24.9.02

Vida: modo de usar


Eterno insatisfeito, resolvo todos meus problemas na base do chute: guio minha vida assim, descuidadamente, sempre triscando os postes e transeuntes. Não digo que é uma vida perigosa, mas devo respeitar alguns limites, claro. Não posso, por exemplo, deixar de gritar impropérios meia hora por dia pelo menos, ou corro o risco de deixar que as pessoas de ouvidos sensíveis se aproximem demais. Devo também lembrar sempre de mergulhar de cabeça em todo o tipo de incertezas que me apareçam na frente, sejam elas sobre minha futura vida ou minha certa morte. Fazendo isso, evito a acomodação e o mofo que acomete os recalcitrantes do cotidiano. Mau humor é a tônica, pois isso mostra minha aversão ao modo como tudo é conduzido bem debaixo do meu nariz ( e eu sou alérgico à feladaputagem que campeia nosso mundo). Viajar – mesmo sem sair do lugar – é vital para limpar o limo das articulações e das várias arestas corpóreas.

E, isso é muito importante, sempre sentir saudade do que não houve, desejando com ardor as novidades, mesmo que já velhuscas. Saber que o passado que não aconteceu também pode modificar, para melhor, nosso futuro.


17.9.02

Fim



Acabou. Não há de se procurar razões ou culpados. A coisa se deu assim: se esgotou por si mesma, sem chance de volta. É o fim.

Um fim anunciado, talvez. Mas quando não se faz nada para evitá-lo, ele vem. A inevitabilidade da coisa não chegou a transformar a urgência do que viria a acontecer em ação. Se se poderia evitar? Talvez. A questão é que o preço da impassibilidade é esse. Agora, tudo é findo.

Não há arrependimentos, contudo. Os ciclos vêm e vão, são coisas da vida. Não se chocar não é sinônimo de passividade. Querer demonstrar revolta ou perplexidade é, agora, um exercício inútil. É como se desejar fugir da morte. Não há saídas por aí.

E quem pode garantir que o fim de uma fase não será o começo de outra melhor? Quem pode afirmar que não se irão as amarras, não surgirão coisas novas, prontas para serem descobertas e exploradas? Quem garante que o fim não é o melhor que poderia acontecer?

Isso, é território que não nos pertence, ao qual não temos acesso. Vamos apenas vivendo, esperando por algo que nos revolucione a vida.

16.9.02

Amor de mentira


O sujeito acordou um dia, olhou para o lado, viu sua mulher e percebeu que ela lhe era uma completa estranha. Nada sabia sobre seus anseios mais profundos, o que ela realmente desejava para sua vida. Não fazia ideia de que sonhos podiam estar acalentando seu sono. Estava casado há 9 anos com a mulher.

Ficou olhando sua esposa. Até aquele dia sempre pensara que o motivo do seu casamento era o amor que nutria por ela. Mas o que era o amor? Isso, uma rotina de beijos de beijos de bom dia, o–que–quer–pro–café, almoços esporádicos no Centro da cidade, como–foi–seu–dia no fim da tarde, um jantar ou outro sozinhos ou com amigos e sexo mais ou menos interessante 3 vezes por semana, com certeza, não era sequer um invólucro de amor, nem mesmo seu mais pálido arremedo.

Saiu da cama sem fazer barulho. Juntou algumas roupas em uma mala, fazendo questão de esquecer ternos e gravatas. Pegou sua carteira e saiu.



A mulher, ao acordar, notou o sumiço das roupas e vendo a pasta 007 de couro do marido na mesa, notou que ele não tinha ido trabalhar. Achou estranho e ligou para o celular dele. Ele tocou a menos de 2 metros dela, de dentro do terno usado no dia anterior por ele.




Ele foi ao banco e zerou sua conta. Pegou cerca de 87 mil reais, colocou na sacola de ginástica que carregava e saiu. Foi a pé até a banca mais próxima e comprou um jornal. Foi direto nos classificados. Encontrou o que queria em pouco tempo:

Wanda
Loira tipo mignon, olhos azuis, 18 aninhos, muito liberal. Faz porque gosta. Atendimento em casas e motel. Tem privê. Tel: 9999–9999.


Ligou de um orelhão. Wanda parecia cansada, ainda não eram dez da manhã. Marcaram no apartamento dela.

Ele pegou o táxi e parou no prédio repleto de conjugados em Copacabana. Wanda apareceu, tinha acabado de tomar banho e mesmo não conseguindo esconder suas olheiras com a água e o sabão, era bonita. Ele tinha quase certeza que os 18 dela começaram a ser contados uns 5 anos depois do seu nascimento, no mínimo. Não que isso importasse.

Ele entrou sem falar nada. Ela já conhecia esses tipos esquisitos. Não ficou assustada, ele não parecia violento. Foi logo falando quanto seria o programa, mas ele o interrompeu.
– Quero saber quanto você cobraria para me amar…

Vendo a cara de estupor de Wanda, ele explicou sua proposta. Ele estava cansado da sua vida, tudo lhe era enfadonho. Estava cansado dessa vida real que lhe impuseram, da qual ele não teve forças para resistir. Queria emoções de verdade, nem que fossem de mentira. Queria paixões pagas, amores de mentira, mas que em sua falsidade, pelo menos parecessem com algo palpável. Perguntou quanto ela cobraria para deixá-lo morar com ela, por um mês. Pagaria o aluguel e os programas que ela faria à noite. As únicas condições eram a exclusividade – seria só dele, por um mês – e fingiria que o amava como nunca amou alguém antes. Ele queria devoção total, queria que Wanda o fizesse sentir não como o maior dos homens sobre a Terra, mas que ele fosse o único. Ela não sabia o que dizer, nem quanto cobrar e o que mais lhe assustava: esse era mais estranho que a maioria.



A mulher começou a ficar preocupada. O porteiro do seu condomínio de luxo tinha visto seu marido descer com uma mochila e roupa de ginástica, logo cedo. Ela ligou para o trabalho e nada, para a família e nada, para os amigos e nada. Não sabia onde ele poderia estar. Logo hoje ele foi resolver de aprontar uma dessas. Eles tinham um almoço marcado com a Marizete e o Edu. Onde andaria esse homem???




Wanda aceitou a proposta por 30 mil, recebendo mil por dia. Mil por dia era muito mais do que ela conseguia tirar, mesmo nas melhores épocas. Ela perguntou se ele traria algum tipo de mudança. Ele disse que a única mudança que era importante para ele nessa hora era a que fazia em sua própria cabeça. Wanda não deu importância à resposta. Já conhecia esses tipos esquisitos. Pediu para ver a grana e ele mostrou na sacola. Ela nunca tinha visto tanto dinheiro junto e pensou que o sujeito devia ser mesmo louco de andar por aí com aquela grana toda e pior ainda, mostrar para um garota de programa, na sua própria casa, que estava tão endinheirado. Ou ele tinha muita autoconfiança ou era mesmo maluco. Ele era mais estranho que a maioria.



No segundo dia desaparecido, ela resolveu dar queixa na polícia. Soube que seu marido tinha encerrado sua conta bancária e que não parecia nem um pouco preocupado com isso. Na delegacia, desconfiaram de um sequestro relâmpago, apesar de dois dias ser um tempo longo demais para ele não aparecer. A imagem do seu marido apareceu em todos os jornais e na TV. O engraçado é que ela nem conseguia ficar muito triste. Mas reparou que a foto usada na divulgação o deixava mais magro.




Wanda viveu os melhores dias da sua vida, assim como ele. Ela foi a melhor das mulheres e a amante mais devota. Ele gastou todo seu dinheiro com ela, em noitadas, presentes e viagens em profusão. Estava falido e feliz. No fim do prazo, ele se levantou, olhou Wanda deitada ao seu lado, e imaginou que, mesmo não tendo nada além de uma transação comercial com ela, achava que tinha sido mais feliz e que de certa forma a amava mais que àquela mulher com que havia se casado, há pouco mais de 9 anos. Foi embora sem fazer barulho, levando apenas o que tinha trazido no dia em que chegou ao apartamento. As roupas que comprara, os equipamentos de áudio e vídeo e outros eletrodomésticos foram deixados para traz. Wanda não acordou com sua saída.

Como se não tivesse demorado mais que alguns minutos, ele voltou para casa. Sua mulher ficou surpresa, mas se refez do susto em pouco tempo. Não teve arroubos de felicidade, mas também não foi indiferente. Pediu explicações, no que foi prontamente atendida. Após ouvir a história daquele homem com quem havia vivido tanto tempo, viu que não o conhecia. E se ele tinha o direito de procurar a felicidade, ela também tinha. Deixou-o na cozinha. Alguns minutos depois, voltou, mala em punho. Deu um tabefe na cara do seu marido e saiu, sem dizer palavra.

Nesse momento, ele teve a impressão de ter compartilhado primeira vez algo de real com sua esposa.



Wanda acordou sozinha na sua cama. Percebendo o que havia ocorrido, chorou. Ele não havia sequer dito seu nome para ela.


13.9.02

O literato


Amava tanto as palavras que resolver ter um contato maior com elas. Já não bastava apenas a visão ao lê-las ou a audição, ao ouvi-las. Queria que as palavras fossem percebidas por todos os seus sentidos. Precisava tocá-las, então deu-lhes volume. Precisou cheirá-las, então aromatizou-as. Mas o que ele queria mesmo era sentir o paladar das palavras.

Não começaria de forma abrupta. Começou engolindo letras e pontos. Então ele comeu o S, só para começar. Achava a forma sinuosa da letra apetitosa. Engoliu a letra de uma só bocada, lambendo os cantos da boca. Achou delicioso. Para rebater, engoliu um ponto de exclamação. Como sobremesa, um ponto e vírgula.

Depois de adaptado à dieta de letras, partiu para as palavras. Sempre desejou sentir o gosto da palavra "saudade", alardeada como uma das mais bonitas da língua portuguesa. Deliciosa. Ironicamente escolheu "delícia" como próximo prato do seu cardápio lexical. Também gostou.

Diferente das letras – as quais havia adorado todas – algumas palavras eram saborosas, outras não. O sabor da palavra "sutileza", por exemplo, era melhor que o da palavra "esdrúxula". Descobriu depois de algum tempo seguindo essa alimentação que certas palavras combinadas com outras podiam melhorar o gosto de ambas. Fazia receitas com as palavras. Os pratos eram as frases.

"Ora direi ouvir estrelas", "Já podeis da pátria, filhos" ou "Ser ou não ser, eis a questão" eram pratos mais pesados que "Alvorada, lá no morro, que beleza" ou "Olha que coisa mais linda". Catalogou as frases após degustá-las. Ditados eram ótimos petiscos. A poesia era excelente como uma salada ou uma entrada leve e a prosa era sempre o prato principal.

Sabendo como as palavras e frases combinavam em sua mesa, o caminho lógico era partir para os grandes jantares: os livros. Foi responsável por lautos banquetes, sempre bem acompanhado por Catulo, Camões, Cervantes, Dumas, Shakespeare, Machado. Era feliz, e melhor, bem alimentado.

Até que um dia ele comeu demais. Havia exagerado, tendo como refeição alguns filósofos alemães e uma ou outra página de Kafka. Passou mal. Correu ao banheiro e não teve outra saída: regurgitou todo seu lanche.

A ironia da coisa é que seu vômito ganhou o prêmio Jabuti do ano.

12.9.02

Ata-me


Ata-me
Assim
Ao seu mistério

Castra-me
Em mim
Minha luxúria

Ama-me
Enfim
Se eu te amo

Mata-me
Por fim
Porque eu mereço

11.9.02

O escultor de montanhas




Meu trabalho leva séculos, milênios. A paciência é minha maior virtude. Moldo meu material com calma, levando em consideração cada uma de suas arestas, cada uma de suas fendas. Esculpo cada uma das minhas obras com afinco e dedicação, gerando peças monumentais.

Eu esculpo montanhas.

Tenho como ferramentas os elementos. Cordilheiras inteiras, com sua beleza grandiosa, criadas, vagarosamente, pela erosão. Mares, rios e chuvas cavando seu corpo; o vento espalhando seus fragmentos, pouco a pouco; o calor do fogo da lava, moldando seu interior; e a terra, a grandiosa terra, a mãe de todos os elementos, alma do meu labor, compondo tudo.

Dedico minha vida ao meu trabalho.

Sou alheio aos homens e seus corpos frágeis e mortais e suas obras insignificantes. A eternidade está ao meu lado e crio minhas obras sob o signo da perenidade. Gerações e gerações vêm e vão e sequer parte do que faço pode ser percebido pela humanidade. E eles, demonstrando sua eterna tolice e arrogância, ainda ousam me desafiar, quando desafiam o que crio. Quantos já feneceram, ao tentar galgar seus cumes? Quantas cidades, com suas frágeis montanhas de concreto, foram engolidas com um simples expelir da seiva quente dos meus picos? E quantos não foram soterrados por seu mar sólido, que descendo de seu topo destrói tudo que não tem sua força?

Minhas obras são maiores que os homens.

Eu sou o escultor de montanhas. Não procuro reconhecimento. Nada além do resultado do meu esforço pode me recompensar. Meu trabalho remonta ao início dos tempos e no fim deles ainda estarei na minha lida. O que mais poderia me envaidecer?

Eu e minhas esculturas estamos nas bordas do tempo.

Oração


Acordei e fiz uma oração. Minha oração não se destinou a um deus velho e de barbas brancas que nos criou à sua imagem e semelhança, tampouco para o seu filho que se sacrificou por nós (?) sem que eu houvesse lhe pedido algo, e por isso mesmo não me julgo devedor de nada. Menos ainda para o Espírito Santo ou para o mistério da Santíssima Trindade, pois de mistérios a minha vida já está cheia. Não orei também pelas milhares de vítimas do terrorismo – seja ele oficial e aceito de bom grado pela comunidade cristã ocidental ou executado por xiitas – nem pelas crianças que morrem de fome nos quatro cantos desse planeta moribundo.

Orei, admito, para mim. Da forma mais egoísta que alguém já pode ter orado. Eu me permiti fazer isso. Não suporto mais qualquer tipo de dogma estabelecido. Misturo o sagrado e o profano, pecador confesso e convicto que sou. Rezei por meu próprio benefício, narcisisticamente. Orei para algo que não compreendo, mas sinto que existe. Não lhe vejo a face ou seus milagres, não o amo acima de todas as coisas e ainda assim, filho pródigo e ingrato, espero sua benção.

E não me arrependo nem em pensamento por isso.

10.9.02

Línguas


Então eu dou um beijo nessa boca e minha íngua invade sua boca e a sua língua invade a minha boca e assim vai, língua na língua, numa fala sem palavra, porque não precisamos de palavras nessa hora. E a volúpia das bocas e línguas nem precisa tomar conta dos nossos corpos atados, o beijo em si se basta e toda a volúpia cabe nesse espaço onde as duas línguas se cruzam. Sentimos o gosto um do outro e esse gosto é o mais saboroso que se pode provar.Dente, céu da boca, lábios, tudo fundido de uma forma única, tato e paladar, sentidos agora sem plural, uma sensação só, que desejamos nunca se separem, que esse momento não se acabe nunca.

Mas acaba.

E sua língua rollingstoneana começa a soltar palavras, como se essa fosse sua premissa básica, com se ela não tivesse sido criada para qualquer outra função, como se não soubesse fazer outra coisa. A torrente de sons e fonemas afoga nossos ouvidos, convidando a audição antes intrusa em nossa confraria de dois sentidos, sublimando com a urgência com que as ondas sonoras se propagam da sua boca tudo o que havia de volúpia.

Maldita é essa língua agora. Maldita é a língua que fala.

Umbigo

Os ventos da mudança
Vêm de todos os lados
E eu, sentado,
Espero
A impaciência e o enfado
Hão de me conseguir
O que quero
São meus aliados
Nessa de ir e vir

Eu espero
As guerras e as torres que caem,
Confesso,
Não me abalam
Só aguardo o que me vem
Preciso desse egoísmo
Para ir além

Hai Kai


Fim de inverno
O pássaro que canta
Antecipa a estação

9.9.02

A chegada


…e num dia de chuva, quando ele nem mais esperava, ela chegou. Sua chegada era o que ele mais desejava. Há muito precisava dela, mais que tudo. Foram anos de uma angustiante espera. Acordava com ela na mente, passava o dia ansiando por ela, perdia o sono a desejando. Depois de alguns anos, desistira de esperá-la. Pelo menos acreditava nessa desistência. Em seu íntimo, ainda tinha fé na sua chegada.

E ela chegou. E depois de alguns minutos de regozijo, sentiu algo estranho. Não estava feliz, mesmo tendo em suas mãos algo com o que sonhara durante tanto tempo.

Percebeu que, depois de tanto tempo, era a espera que o mantinha vivo. E o anticlímax da sua chegada foi o bastante para perceber que nada mais fazia sentido.

6.9.02

O Sorriso


A garotinha me olhou de dentro do ônibus escolar do Centro Educacional da Lagoa. Eu estava de óculus escuros, e talvez isso tenha lhe tivesse despertado a curiosidade. Ela me deu um sorriso, mesmo sem saber que eu a estava observando.

Se ela soubesse da raiva imbecil que tenho dela. Uma raiva sem propósito e burra, proveniente da inveja que senti da sua melhor sorte financeira, da sua infância recheada de brinquedos e guloseimas aos quais nunca tive direito, das suas bochechas rosadas, da sua educação excelente desde o maternal, do leque de opções que ela terá no futuro e que eu não tive e nem tenho mais tempo de ter.

A garotinha sorriu para mim. Eu não retribui o sorriso.

5.9.02

Retas





Por mais distantes que estejam duas retas paralelas uma da outra, o infinito é sempre seu ponto de encontro.




4.9.02

Uma outra manhã


Aspirei todas as lágrimas num dia de sol. Ainda gotejava o orvalho da fria noite anterior e nem os pássaros ousavam sair dos seus ninhos. Revi cada ato dessa vida que me esbofeteava a cara a cada manhã e finalmente compreendi porque cada queda é uma nova conquista. Saí nu pelo quintal da casa, fazendo questão de deixar as roupas junto com as culpas vãs que me vestiam na cama.
Quando voltei à casa, já era outra manhã, um outro dia.

3.9.02

Antraz


Existe essa amiga que ama as palavras e as utiliza muito, muito bem. Ela só escreve em prosa. Diz que não gosta de poesia. Coitada. Se soubesse que cada uma de suas frases, até aquelas que são mais displicentemente jogadas no texto, é repleta de imagens quase táteis. Se soubesse da poesia que sua prosa é carregada, como parágrafo, cada linha, cada palavra é um labirinto repletos de variáveis. Se soubesse como ela inverte o senso comum a cada novo escrito e se soubesse que essa é a função da poesia, revelar novos sentidos para as coisas que nos acostumamos a só ver a olho nu. Se ela percebesse que ela abre novos caminhos, novas visões, novos sentidos a cada nova leitura que nos proporciona…Se ela soubesse…

Se ela soubesse não diria que não gosta de poesia…ela nunca falaria esse tipo de besteira.

Acato


A cada
canto
do quarto

A cada
manto
da cama

A cada
canto
acalanto

A cada
"acato"
que faço

Um pranto

2.9.02

Audácia


Eu, logo eu, falho e desnecessário como sou, cometi a audácia de me imaginar capaz de criar algo. EU, que nem consigo conviver com o que criam para mim, me meti tentar inventar mundos e histórias, atos e pessoas. Nem meu mundo, minha história e meus atos eu controlo!!! Tsk, tsk, tsk…

Que ousadia…

Fuga


Pensei que todo o problema era não conseguir correr até minha pernas virarem geleia. Não ter o fôlego necessário para seguir desabaladamente até o fim do dia, para ficar longe dos olhos de quem eu detesto e quero o máximo de distância.

Mal sabia que para conseguir fugir eu devia era desaprender a andar. Desaprender a me mover. Até como pensar eu deveria esquecer como se faz. Devia virar um objeto, inanimado, no canto mais escuro da minha casa e deixar o tempo passar, com sua poeira inevitável, suas teias de aranha e suas lembranças inúteis.

De outra forma, não há fuga possível de dentro do seu próprio esquife.

30.8.02

MERDA!


Me aconselharam ir à merda. Claro que eu não sabia o caminho. Até queria ir mesmo, deve ser um lugar diferente, e apesar do cheiro, provavelmente é mais interessante que essa pasmaceira que insiste em reinar por aqui. Fui até a rodoviária, comprei a passagem e esperei o ônibus que iria à merda chegar.

Esperei três horas no ponto de ônibus, e nada. Cansei. Nem à merda eu consigo ir. Vou mandar tudo pra puta que pariu em breve…

Será que ainda tem passagem pra lá?

O bingo


Chovia gritantemente no centro da metrópole e ele, desgraçadamente, não tinha levado um guarda chuva. Isso não o surpreendia, era o cara mais azarado que conhecia. Saiu de casa com um sol do agreste no couro; ao sair da estação do metrô, Deus havia produzido "O Dilúvio – parte II" sem avisá-lo. Rotina para ele.

Entrou numa transversal à principal avenida da cidade. Estava completamente ensopado, como se tivesse surtado e resolvido tomar um banho com as roupas no corpo. Entrou no primeiro prédio que encontrou, nem viu o letreiro. Importante era se abrigar da chuva torrencial.

Entrou em um saguão amplo e muito iluminado, com neons para todos os lados e luzes espocando na sua cara. Como ainda era tarde e não existem boates naquele região, viu que entrara num bingo. Eh, logo num lugar onde não se vive sem ter sorte. Muito azar. Ficou na dúvida entre enfrentar a fúria dos elementos do lado de fora ou arriscar a ter um enjoo vendo as pessoas velhuscas que arriscavam suas aposentadorias no local. Preferiu a pneumonia inevitável e já ia saindo quando ouviu um anúncio saindo de auto falantes muito bem camuflados:

"Atenção! Vai começar o sorteio do grande prêmio! Procurem seus lugares! Segurança, fechem as portas!"

Não entendeu o porque de fecharem as portas, mas antes que isso ocorresse, resolveu sair. Ao chegar perto da porta, o leão de chácara – um sujeito que deixou o termo "leão" ridículo. Melhor seria "rinoceronte de chácara" – barrou sua passagem. Argumentou que não ia participar do sorteio, que odiava bingos, que tinha um compromisso inadiável. Foi inútil. O segurança o conduziu, não muito delicadamente, até uma mesa. Na mesa havia uma velhinha, dessas com o cabelo roxo. Sua pele tinha a textura igual a pele da Cleópatra. Isso, claro, se ela ainda fosse viva. Usava aquelas "roupas de velha" que de tão antigas já pareciam estar na moda de novo. Ela não faria feio numa rave, com aquela indumentária e aqueles cabelos. E claro, os enormes óculos escuros que escondiam metade do seu rosto vetusto e borrocado de maquiagem. Ela não demorou a tentar ser simpática.

– Nossa, meu filho…você é muito novo para estar aqui! Acho que nunca vi alguém tão novo nesse bingo.
– Pois é, minha senhora…eu nem queria estar aqui, mas não me deixaram sair…
– Você está aqui por engano? – falou a velha com uma cara parva de espanto.
– É...Por que?
– Meu Deus!!! Mas isso…

A velhota foi interrompida pelo apresentador, que anunciou o início do bingo. Os números começaram a girar e a ajudante do apresentador tirou a bolinha. Ele tentou perguntar para senhora o que afinal estava acontecendo.

– Shhhhh! Quero ouvir o número…Silêncio!!!

Achava que isso já era demais. Ameaçou levantar, mas ao seu primeiro movimento, sentiu o peso da "pata" do segurança em seu ombro. Não tendo outro jeito, pensou em se divertir. Pegou a cartela à sua frente e prestaria atenção no sorteio.

– Ateeeeeeeenção!!!! E o primeiro número é o 32!!! Será que dona Henriqueta consegue hoje o rim que ela tanto precisa????

Não havia entendido. Um rim? Como assim, um rim? Não aguentando a curiosidade, interpelou a velhota de novo. Sussurrou-lhe no ouvido.

– Mas minha senhora?!?! Que diabo de bingo é esse que dá como prêmio um rim???
– Você não sabe mesmo o que está fazendo aqui, não?
– E tem algo pra eu saber? Isso é um bingo!!!

Então a velhinha explicou-lhe a natureza daquele bingo. Ali, o grande prêmio não eram carros, eletrodomésticos ou dinheiro. Eram órgãos. Órgãos humanos. A mecânica era a seguinte: a pessoa que completasse primeiro sua cartela ganhava, da pessoa que tivesse menos números em sua cartela, o órgão que ela precisasse. O órgão era extraído ali mesmo no bingo, numa sala nos fundos do prédio.

– A senhora bebeu? – ele falou, meio exaltado.
– Shhhhh….as pessoas querem ouvir os números!
– A senhora é louca! – disse, dessa vez em voz baixa.
– Claro, claro…

Ao concordar com ele, a velhota tirou seus enormes óculos. No lugar onde deveria haver um dos olhos, existia um buraco horrendo.

– Eu já perdi uma vez, meu filho…

Aquilo já era loucura demais para ele. Ele se levantou e partiu em direção á porta, decidido. Nem viu de onde surgiu o soco no estômago. Caiu no chão, gemendo e olhando o tornozelo do rinoceronte de chácara, ouviu seu delicado pedido para que voltasse ao seu lugar. Não via saída. Tinha que participar mesmo da brincadeira. Só temia, como sempre, seu azar. E além do mais, depois daquele soco, ele bem precisava de um baço novo.

43, 56, 21, 19, 33 – ponto! – 15, 31, 11…os números eram cantados, um após o outro, e ele tinha apenas uma pedra na cartela. A situação estava ficando desesperadora. A velhota ao seu lado, por exemplo, precisava de apenas mais quatro números para arrancar-lhe os olhos da cara. E ele ouvia cada novo número, cada nova comemoração nas outras mesas e nada de saírem seus números com pavor.

20 – opa! – outro número para sua cartela. Ele já estava ouvindo os velhos a sua volta falando que só faltavam 2 ou 3 pedras e que finalmente iam conseguir um rim, um fígado, etc. Se essa situação não se resolvesse em pouco tempo, seu coração estaria inutilizado, o que poderia ser uma pena para o vencedor. 03 – eba!!! – mais um.

O suor descia pela sua nuca. Ele tremia. Olhava para trás, pensando num plano de fuga que se revelava inviável com aquele brutamontes o vigiando de perto. Mais duas pedras e ele, com certeza, sairia mais leve do bingo do que entrou. O apresentador se pronunciou.

– Três pessoas estão por um número para ganhar o prêmio. Duas pessoas têm apenas 3 números e serão os "gentis" doadores…Chegou a hora de chamar nossos queridos ajudantes! Que entrem os "médicos"…

Abriu-se uma porta lateral e no meio de uma cortina de fumaça e efeitos visuais entraram dois sujeitos vestidos como médicos prontos para uma cirurgia. Só que sua roupa era preta, como as de um carrasco. Um trazia um bisturi na mão e outro um tubo de oxigênio.

– Pelo menos eles anestesiam o doador – falou a velhota – Me diz uma coisa: você usa óculos?

Ele se controlou para não esganar a velha. E quase voou no pescoço enrugado da senhora quando ela disse que estava torcendo contra ele. O outro doador era bem mais velho. Ele só desejava que todo seu azar ficasse acumulado nos olhos. Aí a velhinha ia ver o que é bom para tosse.

O globo girou com os números, a assistente de palco apertou a alavanca, pegou a bolinha e passou para o apresentador. O apresentador fez mistério, rufaram tambores pelo sistema de som, metade dos anciãos presentes estavam prestes a ter um ataque cardíaco e então é cantado o número.

– 07!!!!

O grito de bingo veio junto com o grito de alívio dele. Pela primeira vez na vida dera sorte em alguma coisa! Na sua alegria, nem reparou o desespero do sujeito que foi recolhido pelos "médicos" de preto, nem a decepção na cara da velhota ao seu lado, que chorava por não ter ganho o prêmio, borrando apenas um lado do rosto.

Se levantou, cantando. Logo após o anúncio do vencedor, abriram as portas do bingo. Ele passou pelo segurança tirando sarro, mostrando-lhe a língua. A chuva tinha passado, tudo estava perfeito. Ele chegou a imaginar uma nova vida, longe da sua contínua má sorte, uma vida onde as coisas começassem a dar certo para ele. Estava com o espírito leve, flutuando pela rua, praticamente.

Estava tão feliz que se distraiu e atravessou a principal avenida da cidade com o sinal aberto ao tráfego. Foi colhido por um ônibus. Ficou entre a vida e a morte. Depois de 2 semanas na UTI, veio a falecer. Ele precisava de um transplante. E não arranjaram nenhum doador para ele.