24.10.02

Engrenagem


Tentei fugir dessa máquina devoradora de vidas chamada tempo negando por completo sua existência. Não digo esse tempo-relógio, que de uma forma ou de outra, seguimos como escravos por pura falta de opção. Falo de algo mais complexo, daquele tempo-física, de que tanto falou Einstein, ou o tempo-filosofia, que tanto preocupou os antigos gregos.

Suas engrenagens invisíveis não são menos mortais porque etéreas. No seu status de "abstração", o tempo é, mesmo imperceptível, voraz e implacável. Nada resiste à sua fome. Cidades, pessoas e até monumentos erigidos com sua ajuda, como uma montanha, por exemplo, não representam nada diante da sua perenidade.

Passei a ignorar o tempo e seus efeitos. Via os dias, os meses e os anos passarem por mim, mas os imaginava - e eu os tratava como - meros subalternos do tempo, eram compartimentações do tempo criadas pelo homem, esse ser temporal e falho. Não lhes dava a mínima importância.

Por incrível que pareça, minha artimanha fez efeito. Ignorar o tempo me rejuvenesceu. Via todos à minha volta envelhecerem, seguindo o curso normal da putrefação cronológica de suas carnes, o que não ocorria comigo. Perguntavam-me sempre o que fazia para manter a aparência jovial por tantos anos. Eu respondia que ignorava o tempo. Os pobres ignorantes sempre riram dessa resposta.

Os primeiros contratempos foram, como vocês podem imaginar, o falecimento de várias pessoas que me eram muito próximas. Meus pais foram antes, como naturalmente haveria de decidir o feitor tempo. Mas quando minha esposa - contava com alguns anos a menos que eu - morreu encarquilhada e seca enquanto eu mantinha minha aparência de meia idade, comecei a notar a vingança sutil do tempo. Depois foi meu filho, que até faleceu cedo (tinha cerca de 50 anos), mas mesmo assim poderia passar facilmente como meu irmão mais velho.

O que o tempo não esperava ao me lançar essa maldição era a minha impassibilidade. Ao me tornar atemporal, eu simplesmente não conseguia mais me ater aos velhos laços sentimentais e emocionais que a humanidade rotineiramente se enreda. Senti a perda dos meus entes queridos? Claro, mas não era nada que me chocasse tanto.

E o tempo foi passando e eu, imbatível, segui ignorando sua existência. Vi guerras e pazes começarem e recomeçarem, demonstrando que mesmo sendo tirano, o tempo não é o melhor dos mestres para os homens. Vi os prodígios da ciência e da tecnologia mostrarem que o tempo, o mais paciente das divindades, também auxilia seus súditos. Tudo passava por mim, e enquanto mais eu aprendia, mais ansiava por conhecimento.

Mas eis que, séculos e séculos depois, o tempo finalmente me jogou em uma armadilha de onde não existia uma saída. Ele engendrou, pacientemente, essa forma definitiva de me dobrar, me obrigando a uma humilhante desistência.

Com todo meu conhecimento acumulado, eu era a pessoa mais sábia do planeta. Não que eu alardeasse esse fato, não queria a fama, que só me traria aborrecimentos. Meu conhecimento era apenas para mim, e eu desfrutava egoisticamente dele. Não escrevi livros nem treinei discípulos nas técnicas de superação do tempo. Eu era um ser uno e essa unidade me bastava. Mas sempre fui ávido por conhecimento e estava cada vez mais dependente de aprender. Essa foi a minha ruína. Depois de séculos e séculos de aprendizado e estudos, simplesmente não havia mais nada que eu não soubesse. Eu esgotara as dúvidas, o que decreta o fim das respostas.

Estava desesperado, mas sabia exatamente o que me restava fazer. Não havia mais sentido continuar vivendo. Eu decidi me matar. Quando eu ia executar o desmedido ato, o tempo, corporificado como nunca ninguém havia visto antes, me apareceu.

- Você viu onde seu orgulho lhe trouxe. Agora você sabe tudo, inclusive que de algumas engrenagens, não existe escapatória.
- Você tem razão. Eu mesmo me encurralei. Não me resta nada a fazer além de me matar.
- Não. Você não vai se matar. Isso seria uma dádiva para alguém que ousou desafiar o tempo. Você sabe o que eu quero, não?
- ....Sei. Sei exatamente o que você quer. Eu devia imaginar que você, cruel como sempre foi, iria me obrigar a esse tipo de humilhação.
- Acha mesmo que eu sou cruel? Será mesmo que ainda resta uma lição para você e justo eu, o tempo, aquele com quem você declarou guerra, terei que lhe ensinar? Eu não sou cruel, eu sou justo. Tudo tem seu ciclo. Você errou exatamente aí. Não compreendeu que tudo é parte de um único mecanismo. E que seu funcionamento depende que cada um dos seus elementos - ou engrenagens, se assim preferir chamar - esteja no seu devido lugar. Você cometeu o crime de parar essa máquina. Você nem tem idéia do mal que você causou. Na sua soberba, você quase abalou as estruturas do real. Não se pode fugir do tempo. Se você não fosse tão prepotente perceberia que, no fim, tudo que existe é eterno. Claro que não têm a eternidade efêmera que você encontrou.
- Eu percebo. E desisto. Sei o que você fará...pode me punir.

Depois disso, o tempo se esvaiu no ar. Assim que ele desapareceu, comecei a sentir minha pele esgarçar, me senti cansado e com a visão turva. Essa era a vingança definitiva do tempo. Ele iria me envelhecer. Ele cobrava agora os anos que lhe roubei. E vou sentir, literalmente, na pele, seu passar. Em sua marcha normal, o tempo é, na medida do possível indolor. Ao passar rapidamente, ele dói. Uma dor que apenas um criminoso como eu merece sentir. Eu vou morrer, mas só depois de sentir o peso dos milhares de anos que vivi desabarem sobre minhas costas.

Incurável


Então eu sou o errado
Eu sou o pária
O sem valor

Se é assim, eu assumo
Eu sou mesmo
Sou o plano que deu errado
A piada não entendida
A dívida não paga

Eu não quero saber da cura
Quando sei que essa doença
Não tem remédio

23.10.02

Estrago



Largou o lar sem a menor cerimônia, fugindo com um motoqueiro barbudo e cabeludo, cheio de piercings e tatuagens. Mais que a fuga, o chifre e o abandono de dois filhos pequenos para criar, o que irritou mesmo a parte abandonada foi o mau gosto da parte abandonante. Ele fora trocado por um estereótipo. Pior, um estereótipo de mau gosto, kitsch, brega. Isso, ele nunca perdoaria.

Sempre fora um cara comedido, educado, centrado. Ela era mais doida mesmo, mas não imaginaria nunca que seria a esse ponto. Mas ele devia ter desconfiado. Nas suas últimas discussões, ela sempre procurava leva-lo à loucura, era visível que ela queria que ele perdesse completamente o bom senso e a esbofeteasse. Ele chegou a ameaça-la na última briga.

- Infelizmente, você não é homem pra isso...quem dera fosse!


Ela saiu, trancando a porta do quarto. Ele saiu para arejar as ideias. Esteve mesmo a ponto de cometer o bárbaro ato de espancar uma mulher, a mãe de seus filhos. O que ela queria afinal de contas? Um marido, bom pai de família e responsável, ou um troglodita qualquer, que a esmurrasse pelo menor motivo?

Quando ele voltou, encontrou o armário do quarto meio vazio. Ela tinha ido embora, e levara suas roupas. Deixou um bilhete, explicando que não aguentava mais a monotonia dele, que ele era um chato e que fugira com contínuo do escritório dela, o motoqueiro cabeludo. No final da carta, ela ainda disse que esperava que agora, finalmente, ele tomasse uma atitude de homem.

Não tomou.

O tempo passou, mas não o ódio que ele sentia da mulher foragida. Um dia, sem mais nem menos, completamente sem aviso, ela aparece à porta de casa. Estava bonita, poderia dizer que a temporada com o brutamontes a fizera rejuvenescer.

- Você veio para ficar? - ele perguntou
- Vim ver as crianças. Do jeito que você é palerma, elas poderiam estar morrendo de fome...
- Se você realmente se preocupasse com isso, teria aparecido antes. 3 meses são mais que suficientes para uma criança morrer de fome.
- Sei disso...mas pelo menos comida você conseguiria arrumar, tenho certeza...
- Não preciso das suas ofensas. Responda: você veio pra ficar ou não?
- Não. Vim só ver o estrago que causei à sua vida.

Ele nem se deu ao trabalho de responder. Entrou no quarto e quando voltou, já chegou disparando o revólver que vinha trazendo na mão. Acertou três tiros no peito da mulher.

No chão, ela morria. E apesar da dor que devia estar sentindo, sorria.


4.10.02

Persistindo

Não,
Ainda não acabou.

Ainda não foi dito tudo
Ainda não matei a fome
Ainda não estou curado

Não,
Ainda falta um tempo

Falta crescer o bastante
Falta a vergonha na cara
Falta o pingo de senso

Não, ainda não
Quando acabar, eu aviso.

24.9.02

Vida: modo de usar


Eterno insatisfeito, resolvo todos meus problemas na base do chute: guio minha vida assim, descuidadamente, sempre triscando os postes e transeuntes. Não digo que é uma vida perigosa, mas devo respeitar alguns limites, claro. Não posso, por exemplo, deixar de gritar impropérios meia hora por dia pelo menos, ou corro o risco de deixar que as pessoas de ouvidos sensíveis se aproximem demais. Devo também lembrar sempre de mergulhar de cabeça em todo o tipo de incertezas que me apareçam na frente, sejam elas sobre minha futura vida ou minha certa morte. Fazendo isso, evito a acomodação e o mofo que acomete os recalcitrantes do cotidiano. Mau humor é a tônica, pois isso mostra minha aversão ao modo como tudo é conduzido bem debaixo do meu nariz ( e eu sou alérgico à feladaputagem que campeia nosso mundo). Viajar – mesmo sem sair do lugar – é vital para limpar o limo das articulações e das várias arestas corpóreas.

E, isso é muito importante, sempre sentir saudade do que não houve, desejando com ardor as novidades, mesmo que já velhuscas. Saber que o passado que não aconteceu também pode modificar, para melhor, nosso futuro.


17.9.02

Fim



Acabou. Não há de se procurar razões ou culpados. A coisa se deu assim: se esgotou por si mesma, sem chance de volta. É o fim.

Um fim anunciado, talvez. Mas quando não se faz nada para evitá-lo, ele vem. A inevitabilidade da coisa não chegou a transformar a urgência do que viria a acontecer em ação. Se se poderia evitar? Talvez. A questão é que o preço da impassibilidade é esse. Agora, tudo é findo.

Não há arrependimentos, contudo. Os ciclos vêm e vão, são coisas da vida. Não se chocar não é sinônimo de passividade. Querer demonstrar revolta ou perplexidade é, agora, um exercício inútil. É como se desejar fugir da morte. Não há saídas por aí.

E quem pode garantir que o fim de uma fase não será o começo de outra melhor? Quem pode afirmar que não se irão as amarras, não surgirão coisas novas, prontas para serem descobertas e exploradas? Quem garante que o fim não é o melhor que poderia acontecer?

Isso, é território que não nos pertence, ao qual não temos acesso. Vamos apenas vivendo, esperando por algo que nos revolucione a vida.

16.9.02

Amor de mentira


O sujeito acordou um dia, olhou para o lado, viu sua mulher e percebeu que ela lhe era uma completa estranha. Nada sabia sobre seus anseios mais profundos, o que ela realmente desejava para sua vida. Não fazia ideia de que sonhos podiam estar acalentando seu sono. Estava casado há 9 anos com a mulher.

Ficou olhando sua esposa. Até aquele dia sempre pensara que o motivo do seu casamento era o amor que nutria por ela. Mas o que era o amor? Isso, uma rotina de beijos de beijos de bom dia, o–que–quer–pro–café, almoços esporádicos no Centro da cidade, como–foi–seu–dia no fim da tarde, um jantar ou outro sozinhos ou com amigos e sexo mais ou menos interessante 3 vezes por semana, com certeza, não era sequer um invólucro de amor, nem mesmo seu mais pálido arremedo.

Saiu da cama sem fazer barulho. Juntou algumas roupas em uma mala, fazendo questão de esquecer ternos e gravatas. Pegou sua carteira e saiu.



A mulher, ao acordar, notou o sumiço das roupas e vendo a pasta 007 de couro do marido na mesa, notou que ele não tinha ido trabalhar. Achou estranho e ligou para o celular dele. Ele tocou a menos de 2 metros dela, de dentro do terno usado no dia anterior por ele.




Ele foi ao banco e zerou sua conta. Pegou cerca de 87 mil reais, colocou na sacola de ginástica que carregava e saiu. Foi a pé até a banca mais próxima e comprou um jornal. Foi direto nos classificados. Encontrou o que queria em pouco tempo:

Wanda
Loira tipo mignon, olhos azuis, 18 aninhos, muito liberal. Faz porque gosta. Atendimento em casas e motel. Tem privê. Tel: 9999–9999.


Ligou de um orelhão. Wanda parecia cansada, ainda não eram dez da manhã. Marcaram no apartamento dela.

Ele pegou o táxi e parou no prédio repleto de conjugados em Copacabana. Wanda apareceu, tinha acabado de tomar banho e mesmo não conseguindo esconder suas olheiras com a água e o sabão, era bonita. Ele tinha quase certeza que os 18 dela começaram a ser contados uns 5 anos depois do seu nascimento, no mínimo. Não que isso importasse.

Ele entrou sem falar nada. Ela já conhecia esses tipos esquisitos. Não ficou assustada, ele não parecia violento. Foi logo falando quanto seria o programa, mas ele o interrompeu.
– Quero saber quanto você cobraria para me amar…

Vendo a cara de estupor de Wanda, ele explicou sua proposta. Ele estava cansado da sua vida, tudo lhe era enfadonho. Estava cansado dessa vida real que lhe impuseram, da qual ele não teve forças para resistir. Queria emoções de verdade, nem que fossem de mentira. Queria paixões pagas, amores de mentira, mas que em sua falsidade, pelo menos parecessem com algo palpável. Perguntou quanto ela cobraria para deixá-lo morar com ela, por um mês. Pagaria o aluguel e os programas que ela faria à noite. As únicas condições eram a exclusividade – seria só dele, por um mês – e fingiria que o amava como nunca amou alguém antes. Ele queria devoção total, queria que Wanda o fizesse sentir não como o maior dos homens sobre a Terra, mas que ele fosse o único. Ela não sabia o que dizer, nem quanto cobrar e o que mais lhe assustava: esse era mais estranho que a maioria.



A mulher começou a ficar preocupada. O porteiro do seu condomínio de luxo tinha visto seu marido descer com uma mochila e roupa de ginástica, logo cedo. Ela ligou para o trabalho e nada, para a família e nada, para os amigos e nada. Não sabia onde ele poderia estar. Logo hoje ele foi resolver de aprontar uma dessas. Eles tinham um almoço marcado com a Marizete e o Edu. Onde andaria esse homem???




Wanda aceitou a proposta por 30 mil, recebendo mil por dia. Mil por dia era muito mais do que ela conseguia tirar, mesmo nas melhores épocas. Ela perguntou se ele traria algum tipo de mudança. Ele disse que a única mudança que era importante para ele nessa hora era a que fazia em sua própria cabeça. Wanda não deu importância à resposta. Já conhecia esses tipos esquisitos. Pediu para ver a grana e ele mostrou na sacola. Ela nunca tinha visto tanto dinheiro junto e pensou que o sujeito devia ser mesmo louco de andar por aí com aquela grana toda e pior ainda, mostrar para um garota de programa, na sua própria casa, que estava tão endinheirado. Ou ele tinha muita autoconfiança ou era mesmo maluco. Ele era mais estranho que a maioria.



No segundo dia desaparecido, ela resolveu dar queixa na polícia. Soube que seu marido tinha encerrado sua conta bancária e que não parecia nem um pouco preocupado com isso. Na delegacia, desconfiaram de um sequestro relâmpago, apesar de dois dias ser um tempo longo demais para ele não aparecer. A imagem do seu marido apareceu em todos os jornais e na TV. O engraçado é que ela nem conseguia ficar muito triste. Mas reparou que a foto usada na divulgação o deixava mais magro.




Wanda viveu os melhores dias da sua vida, assim como ele. Ela foi a melhor das mulheres e a amante mais devota. Ele gastou todo seu dinheiro com ela, em noitadas, presentes e viagens em profusão. Estava falido e feliz. No fim do prazo, ele se levantou, olhou Wanda deitada ao seu lado, e imaginou que, mesmo não tendo nada além de uma transação comercial com ela, achava que tinha sido mais feliz e que de certa forma a amava mais que àquela mulher com que havia se casado, há pouco mais de 9 anos. Foi embora sem fazer barulho, levando apenas o que tinha trazido no dia em que chegou ao apartamento. As roupas que comprara, os equipamentos de áudio e vídeo e outros eletrodomésticos foram deixados para traz. Wanda não acordou com sua saída.

Como se não tivesse demorado mais que alguns minutos, ele voltou para casa. Sua mulher ficou surpresa, mas se refez do susto em pouco tempo. Não teve arroubos de felicidade, mas também não foi indiferente. Pediu explicações, no que foi prontamente atendida. Após ouvir a história daquele homem com quem havia vivido tanto tempo, viu que não o conhecia. E se ele tinha o direito de procurar a felicidade, ela também tinha. Deixou-o na cozinha. Alguns minutos depois, voltou, mala em punho. Deu um tabefe na cara do seu marido e saiu, sem dizer palavra.

Nesse momento, ele teve a impressão de ter compartilhado primeira vez algo de real com sua esposa.



Wanda acordou sozinha na sua cama. Percebendo o que havia ocorrido, chorou. Ele não havia sequer dito seu nome para ela.


13.9.02

O literato


Amava tanto as palavras que resolver ter um contato maior com elas. Já não bastava apenas a visão ao lê-las ou a audição, ao ouvi-las. Queria que as palavras fossem percebidas por todos os seus sentidos. Precisava tocá-las, então deu-lhes volume. Precisou cheirá-las, então aromatizou-as. Mas o que ele queria mesmo era sentir o paladar das palavras.

Não começaria de forma abrupta. Começou engolindo letras e pontos. Então ele comeu o S, só para começar. Achava a forma sinuosa da letra apetitosa. Engoliu a letra de uma só bocada, lambendo os cantos da boca. Achou delicioso. Para rebater, engoliu um ponto de exclamação. Como sobremesa, um ponto e vírgula.

Depois de adaptado à dieta de letras, partiu para as palavras. Sempre desejou sentir o gosto da palavra "saudade", alardeada como uma das mais bonitas da língua portuguesa. Deliciosa. Ironicamente escolheu "delícia" como próximo prato do seu cardápio lexical. Também gostou.

Diferente das letras – as quais havia adorado todas – algumas palavras eram saborosas, outras não. O sabor da palavra "sutileza", por exemplo, era melhor que o da palavra "esdrúxula". Descobriu depois de algum tempo seguindo essa alimentação que certas palavras combinadas com outras podiam melhorar o gosto de ambas. Fazia receitas com as palavras. Os pratos eram as frases.

"Ora direi ouvir estrelas", "Já podeis da pátria, filhos" ou "Ser ou não ser, eis a questão" eram pratos mais pesados que "Alvorada, lá no morro, que beleza" ou "Olha que coisa mais linda". Catalogou as frases após degustá-las. Ditados eram ótimos petiscos. A poesia era excelente como uma salada ou uma entrada leve e a prosa era sempre o prato principal.

Sabendo como as palavras e frases combinavam em sua mesa, o caminho lógico era partir para os grandes jantares: os livros. Foi responsável por lautos banquetes, sempre bem acompanhado por Catulo, Camões, Cervantes, Dumas, Shakespeare, Machado. Era feliz, e melhor, bem alimentado.

Até que um dia ele comeu demais. Havia exagerado, tendo como refeição alguns filósofos alemães e uma ou outra página de Kafka. Passou mal. Correu ao banheiro e não teve outra saída: regurgitou todo seu lanche.

A ironia da coisa é que seu vômito ganhou o prêmio Jabuti do ano.

12.9.02

Ata-me


Ata-me
Assim
Ao seu mistério

Castra-me
Em mim
Minha luxúria

Ama-me
Enfim
Se eu te amo

Mata-me
Por fim
Porque eu mereço

11.9.02

O escultor de montanhas




Meu trabalho leva séculos, milênios. A paciência é minha maior virtude. Moldo meu material com calma, levando em consideração cada uma de suas arestas, cada uma de suas fendas. Esculpo cada uma das minhas obras com afinco e dedicação, gerando peças monumentais.

Eu esculpo montanhas.

Tenho como ferramentas os elementos. Cordilheiras inteiras, com sua beleza grandiosa, criadas, vagarosamente, pela erosão. Mares, rios e chuvas cavando seu corpo; o vento espalhando seus fragmentos, pouco a pouco; o calor do fogo da lava, moldando seu interior; e a terra, a grandiosa terra, a mãe de todos os elementos, alma do meu labor, compondo tudo.

Dedico minha vida ao meu trabalho.

Sou alheio aos homens e seus corpos frágeis e mortais e suas obras insignificantes. A eternidade está ao meu lado e crio minhas obras sob o signo da perenidade. Gerações e gerações vêm e vão e sequer parte do que faço pode ser percebido pela humanidade. E eles, demonstrando sua eterna tolice e arrogância, ainda ousam me desafiar, quando desafiam o que crio. Quantos já feneceram, ao tentar galgar seus cumes? Quantas cidades, com suas frágeis montanhas de concreto, foram engolidas com um simples expelir da seiva quente dos meus picos? E quantos não foram soterrados por seu mar sólido, que descendo de seu topo destrói tudo que não tem sua força?

Minhas obras são maiores que os homens.

Eu sou o escultor de montanhas. Não procuro reconhecimento. Nada além do resultado do meu esforço pode me recompensar. Meu trabalho remonta ao início dos tempos e no fim deles ainda estarei na minha lida. O que mais poderia me envaidecer?

Eu e minhas esculturas estamos nas bordas do tempo.

Oração


Acordei e fiz uma oração. Minha oração não se destinou a um deus velho e de barbas brancas que nos criou à sua imagem e semelhança, tampouco para o seu filho que se sacrificou por nós (?) sem que eu houvesse lhe pedido algo, e por isso mesmo não me julgo devedor de nada. Menos ainda para o Espírito Santo ou para o mistério da Santíssima Trindade, pois de mistérios a minha vida já está cheia. Não orei também pelas milhares de vítimas do terrorismo – seja ele oficial e aceito de bom grado pela comunidade cristã ocidental ou executado por xiitas – nem pelas crianças que morrem de fome nos quatro cantos desse planeta moribundo.

Orei, admito, para mim. Da forma mais egoísta que alguém já pode ter orado. Eu me permiti fazer isso. Não suporto mais qualquer tipo de dogma estabelecido. Misturo o sagrado e o profano, pecador confesso e convicto que sou. Rezei por meu próprio benefício, narcisisticamente. Orei para algo que não compreendo, mas sinto que existe. Não lhe vejo a face ou seus milagres, não o amo acima de todas as coisas e ainda assim, filho pródigo e ingrato, espero sua benção.

E não me arrependo nem em pensamento por isso.

10.9.02

Línguas


Então eu dou um beijo nessa boca e minha íngua invade sua boca e a sua língua invade a minha boca e assim vai, língua na língua, numa fala sem palavra, porque não precisamos de palavras nessa hora. E a volúpia das bocas e línguas nem precisa tomar conta dos nossos corpos atados, o beijo em si se basta e toda a volúpia cabe nesse espaço onde as duas línguas se cruzam. Sentimos o gosto um do outro e esse gosto é o mais saboroso que se pode provar.Dente, céu da boca, lábios, tudo fundido de uma forma única, tato e paladar, sentidos agora sem plural, uma sensação só, que desejamos nunca se separem, que esse momento não se acabe nunca.

Mas acaba.

E sua língua rollingstoneana começa a soltar palavras, como se essa fosse sua premissa básica, com se ela não tivesse sido criada para qualquer outra função, como se não soubesse fazer outra coisa. A torrente de sons e fonemas afoga nossos ouvidos, convidando a audição antes intrusa em nossa confraria de dois sentidos, sublimando com a urgência com que as ondas sonoras se propagam da sua boca tudo o que havia de volúpia.

Maldita é essa língua agora. Maldita é a língua que fala.

Umbigo

Os ventos da mudança
Vêm de todos os lados
E eu, sentado,
Espero
A impaciência e o enfado
Hão de me conseguir
O que quero
São meus aliados
Nessa de ir e vir

Eu espero
As guerras e as torres que caem,
Confesso,
Não me abalam
Só aguardo o que me vem
Preciso desse egoísmo
Para ir além

Hai Kai


Fim de inverno
O pássaro que canta
Antecipa a estação

9.9.02

A chegada


…e num dia de chuva, quando ele nem mais esperava, ela chegou. Sua chegada era o que ele mais desejava. Há muito precisava dela, mais que tudo. Foram anos de uma angustiante espera. Acordava com ela na mente, passava o dia ansiando por ela, perdia o sono a desejando. Depois de alguns anos, desistira de esperá-la. Pelo menos acreditava nessa desistência. Em seu íntimo, ainda tinha fé na sua chegada.

E ela chegou. E depois de alguns minutos de regozijo, sentiu algo estranho. Não estava feliz, mesmo tendo em suas mãos algo com o que sonhara durante tanto tempo.

Percebeu que, depois de tanto tempo, era a espera que o mantinha vivo. E o anticlímax da sua chegada foi o bastante para perceber que nada mais fazia sentido.

6.9.02

O Sorriso


A garotinha me olhou de dentro do ônibus escolar do Centro Educacional da Lagoa. Eu estava de óculus escuros, e talvez isso tenha lhe tivesse despertado a curiosidade. Ela me deu um sorriso, mesmo sem saber que eu a estava observando.

Se ela soubesse da raiva imbecil que tenho dela. Uma raiva sem propósito e burra, proveniente da inveja que senti da sua melhor sorte financeira, da sua infância recheada de brinquedos e guloseimas aos quais nunca tive direito, das suas bochechas rosadas, da sua educação excelente desde o maternal, do leque de opções que ela terá no futuro e que eu não tive e nem tenho mais tempo de ter.

A garotinha sorriu para mim. Eu não retribui o sorriso.

5.9.02

Retas





Por mais distantes que estejam duas retas paralelas uma da outra, o infinito é sempre seu ponto de encontro.




4.9.02

Uma outra manhã


Aspirei todas as lágrimas num dia de sol. Ainda gotejava o orvalho da fria noite anterior e nem os pássaros ousavam sair dos seus ninhos. Revi cada ato dessa vida que me esbofeteava a cara a cada manhã e finalmente compreendi porque cada queda é uma nova conquista. Saí nu pelo quintal da casa, fazendo questão de deixar as roupas junto com as culpas vãs que me vestiam na cama.
Quando voltei à casa, já era outra manhã, um outro dia.

3.9.02

Antraz


Existe essa amiga que ama as palavras e as utiliza muito, muito bem. Ela só escreve em prosa. Diz que não gosta de poesia. Coitada. Se soubesse que cada uma de suas frases, até aquelas que são mais displicentemente jogadas no texto, é repleta de imagens quase táteis. Se soubesse da poesia que sua prosa é carregada, como parágrafo, cada linha, cada palavra é um labirinto repletos de variáveis. Se soubesse como ela inverte o senso comum a cada novo escrito e se soubesse que essa é a função da poesia, revelar novos sentidos para as coisas que nos acostumamos a só ver a olho nu. Se ela percebesse que ela abre novos caminhos, novas visões, novos sentidos a cada nova leitura que nos proporciona…Se ela soubesse…

Se ela soubesse não diria que não gosta de poesia…ela nunca falaria esse tipo de besteira.

Acato


A cada
canto
do quarto

A cada
manto
da cama

A cada
canto
acalanto

A cada
"acato"
que faço

Um pranto