você é um moço prático. Pensei cá com meus botões: esse é o nosso homem! Notei isso de primeira! Por isso, em respeito ao seu dinamismo, não vou ficar mais enrolando. Nossa corporação precisa mesmo de gente como você, ágil e...
– Ahn...entendi, entendi...mas em que consiste o trabalho?
– Ah, desculpe! Tinha me empolgado com você, só isso. Mas vamos direto ao que interessa agora, sem mais delongas...
– Isso
– Bom...Paulinho – posso ter essa intimidade com você, meu jovem? – Vou lhe passar uma lista com alguns nomes. Gostaria que você me desse uma opinião sincera sobre o que acha de cada um deles.


Ele pegou um papel meio amarrotado, com marcas de polegares engordurados nos cantos e me passou. Era uma lista com uns 50 nomes de personalidades nacionais. Eram socialites, apresentadores de programas dominicais, atrizes–modelos, jogadores de futebol da moda, cantores de pagode, sertanejo e música brega, entre outros. Ou seja, praticamente uma lista de convidados da “Ilha de Caras”.

– Confesso que, tirando alguns que nem conheço, não gosto de ninguém.
– Mas, me fale, com pureza d´alma, apenas “não gosta” ou detesta?
– Alguns são mais detestáveis que outros, com certeza.
– Detestáveis a ponto de serem odientos?
– Poderia dizer que sim.
– Se eles morressem, você não se incomodaria muito...É isso?
– Isso...alguns eu até poderia ficar feliz, caso morressem.
– Hmmm...Interessante, interessante.
– Mas o que isso tem a ver com a vaga que a sua “
corporação”? – tentei tirar toda a ironia ao falar a palavra, mas não consegui.
– Explicarei isso, meu jovem. A morte desse tipo de escória é o nosso negócio.
– ?????
– Ah....entendo sua perplexidade, caro Paulinho. Nossa corporação é, pelo menos eu considero, filantrópica. Nosso objetivo é eliminar o maior número possível de pessoas abjetas que tenha alguma influência na mídia. Começamos nossas operações há apenas dois anos, na Suíça, e agora já atuamos em 47 países.
– Ahn?!?! Você está falando sério? Veja bem, seu Itapuã...
– Itajibe...
– Isso, seu Itajibe....não vim aqui atrás de brincadeiras. Estou precisando mesmo de um emprego e não tenho tempo, nem dinheiro para ficar sendo alvo de palhaçadas como essa
– Calma, meu caro....não são palhaçadas...Isso é sério...


Ele me mostrou outra lista, essa com nomes estrangeiros e recortes de jornal, noticiando mortes “acidentais” de pessoas famosas em vários países. Era uma lista extensa com alguns nomes até famosos.

– Esse aqui também foram vocês?
– Isso...Esse foi um dos nossos maiores sucessos!
– E...como vocês executam essas..mortes?
– Bom, meu jovem...isso, para sua segurança, é melhor você não saber...
– E o que especificamente eu faria na sua corporação? Eu não gosto deles, mas não pensaria nunca em matá-los...
– Primeiro, vamos mudar esse termo, morte. Ele é muito pesado, tem uma carga muito negativa...Trabalhamos com “aposentadoria compulsória e definitiva de estrelas”...Não se preocupe. Você não terá uma atuação direta na operação. O seu cargo seria de “monitor do limiar aceitável de saturação” dessas personalidades.
– E o que faz esse monitor?
– Você vai prestar atenção ao que nossos alvos aprontam na mídia. A hora que você achar que eles passaram dos limites, com o perdão da expressão chula, quando eles “encherem de vez o seu saco”, você nos liga. Pronto. No dia seguinte eles estarão definitivamente aposentados.
– Só isso?
– Apenas isso...
– E se eu aceitar esse emprego?
– Bom.. Aí você vai receber esse kit
– nisso ele pegou uma pasta e me entregou – Nele você vai encontrar uma lista com os dez primeiros astros que você vai monitorar, um número de telefone para o qual deve ligar e um envelope com R$5.000, 00 em dinheiro.

Quando ele falou na quantia, peguei a pasta e conferi seu conteúdo. Estava lá o envelope, estufado, com 50 notas de cem.

– Apenas isso? E o que me impede de pegar essa pasta e sumir por aí? Ou sair daqui e ir direto à uma delegacia?
– Paulinho, Paulinho...E quem acreditaria na sua história? Você é um Zé ninguém sem emprego, sem provas contra nós...Todas as mortes são acidentais, não viu no nosso portfólio que eu te mostrei? Você é um rapaz inteligente. Sei que não faria isso. Quanto a fugir com o seu pagamento sem realizar sua tarefa, eu acho extremamente inapropriado...e perigoso. Veja quem nós conseguimos eliminar e em quantos países...Acha mesmo que conseguiria se esconder de nós? Por mais esperto que você seja, eu duvido. Veja bem, Paulinho. Você precisa do dinheiro, não vai se envolver diretamente em nada ilegal e vai fazer o mundo um lugar mais agradável de se viver. Por que não aceitar nossa oferta?
– Por que eu? Ou melhor, por que não qualquer outro? Você, por exemplo?
– Problemas operacionais, Paulinho. Eu recebo muito bem pelo meu trabalho. E se eu me metesse a fazer o seu trabalho, ia ser visto como um ganancioso. E a ganância não é muito bem vista nos nossos quadros...


Depois do choque, percebi que aquilo tudo só podia ser uma brincadeira. Aceitei a piada. Me despedi do sr. Itajibe e fui para casa. Ele me recomendou que assim que chegasse fizesse uma assinatura dos principais jornais e revistas e depois das sete da noite não saísse da frente da TV. Itajibe se despediu me dando seu cartão, com seu nome, sua função (gerente de operações – RJ) e o nome da corporação: “BETTER WORLD. Seria bem adequado, se fosse sério. Fui pra casa decidido a não gastar a grana até ver em que ia dar essa comédia.

Imaginando que poderia ser algum tipo de jogo dos próprios programas de TV, assisti a todos. Não tinha o hábito de ver esse tipo de lixo televisivo, e a maratona de 4 horas vendo apresentadores acéfalos fazendo palhaçadas para uma plateia demente me fez ver a ironia do nome “horário nobre”. As onze e meia da noite, vendo que nenhum programa fez qualquer alusão à Better World, resolvi testar a eficiência da corporação. Peguei o número do telefone na pasta e liguei. Atendeu uma mulher com todo o trejeito de telemarketing receptivo.

– Better World. Quem fala?
– Paulo de Castro..
– O novo monitor? Nossa...Ou você é muito eficiente ou tem muito pouca paciência!
– Você me conhece?!?!?
– Claro, Paulo...O sr. Leonel já nos passou a sua ficha..
– Ficha?
– Isso..mas são detalhes burocráticos. Qual alvo atingiu seu limiar de saturação?
– Ahn...foi Fulano de Tal...
– Fulano realmente me irrita. Se eu fosse monitora, ele já teria sido retirado há muito tempo..
– Há...pois é...É ele mesmo...
– Bom...seu pedido foi requisitado. Amanhã você terá o resultado. Mais alguma coisa?
– Ahn...não, não...Espera..Vem cá. Esse negócio é sério mesmo?
– Claro! Por que a dúvida?
– Sei lá...pensei que era algum tipo de pegadinha...
– AHAHAHAH....pegadinha?!?!? Nós trabalhamos justamente para acabar com esse tipo de coisa...
– É...eu sei..
– Então...não se esqueça: você é parte fundamental na nossa operação. Você manda!
– Tá...Bem...boa noite..


Fui dormir imaginando até onde iria tudo isso. Quem quer que estivesse fazendo essa brincadeira gastou um bom dinheiro e tempo só pra me sacanear.

Acordei pela manhã e nem lembrei de imediato da Better World. Saí de casa para tomar um café e comprar o jornal. Quase tive um enfarte ao ver a manchete:

Fulano de Tal morre em acidente automobilístico


Fiquei em pânico! O sujeito morreu mesmo! E segundo dizia a matéria, era um acidente nebuloso. DEUS!!! O que eu fiz?!?!?! Depois de passado o susto inicial, a última frase da atendente da Better World ficava ecoando na minha cabeça...

– Você manda!

Então eu tinha, mesmo que indiretamente, sido o mandante de um assassinato. O que eu devia fazer? Ir a polícia realmente não adiantaria. Além deles não acreditarem em mim, agora, se eles acreditassem, eu estaria envolvido. Pensando bem, Fulano de Tal não valia uma prisão. Mas eu, decididamente, estava fora da operação.

Fui correndo até o escritório do Itajibe. E quem disse que havia alguma coisa lá? Nada, além do mofo nas paredes, que lembrasse a existência do gerente de operações da BW. Voltei pra casa voando, e liguei pra corporação...

– Better World. Quem fala?
– Paulo de Castro...O que diabos está acontecendo?!?! Vocês mataram o sujeito!!! Vocês..
– Paulo...matar é um termo muito pesado. A Better World prefere a expressão “aposentadoria...
– FODA-SE a preferência de vocês!!! Vocês mataram uma pessoa!!!
– Que seja! Você sabia o que significava sua ligação.
– Eu pensei que fosse uma brincadeira!
– Por que você pensou isso? O sr. Leonel não foi claro na sua explicação do cargo?
– Foi, porra, foi!!! Mas, caralho!!! Como eu poderia imaginar que fosse verdade?!?!
– Mas é, Paulo...e é melhor você se acostumar com isso..
– ME ACOSTUMAR?!?! Vocês são loucos de pensar que eu vou continuar com isso!!!
– Paulo! Você tem uma meta, sabia? O sr. Leonel não te explicou?
– CAGUEI pro que o Itajupi..
– Itajipe
– QUE SEJA!!! Caguei pro que ele explicou!!! Eu estou fora!!! Quero saber onde eu devolvo a grana...
– Você não tem o que devolver. O envelope é por “aposentadoria” realizada. O dinheiro é seu. Você foi o mandante da operação.
– Mandante é o caralho!!! Estou fora!!!


Não sabia o que fazer. Eles tinham meu endereço, conheciam meu rosto. Eu estava encurralado. Resolvi ficar trancado em casa uns tempos. Sem jornal, sem TV, sem nada...Depois de dois dias, recebo uma ligação.

– Paulo?
– Quem fala?
– Aqui é Leonel no aparelho...
– Itajipe, seu filho da puta!!!
– Vejo que decorou meu nome, finalmente, Paulinho.
– Paulinho merda nenhuma!!! Quero devolver a grana! Estou fora disso!
– Não.
– Como não? O que não? Fala, porra!!!!
– Não existe a opção “fora disso” no nosso acordo..
– Acordo?!? Que acordo?!
– O nosso acordo. Eu te expliquei a natureza do trabalho, você aceitou, levou seu dinheiro. Agora você faz parte da corporação
– Corporação é o caralho, seu bosta!!! Estou fora!!!! Não faço mais essa merda de trabalho escroto!
– Paulinho...Você tem uma meta. É melhor cumpri-la...
– Enfie a meta no cu!!! Eu nunca mais ligo a tv se for necessário!
– Olha, Paulo...Eu já tive bastante paciência com você. Você até agora só me falou desaforos. Tenha, pelo menos, educação. E, para o seu bem, é bom que você volte a ver televisão...
– Volto nada! Já disse, estou fora...
– Essa é sua decisão definitiva? Sabe que implicações isso pode gerar?
– Sei sim, seu merda!!! E não me ligue nunca mais! Estou fora!!
– É uma pena...Nosso departamento de pessoal vai tomar as medidas cabíveis.
– Isso!!! Mande o “departamento de pessoal” me ligar mesmo...
– Certo...Paulo, só mais uma coisa...
– O que?
– Lembre-se...Tudo começou com seu telefonema. Na Better World, TUDO se resolve por telefone. Cuidado com as ligações que você receber daqui pra frente.

Bati o telefone. Não queria mais saber dessa história maluca. Era só deixar a poeira baixar um pouco e tudo estaria bem....ou não?

Eles sabiam onde eu morava e meu telefone e como eu era. E eu não sabia nada sobre eles. Só conhecia o Itajibe – que pelo visto eu nunca mais iria ver na vida – a dona Gorete e a voz da telefonista. Que chance eu teria contra eles? Que chance???

Estou a três meses praticamente sem sair de casa. Só saio me esgueirando, disfarçado, e até de orelhões na rua eu tenho medo. Fujo deles, pra falar a verdade. Como evito sair de casa o máximo possível, acabei gastando o dinheiro que eles me pagaram pelo serviço (serviço?) com entrega de comida. E é só para isso que eu uso o telefone. Nunca mais atendi a uma ligação sequer.

Alvorada


Se deram tão bem, que sem notar, passaram a noite inteira conversando. Estavam na praia, vendo o céu estrelado e nem perceberam a alvorada chegando, sutil. E só se calaram porque o sol, mais silencioso do que nunca, deu o ar de sua graça e chegou derrubando suas palavras na areia.

Isso não os abalou. Abaixaram-se, cataram cada palavra do chão, e continuaram.

16.2.03

O Flàneur


...O flàneur é alguém abandonado na multidão...- Silvio Medeiros

Gostava de andar pelas ruas do Rio de Janeiro. Não tinha nenhum objetivo claro, apenas caminhava e observava tudo, pessoas, carros, prédios. Não era raro ser encarado, e quem o encarava, não raro o achava louco. Fitava esses com olhos curiosos. Achava que eram loucos. As diferenças entre as construções e as feições das pessoas o fascinavam. O mundo era um caleidoscópio que, parecia, só ele percebia. O cotidiano que para todos era uma prisão, para ele, era seu tesouro.

Nos dias de sol acordava com outra disposição. Tomava seu banho com calma, feliz por antecipação. Teria mais uma manhã de caminhada pelas ruas cariocas. Ia com calma, as vezes, ficava o dia inteiro andando. Não tinha emprego, não tinha compromissos, nem amigos. Morava de favor num quarto nos fundos de um quintal de subúrbio. Ganhava sua vida fazendo bicos, capinava um terreno aqui, carregava umas bolsas ali. Dava para seu sustento. Comia e tinha dinheiro para seu ônibus. Era o que bastava.

Não sentia falta de amigos. A empregada da casa onde tinha seu quartinho era sua única relação com o mundo das pessoas. Ela lhe entregava o café e o pão com manteiga, conversava brevemente sobre o tempo ou algo de muito anormal que houvesse acontecido na vizinhança – “o filho de dona Cida tinha sido preso” ou “a Marlene foi pega no flagra colocando um chifre no Alaor” – e se despediam. Ele não gostava que o papo se estendesse. Queria ir logo para as ruas.

Pegava seu ônibus, ainda lotado de gente indo para o trabalho. Olhava as caras cansadas e irritadas pelo empurra–empurra no ônibus ou pela rotina cansativa dos seus subempregos e não as entendia. Eles tinham a obrigação de ir para a cidade. Era tudo o que ele queria.

Ele sonhava com um emprego de contínuo. Imaginar ficar o dia inteiro pelas ruas e ainda ganhar para isso era tudo o que ele poderia desejar. Certa vez ele até conseguiu uma vaga de boy numa empresa na av. Rio Branco. Durou uma semana. Esquecia-se da hora andando pela cidade. Ia pela rua da Assembleia, seguia pela Carioca, passava pela Praça Tiradentes, entrava na rua do Lavradio e chegava na Lapa. Aí, era sua perdição. Podia seguir para o Passeio Público, ou ir até a Glória. Em um dia que achava estar com mais tempo, chegou a subir para Santa Teresa. Esse exagero foi decisivo. Seu chefe o acusara de ficar nos fliperamas o dia inteiro. Uma injustiça completa.

Depois dessa má fadada experiência, resolveu que sua vida era boa como estava. Tinha como manter seus parcos hábitos e era feliz assim. Tinha suas ruas e isso lhe bastava. Não se importava com o que diziam na sua vizinhança. Para todos, tinha perdido a razão, por isso não se importava em ser um cara sozinho. “Sozinho”, pensava ele, “idiotas! Eu tenho todos comigo e eles nunca me terão”.

Só que algo ocorreu, aos poucos, como um vírus inoculado em seu organismo. Sem perceber, suas ruas estavam ficando iguais. Aos poucos, ele deixou de perceber as variações entre rostos e prédios. Depois de algumas semanas, tudo para ele era igual. Um Rio de Janeiro formado por blocos de concreto de diferentes tamanhos, mas sem relevos e uma população de gêmeos entediados, andando como sonâmbulo pelas suas ruas. Ele esfregava os olhos, desesperado, a procura do seu antigo mundo fragmentado e lindo. Não adiantava. Era tudo uniforme. Tudo igual na sua feiura. Os rostos desconhecidos das pessoas eram seus melhores amigos. Pela primeira vez na sua vida, se sentiu completamente abandonado, só num mundo de feições eternamente conhecidas.

Um dia a empregada foi levar para ele sua média com pão. Encontrou-o chorando, num canto do seu quarto. Ao se aproximar dele para ver o que havia, ao ver seu rosto, deixou o modesto café da manhã ir ao chão. Ele não tinha lágrimas no rosto. O que escorria pela sua face era sangue. Ele havia furado seus olhos.

12.2.03

Minha Mãe e o Transtorno


CRASH!!!!

– Buáááááááá...
– Menino! O que você fez??? Se eu te pego!!!! 2 anos é só me dá trabalho! Volta aqui, peste! Vou esquentar seu traseiro!!! Se com essa idade você já apronta, nem quero te ver com 20 anos...

***

– Vam´bora, Duda! Vamos logo! Ninguém vai ver!
– Sei não, Carlinhos...Se sua mãe chega...
– Chega nada!!! Ela foi na padaria...A gente sobe aqui na mesa e consegue pegar os biscoitos rapidinho...
– Carlinhos...é melhor não...
– Você é uma bichinha mesmo, Duda...

CRASH!!!!

– Carlos Alberto!!! O que você fez, sua peste?!?!
– Calma mãe!! Foi sem querer!!!
– Sei, foi...mas agora você vai apanhar de propósito!
– Não mãe, não...AH! Buááááááááááá...
– É isso que você merece, pivete!!!! Você vai aprender, nem que eu te mate de pancada!

***

– Carlinhos...isso faz mal, rapaz!
– E daí? A gente só tem 13! Isso só começa a fazer mal depois dos 50 anos...
– Mas Carlinhos...a sua mãe...
– Porra, Duda! Já vai começar com essa história de mãe??? Você é um cagão mesmo!
– Sou mesmo! Não vou fumar cigarro só porque você quer...
– Então sai fora, moleque...não quer virar homem, não vira...
– CARLOS ALBERTO!!!!!
– Ahn...oi mãe...
– O que vocês estão fazendo aqui na garagem??? O que é isso que você está escondendo nas costas?
– Nada, mãe...
– E nada agora faz fumaça? Deixa eu ver isso aqui...UM CIGARRO?!?!? Você ficou maluco, Carlinhhos?!?!
– Não, mãe!!! Eu só queria ver ele queimar!!!
– Quem vai queimar agora é a sua cara, moleque?!?! Que história é essa!!! Fumando?!?!?
– Não, mãe! Não...AH!!!!
– Seu marginal!!! Tem que apanhar muito ainda pra aprender!!!!

***

– Hmmmm...vem Silvinha...não custa nada...estamos sozinhos aqui...
– Mas Carlinhos...Não sei se estou preparada pra isso...
– Não está ainda?!?!? Eu estou!!! Olha aqui...
– CARLINHOS!!! Coloca isso pra dentro da calça!!!!
– Ah...vai dizer que você não gostou? Pega nele, pega...
– Não, Carlinhos!!! Nós somos primos!!!
– Ih, Silvinha..primo não é parente...
– Não sei, Carlinhos...se meu pai nos pega...ou sua mãe...
– Esquece minha mãe, Silvinha...ela tá roncando no quarto..
– Tem certeza, Carlinhos?
– Tenho, amorzinho...Isso...sem medo...
– CARLOS ALBERTO?!?!?! O QUE É ISSO?!?!?!
– Ai, merda...Nem vou tentar explicar mãe...Foi culpa da Silvinha!
– O que?!?!?
– Nem precisa falar nada, Silvinha! Você acha que eu vou acreditar que uma garota como você teria culpa nisso?
– Não tenho, Tia!!!
– Merda...
– Carlinhos... Você vai apanhar duas vezes...primeiro pela sem-vergonhice que você estava fazendo, depois, pelos palavrões que você falou agora...
– E merda é palavrão?

SLEPT!!!

– Ai!!! MERDA!!!
– Ah, seu moleque....Você não presta mesmo!!! Depravado!!!

***

– Alô?
– D.Odete?
– Sim. Quem fala?
– A senhora é a mãe do Carlos Alberto?
– Sim...mas quem fala???
– Aqui é a segurança do Shopping Sul. Aconteceu um pequeno transtorno numa loja daqui com seu filho.
– Meu filho?
– Isso. Ele foi apanhado roubando um CD...
– CARLOS ALBERTO? MEU FILHO? IMPOSSÍVEL!!! Ele é um amor de menino!!!
– Ahn, mas não foi só isso, senhora. Ele desrespeitou um segurança e o agrediu...
– Ah...Vocês NÃO PODEM estar falando do meu Carlinhos...Ele é a criança mais educada do mundo...
– Não parece senhora. Primeiro porque com 20 anos, ele não é uma criança...
– Pois pra mim, é...
– E segundo, ele REALMENTE agrediu um segurança...Nosso segurança teve que controlá-lo utilizando uma certa força...
– CERTA FORÇA?!?!? VOCÊS BATERAM NO MEU FILHINHO?!?!?
– Bom, nós tivemos que contê-lo e...
– E, nada!!! Vou para aí agora!!! Com a polícia!!! Meu filho não pode apanhar assim!!! Me aguarde, “senhor” segurança....

BLAM!!!

– Onde já se viu!!! Bater assim no filho dos outros!!! Transtorno!!! Tá bom....

Quando eu pegar o Carlinhos, vou esfolar ele vivo!!!

5.2.03

Sentidos


Não te escuto, mas me afogo em seus sons. Estou imerso em um labirinto de barulhos discretos que explodem em meu cérebro. Não há outro som no mundo, somente o da sua respiração, sua voz, o ruído dos seus passos.

Não sinto seu cheiro, mas conheço seu odor, como se sempre estivesse dentro de você. Sou parte do seu ventre, como se tivesse vindo do seu próprio útero. Eu não respiro ar, respiro você.

Seu gosto infecta minha boca, minha língua de nada serve, além de sentir seu sabor. Sinto seu paladar com minha boca, e cada poro da sua pele é o que há no mundo para ser provado.

Não existe o toque, mas sua textura é a única coisa tátil para mim. Como um Midas enlouquecido, tudo o que toco se transforma em você. Meu tato é apenas uma extensão do seu corpo.

Meus olhos são cegos: a única visão que me atormenta é a sua imagem. Ela me persegue por caminhos escuros e só encontro um pouso seguro quando encontro sua mão para me guiar. Só posso retribuir com milhares de beijos em braile.

4.2.03

Sabonetes

Ela se foi e levou minha coleção inteira dos Pixies. Levou meus livros do Cortazar. O DVD deve ter sido a primeira coisa a ir pra mala. O que havia de roupas que coubessem nela e não ficassem extremamente masculinas, ela levou também. Ela levou até uma samba-canção que, confesso, ela usava mais que eu.

Mas o que me fez explodir mesmo foi o ataque que ela fez ao banheiro. Quem, em sã consciência, ao se separar de alguém – unilateralmente e sem avisar, diga-se de passagem – perde tempo limpando o banheiro? E não falo de toalhas ou dos seus perfumes ou do tapetinho ridículo que ela comprou. Ela levou tudo!

Cheguei cansado do trabalho e ao abrir a porta, já percebo qual foi o resultado da nossa briga pela manhã. Só de ver com que cuidado ela tirou a fiação do DVD já deduzi com que humor e velocidade ela saiu do que costumávamos chamar de lar. Depois de constatada a fuga, fui ao banheiro tomar um banho, pra pensar melhor na situação. Foi aí que fiquei revoltado. Ela não deixou nem um sabonete no banheiro.

O que passa na cabeça de alguém que age assim? Só pode ser louca! Claro que o certo era nos separarmos. Ela se preocupa em levar mais de cinco mil pratas em equipamentos eletrônicos da minha casa e também em roubar 10 reais em sabonetes. Só pode ser um desvio de comportamento dos mais graves.

Não sei se foi o abuso do tunga que levei, a constatação que vivi anos com uma louca ou a falta de um banho que me fizeram ir à delegacia. Eu tinha todas as notas fiscais de tudo que ela havia levado – menos dos sabonetes, claro – e não ia deixar barato esse assalto.

– Furto...
– Anh?
– Foi um furto, senhor. Ela não assaltou o senhor...
– Que seja!!! Não é isso que importa. Ela me roubou! Levou até os sabonetes lá de casa!
– O senhor já me disse isso. Acalme-se. O senhor quer mesmo registrar um queixa contra sua senhora? Não existe a chance dela voltar com suas coisas?
– Eu não quero ela de volta! Você não entendeu?!?! Ela levou até os sabonetes!!! Uma pessoa dessas não é normal! Eu não quero ela nem perto de mim! Ela tem que ser presa! Alguém que faz isso é capaz de fazer qualquer coisa, até matar! Ela é um perigo para a sociedade!!!
– O senhor está exagerando. E não precisa gritar dentro do Distrito, por favor.
– Não preciso!?!?!? Eu fui roubado por uma psicopata em potencial e você fica me impedindo de fazer uma simples queixa! Porra!!!
– Senhor, modere sua linguagem! Posso prendê-lo por desacato!
– O que?!?!?!? O QUE?!?!?! Essa é boa!!! Eu, que pago meus impostos, caríssimos por sinal, em dia, venho pedir ajuda à polícia e sou ameaçado...Que merda de policial é você?!?!
–Já chega, senhor! O senhor foi avisado que não toleraria mais sua atitude agressiva. O senhor será levado AGORA para o xadrez...Quem sabe lá o senhor não se acalma...



Se isso não é uma inversão total de valores, não sei mais o que é! Tinha que ligar pra alguém vir aqui e pagar minha fiança. E no momento, não tinha ninguém mais pra recorrer. Liguei pra ela.

– Oi...
– O que você quer? Não adianta que não quero te ver, nem vou levar suas coisas de volta! Você hoje passou dos...
– Calma, porra!!! Você tem que me ajudar! Eu estou preso...
– O que??? Preso?!?!?
– É...é uma história longa. Vem aqui e paga minha fiança...
– Você não levou sua carteira, retardado?
– Olha...se você soubesse meu estado de nervos, não falaria assim comigo...
– Por que? O que você vai fazer? Fugir da cadeia pra me bater?
– Olha, sua....tá bom, tá bom...Você pode, por favor, passar na delegacia e me tirar daqui?
– Hmmmm....isso não é um golpe seu?
– NÃO, MERDA!!!
– Olha o tom!
– Tá bom...vem aqui logo, tá?
– Tá...Vou te quebrar esse galho...Mas me fala antes como foi parar aí.
– Humpf! Tá bom!!! Estou preso por desacato...
– Desacato? Já sei! Tomou uma multa e brigou com o guarda, né? Você anda muito estressado! Já falei pra você..
– Não foi nada disso...E se eu estou estressado, é muito por conta dessa sua mania de ir inventando as coisas...


Começamos mais um discussão inútil, e no caso, fora de hora também. Em poucos minutos, estávamos nos xingando, como de costume.

– HAHAHAHA...Você é mesmo louco!!! Está preso por causa de alguns sabonetes!
– Louco? Você é que é maluca!!! Por que diabos tinha que levar todos os sabonetes de casa?!?!
– Tá vendo como você é? Se mete numa merda sem tamanho por causa dessas suas obsessões, me pede um favor num dia em que eu nem quero olhar pra sua cara e ainda me ofende...Você não vai muito longe assim, sabia?


Triste era ter que dar o braço a torcer. Olha onde eu havia me metido, pelos mesmos sabonetes que começaram tudo. Eu estava ficando maluco, só podia ser...E pensando bem, o fato da única pessoa pra qual eu ligaria na situação em que me encontrava era sintomática. Eu não tinha amigos, e isso se deve muito ao meu comportamento um tanto quanto estourado. E por isso, dependia de uma louca pra me tirar da cadeia.


Ela me deu um chá de cadeira dos grandes, garanto que só de sacanagem. Me deixou a noite toda no xadrez e eu sem poder ligar pra ela, pra saber onde andava. De manhã, eu pensava em como era prático eu já estar preso: por causa da maldita demora dela, assim que eu a visse, eu pularia no seu pescoço e só soltaria dele quando ela estivesse roxa. Depois de algum tempo vem um guardinha dizendo que eu estava liberado...
– Aí, Sabonete! Tua mulher pagou tua fiança..se adianta...

SABONETE!!! Um maldito dum policial retardado fazendo pouco de mim por causa daquela maluca! Essa era a última humilhação que eu passava por causa dela. Ela me pagaria!!!

Mas quem disse que era a última? Assim que eu cheguei na recepção do Distrito pra pegar meus pertences, vejo que todos os policiais estão rindo de mim. Quando já havia pego tudo o que tinha trazido, me aparece um pacote com o meu nome. No que eu abro o embrulho, a Delegacia veio abaixo. Era um pacote de cheio de sabonetes. Dentro, um bilhete:

Tome, já que te causou tanto problema. Veja se consegue limpar sua barra com eles!

Não tinha assinatura, mas eu reconheci a letra. A risada dos policiais foi a gota no já cheio copo d´água. A noite passada acordado numa cela, a espera por ela e até a falta de banho me fizeram explodir de vez. Sai da Delegacia direto para casa da mãe dela...

Reconheço hoje que devo tentar controlar meus ataques. Hoje, estou cumprindo pena – 4 anos – por tentativa de assassinato. A prisão nem é tão ruim. Misteriosamente sou muito respeitado por aqui. Sempre que conto que estou preso porque tentei matar uma mulher que roubou uns sabonetes na minha casa, o papo morre de uma hora pra outra.

30.1.03

Chaos...


- Peixes são tão bonitos! Alguns são até gostosos...Mas como fedem no prato!
- Você fala isso porque nunca comeu carne humana minha filha!


Honestamente? Toda propaganda é trocadilho. E trocadilhos fedem. Prefiro piadas: como aquela da conversa entre um tijolo e a tijola, terminando o relacionamento. Eles eram muito unidos, mas havia um ciumento entre eles...

Eu odeio aquela velha coroca que mora na minha rua. Mas adoraria ser seu genro.

Eu sou um cara higiênico. Sempre que chego em casa, faço questão de lavar as minhas mãos...É quase compulsivo, as vezes fico horas lavando-as, com variados tipos de sabão. Mas por mais que eu as lave, nunca consigo tirar esse cheiro de civilização delas...

Não diga "não, nunca", esta noite, de novo. Estes somos nós. Lamente-se por isso, mas não queime suas fichas. Não essa noite. Não de novo.

Quando deletamos algo do computador, simplesmente acabamos com algo que não existe, algo que não é real. É o mesmo que acontece quando apagamos uma memória. Mas apagar uma memória é bem mais complicado: não temos uma tecla DEL no cérebro...

No fim, há razões que a própria razão desmerece...Isso não faz sentido, e ainda por cima é um trocadilho. Por isso, não acredite no que eu falo. Eu mesmo tenho isso como um costume salutar...

29.1.03

Prosa do Desespero


Eu quero escrever algo como quem vomita. Estertorar o que há de bom nas palavras, morrer com elas. Tingir de rubro-sangue as paredes: perdigotos e frases vermelhas manchando o alvo de muros que nos encerram. Quero o ódio da sintaxe.

Quero palavras que rasguem esse céu azul, que tirem as pessoas da praia com sua torrente de eloquência numbica. Não restariam surfistas na ressaca de oratória. Suas ondas seriam muito fortes.

Quero palavras que transformem as púberes garotinhas hedonistas e fúteis, eternamente abraçadas aos seus ursinhos de pelúcia e gemendo à noite por seus astros em posters de parede em putas. Quero a devassidão das metáforas e a maldade dos solilóquios.

Guerras seriam criadas com as prosódias proferidas pela minha boca. Quero ser o inimigo público número um, caçado por todos os filólogos empedernidos e policiais truculentos. Farei de seus próprios dicionários e armas meu escudo.

Quero as últimas palavras do condenado. Quero minhas as palavras moribundas.

28.1.03

Notícias Impopulares


Não compro os jornais atrás das manchetes. De nada me importam as decisões da equipe econômica ou as novidades nos fronts internacionais. Não. O que me interessa é o cotidiano, as notas de pé página, os tijolinhos culturais, os anúncios de produtos que não vendem, as notícias que ninguém quer ler. Quero a parte comezinha dos diários.

Como a notícia sobre a pobre D. Amália, notória em sua vizinhança pela sua enorme criação de gatos. Um dia, D. Amália sumiu. Depois de dias sem dar as caras na rua, os vizinhos – sempre preocupados!– resolveram arrombar a porta da D. Amália. Encontraram-na caída no chão. Estava morta.
Quando a vizinhança percebeu o sumiço de D. Amália, a primeira teoria sobre seu sumiço era de que seus gatos haviam devorado seu corpo enquanto a velhota dormia. Coitados. D.Amália morreu de indigestão: havia comido seus 37 gatos sem um motivo aparente.

Outra parte do jornal que achei muito interessante, mas que passou desapercebida pela opinião pública em geral, foi a reclamação da Associação de Moradores da Rua Dorival, (a AMADOR) num dos subúrbios da Central do Brasil. Há dias que um bueiro estava transbordando, tornando o lugar, já tão abandonado pelas autoridades, insuportável. O cheiro estava deixando os moradores da localidade enjoados, e grande parte dos habitantes da Rua Dorival não conseguia mais respirar direito. O inusitado da história é que bueiro estava despejando Channel n° 5 pelas ruas, e não esgoto não tratado.

Tem também o anúncio do Motel Boa Cama com sua incrível promoção: Pague o período de 4 horas entre 13:00 e 16:30 e ganhe um almoço executivo. “Porque no Boa Cama, comer são as DUAS melhores coisas do mundo!”.

É esse tipo de artigo que eu procuro nos jornais. O mundo é mundo há muito tempo para mim. Prefiro esses microcosmos desconhecidos, essas zonas fronteiriças ao nada, onde o que acontece só interessa porque não tem importância.

25.1.03

O Esconderijo do Verbo


O esconderijo do verbo está naquela frase que você não disse que deveria ter dito. Ele se escondeu ali, no meio da sua garganta, criando um nódulo temporário, impedindo que suas cordas vocais vibrassem. Você tinha a frase ali, pronta, como dizem, “na ponta da língua”...só que ela não chegou até a língua.

O verbo se escondeu no meio dos fios telefônicos, um pouco antes de você ouvir o clique seco do outro lado.

Sujeito esperto que é, o verbo cria suas distrações, se utilizando do mimetismo. Ele cria uma distração, no momento em que aparece o silêncio constrangedor entre duas pessoas que não sabem o que dizer uma para outra.

Mas o verbo também sabe ser amigo, ao evitar que você xingue seu patrão quando ele te sacaneia ou te humilha na frente dos outros. Você sabe que o certo seria mandar seu chefe pro meio do inferno, mas sem achar o verbo certo, você não manda em nada.

O esconderijo do verbo fica nas entrelinhas do tudo.

23.1.03

Indisposição

Acordou estranhamente indisposto. Não queria levantar da cama, apesar da sua mulher o chamar para o trabalho. Não estava doente. Só não queria levantar da cama.

Não queria levantar da cama para ir pro seu emprego maçante de concursado federal, repartição, carimbos, memorandos, litros de café. Não queria o beijo de despedida dessa mulher que dormia ao seu lado a vinte anos, não queria ouvir “saudadinha, benhê”, aquela frase que ele detestava e ouvia da estranha que dormia a seu lado há tanto tempo toda vez que ele saía de casa para o seu trabalho maçante. Nunca reclamara do seu trabalho maçante, nem da estranha que dividia sua cama, nem do “saudadinha, benhê”, nem de nada. Ele não reclamava nunca. De nada.

Não sabia como tinha virado esse parvo, esse moleirão, que aceitava todas as pancadas que sua vida lhe proporcionava todo dia. Ele era feliz, antes. Não lembra bem até quando ele tinha sido feliz. Fez um esforço mental para se lembrar.

Quando ele era criança, com certeza ele era feliz. Rodar pneu na rua, subir em árvore, soltar pipa. Uma vida simples e comum, de moleque. Ele se esforçou pra se lembrar de cada passagem feliz que teve na vida, desde sua mais tenra idade. Era o que ele podia achar de consolo para essa vida que o havia dominado.

E se lembrou de tudo. Tudo mesmo. Ficou na cama. Não atendeu aos chamados da estranha que vivia com ele. Não foi ao seu trabalho maçante, nem ligou para avisar. Ele estava vivendo de novo. Na sua cabeça apenas. Era o que restava para ele.

E lembrou de cada dia, cada hora, cada momento, com precisão. E assim ficou. Dias, semanas, meses.

Ele ainda estava se lembrando do que tinha vivido com 10 anos de idade e sua barba já estava enorme. Suas articulações estavam travadas. Ele não se levantou da cama. Durante anos. Médicos, espíritas, equipes de TV. Todos foram ver o homem que dormia por anos, sem razão aparente.

Eles não sabiam. A razão era uma só. Ele estava vivendo. De novo.

17.1.03

O Desencontro

O Desencontro é uma encruzilhada onde todos sabem chegar, mas lá não há placas. Segue-se o caminho que o viajor decide. Mas ele invariavelmente está errado.

Todos que chegam à Desencontro esperam algum tempo, no meio da rua, por algo que não sabem ao certo o que é. Alguns se preocupam inutilmente com um possível atropelamento, que nunca vai ocorrer. Os carros não passam em Desencontro. Esses, de espírito mais prático, são os que mais sofrem para sair de Desencontro. Deve ter algo a ver com sua fisiologia.

Milhares de pessoas vão todos os dias à Desencontro, mas, misteriosamente, nunca há mais de uma pessoa na sua encruzilhada. Saber o que fazer em Desencontro é algo que se deve fazer só.

Algumas pessoas vão mais de uma vez à Desencontro. Depois de passar por essa experiência nem sempre agradável, eles tentam fazer um mapa de seus caminhos, mentalmente, e fazem diagramas em papeis e os levam consigo, para conseguir achar uma saída rápida. É um trabalho desnecessário. Nunca se sabe a hora exata de ir à Desencontro. E – novamente eles – os de espírito prático, que carregam seus guias amarrados às suas roupas, ao chegar em Desencontro têm uma terrível decepção: suas plantas, relembradas e desenhadas em papel manteiga com tanto cuidado se transformam em desenhos circulares, de muito pouca ou nenhuma utilidade.

Muitos dizem que os caminhos que se seguem à Desencontro são sombrios. Outros dizem que Desencontro leva à uma reta tranquila, com um destino feliz. Cada um acha a melhor maneira de sair de Desencontro.

Mas todos devem ir lá um dia.

16.1.03

Amigos para sempre


Nunca soube qual era o grande problema em sumir com um corpo. Um corpo! Um corpo é feito de carne! Existem milhares de coisas que podemos fazer com carne para que ela desapareça sem deixar vestígios. Carne é mole, macia. Você pode queimá-la, amassá-la, derretê-la com ácido ou picá-la em pedacinhos. Pronto, lá se foi o corpo.

Nos filmes os assassinos sempre são pegos quando se acha o corpo. Bom, as vezes não é por acharem o corpo, mas se você pensar que sem corpo não há crime, entende-se a importância de se dar um sumiço no morto.

Comecei a pensar nesse assunto depois que havia me decidido a matar alguém. Essa primeira decisão já me tomou algum tempo. Tinha alguns pudores em cometer tal ato, mas no final das contas me resolvi. Se formos pensar bem, só vivemos uma vez e eu acho que devemos experimentar de tudo enquanto temos tempo.

Queria sentir a sensação de acabar com a vida de alguém. Vocês vão pensar que eu sou um sádico maluco ou apenas um psicopata. Não é nada disso. Considero-me até uma pessoa calma e pacífica. Mas a vontade de cruzar a fronteira – estabelecida pela sociedade – entre o bem e o mal me excitava bastante. Restava apenas saber como fazê-lo de modo perfeito. E isso implicaria, é claro, em não ser pego. A experiência de passar um tempo na prisão não me apetecia tanto.

Minha primeira ideia era a de simplesmente esfaquear alguém no meio de uma rua movimentada do centro da cidade e sair correndo. Sou um cara de estatura mediana, sem traços característicos. Se eu dobrasse a primeira esquina me misturaria na multidão e nunca mais seria visto. Abandonei esse plano ao ver que ele não tinha um pingo de sofisticação. Não seria diferente de dezenas de assassinatos cometidos pelos pivetes todos os dias. Meu crime teria que envolver algo de intelectual.

Pensei então que o principal seria escolher uma vítima perfeita. Tinha que ser alguém cuja suspeita do crime nunca recaísse sobre mim. Alguém que eu não tivesse o menor motivo para fazer qualquer mal. Confesso que não demorei muito para achar a pessoa ideal. Mataria meu melhor amigo.

Não fiquem chocados! Eu nunca consegui ter essa ligação afetuosa profunda com ninguém. Pra ser sincero, acho as pessoas, em sua maioria, completamente enfadonhas. E o César, apesar de ser o meu melhor amigo, era terrivelmente tedioso. Era o tipo de cara que se acha o máximo. Para ele, cada frase que saía de sua boca era uma verdade absoluta e inquestionável. Acho que o que mais me incomodava nele era que ele era muito parecido comigo. E se ele resolvesse ter a mesma ideia que eu? Eu seria uma vítima em potencial para seu crime perfeito.

O que me fez escolher o Cesar definitivamente foi uma das suas frases de efeito que ele falou numa conversa entre amigos. Não havia ainda escolhido meu morto perfeito, até que ele lançou a pérola:

– Escolham sempre bem seus amigos. Eles podem ser eternos!

A frase estúpida e a cara de superioridade que ele fez após tê-la dito foram sua sentença de morte. Ele não só seria uma vítima ideal como merecia morrer.

Restava saber como matá-lo e como dar um fim em seu corpo. Não seria cruel com Cesar. Não se esqueçam, ele era meu melhor amigo. Ele não tinha culpa de ser uma boa pessoa para ser assassinada. Resolvi então dar-lhe um presente de despedida: ele morreria no mar, que ele tanto adora. Por ser sempre meu amigo e me ajudar a realizar uma experiência importante para mim, ele ganharia um passeio de barco, um dos seus passatempos preferidos.

Precisava arranjar um álibi para mim. Saí falando que ia fazer uma breve viagem, que resolveria uns problemas na Serra e à noite estaria em casa. Fui à marina e aluguei um barco com um nome falso. Paguei pelo dia inteiro, comentando com o encarregado que iria dar uma volta pelo litoral e que pegaria uns amigos em outras marinas. Assim ninguém acharia estranho se eu saísse com um amigo e voltasse só. Depois liguei pro celular do Cesar, convidando-o para almoçar. Disse que tinha alugado uma lancha, que iríamos ter uma refeição marítima.

– Por que isso tudo? Feliz com alguma coisa?
– Estou sim, Cesar. Vou fazer algo que sempre tive vontade de fazer e nunca pude. E você vai me ajudar nisso. Mas só vou te contar dentro do barco.
– Olha...Não me venha com homossexualismo, viu...Tenho muito trabalho no escritório e não vou ter tempo de te enrabar.
– Você é um humorista de mão cheia, Cesar. Estarei te esperando na porta do seu prédio, à uma e meia.
– Tá bom, amoreco...


Esse papinho rotineiro só reforçou minha vontade. Estava tudo pronto. Eu finalmente me tornaria um assassino. E o que era melhor, impune. Peguei Cesar no trabalho e corri para marina. Ele estava curioso e eu, como era de se esperar, ansioso. Fui calado até a marina, apesar dos insistentes pedidos para que eu explicasse o porque daquele meu sorriso. Entramos no barco servi o que seria a última refeição do Cesar:

– Você chama isso de “almoço”?
– Para de reclamar. Pode ser fast-food, mas pelo menos você está comendo com uma vista maravilhosa...E nem pagou nada por isso.
– Ta bom, feladaputa...agora me conta logo o porque de tanta alegria...
– Ok...fique de costas...quero te mostrar uma coisa.
– Ih...vê lá o que você vai fazer!!! Agora, olha só...virando viado depois de velho..


Quando ele se virou, acertei com um remo na sua nuca. Ele desmaiou imediatamente. Vi que sua cabeça sangrava. Não queria que ele morresse assim. Enrolei sua cabeça com um pano e comecei a executar o que tinha planejado como seu grand finale. Uns vinte minutos depois, ele acordou.

– Caralho, seu filho da puta!!! O que foi isso!?!?!?! Ficou maluco!!! Me desamarra!!! Vou te encher de porrada!!!
– Não, Cesar, não vai não...agora eu vou te explicar a razão da minha felicidade hoje.


Eu havia o amarrado firmemente com uma corda. E junto, amarrei um belo peso, de uns 15 quilos, só por precaução. Contei pra ele com detalhes tudo o que já contei para vocês. Expliquei-lhe minhas motivações, meus motivos e até o porque da minha escolha por ele. Apesar da minha eloquência, ele não ficou tão entusiasmado com meu plano como eu fiquei. Mas não tinha esperanças quanto a isso. Empurrei Cesar, que se debatia como um peixe–espada capturado, até a borda da lancha. Resolvi lhe dizer umas últimas palavras.

– Cesar....eu gostaria de dizer que não é nada pessoal, mas no fim das contas, até é. Sabe com são as coisas: como você mesmo disse, devemos saber escolher os amigos.

Quando fui atirar seu corpo ao mar, não percebi que uma ponta da corda ficou agarrada ao meu pé. Ao cair no mar, fui junto com Cesar, que se aproveitando da oportunidade, enlaçou seus braços amarrados ao meu pescoço. Isso, podem ter certeza, não estava nos meus planos. Afundamos uma vez, e eu, tentando me soltar do abraço que me seria mortal, acabei trazendo Cesar à tona junto comigo. Ele se segurava no meu pescoço com todas as suas forças, e enquanto nos digladiávamos, pude ouvi-lo gritar, antes de afundarmos pela última vez:

– Os amigos podem ser eternos...

10.1.03

Fórmula para se criar tempestades


Para se irritar o dia, basta esperar que ele surja radiante e não se dê a mínima para seu esplendor. Ficar na cama, imóvel, fingindo mal disfarçadamente um sono que não existe, é a maior das afrontas para um dia de sol. Para que a provocação se torne mais evidente, espere o dia lhe lançar um olhar de soslaio e pisque, enquanto finge dormir. O cinismo desse ato vai acabar com todo o bom humor do dia, fazendo com que ele desenvolva nuvens, primeiro aquelas brancas, bonitas, no fundo do horizonte. Se você tiver paciência bastante para continuar com a encenação, até o meio da tarde, o que era um dia lindo se transformará em pavoroso dia de chuva.