29.8.02

Solene


Não é porque te entrego, solene
As rédeas do que faço
Nem por querer colorir meus dias
Com o significado oculto do que dizes
Que lhe devoto admiração
Tão longe é o contato
Que nem existe
Mas celebro, dia a dia
O que temos
Não é mensurável
Nem tátil
Mas sua força tênue
É o que me faz singrar as palavras
Como um mar revolto
Não me obrigo a vasculhar sentidos:
Corto meu cabelo com fogo
Rasgo minhas veias com o vento
E o sangue que agora flui intenso
É minha humilde oferenda

28.8.02

A Salada


– Quero comer jabuticaba!

Quando casei com a Paula, não imaginava que ela era o tipo de mulher que teria desejos na época da gravidez. Ela sempre foi uma mulher séria, não acreditava em crendices e nem se deixava influenciar pelas besteiras que suas amigas esotéricas falavam. Não que ter desejos esquisitos durante a gestação fosse coisa esotérica. Tá mais pra crendice popular mesmo, coisa dos nossos pais e avós.

Começou de leve, eu nem percebi que eram "desejos" na acepção gestante da coisa. Era um cachinho de uvas durante a novela, uma pizza portuguesa antes do jantar, nada de muito anormal. Mas quando ela começou a pedir coisas que não era habituada a comer ou que nunca sequer tinha visto, eu logo vi o que era. Foi por volta do 4 mês que eu comecei a sacaneá-la:

– Tsk, tsk, tsk…Logo você, minha filha, com desejo?
– Não é desejo! Qual o problema de querer umas carambolas?
– Não haveria nenhum problema se não fossem 3 da manhã!

Como vocês podem ver, os horários começaram a parecer absurdos também. Não me importava, nunca precisei acordar cedo mesmo e eu achava até engraçado suas manias. A cada dia, era uma coisa diferente. E eu sempre me esforçava pra conseguir o que ela queria. Depois do 5 mês, conversando com a minha mãe, ela soube da lenda dos "desejos não realizados". A praga era o nosso querido filho nascer com cara de nespera ou de bife de fígado, caso ela não conseguisse comer as iguarias desejadas.

O tempo foi passando, e pra meu tormento, os pedidos começaram a se sofisticar. E não interessava a hora. Podia ser às 11 da manhã ou as 3 da madrugada, eu tinha que largar o que estava fazendo e me virar para conseguir o que Paula queria. No sétimo mês ela entrou numa fase "gourmet": um dia era um Parfait de salmão, outro um ravioloni de estragão ao molho nantua com cavaquinha e pistache, outro um bobó de camarão carregado no dendê…Além de variados, seus desejos estavam começando a ficar caros demais. Mas eu não podia ficar regateando num momento como esse. Não seria nada legal ter um filho com as feições de um tartar de atum com crème fraîche.

E não pensem que isso foi o pior. Quando Paula estava prestes a dar à luz, no meio do nono mês, ela me acorda, por volta da meia noite e me faz o pior de todos os pedidos. Ela queria uma salada de rins. Perguntei o que diabos era uma salada de rins e ela me ditou a receita, vinda diretamente de sua cabeça alucinada. Era uma mistura de rins de várias espécies de mamíferos e aves levemente cozidos, temperada com várias iguarias orientais raríssimas e verduras e legumes, quase todos fora de época. E tinha que ser naquela hora. Uma demora a mais e nosso filho nasceria roxo e com cara de víscera.

Anotei com rigor científico todas as dicas do..ahn…prato inventado pela minha esposa. Saí de casa a cata de todos os ingredientes, regateei com açougueiros, acordei feirantes, esmurrei portas de delicatessens e no fim, estava quase tudo pronto para o preparo. Quase, porque o rim de javali estava em falta no lugar onde eu comprava carnes exóticas. Eu já era amigo do açougueiro, tamanha era a minha freqüência em seu matadouro chique. Ele já me quebrara o galho milhares de vezes, mas dessa vez ia ser impossível.

Fui pra casa preocupado. E se ela reclamasse da falta do ingrediente? Ela era capaz de parir um rim ali, na minha frente. Resolvi acreditar que tudo era psicológico e ia fazer a salada de rins sem avisá-la da falta do rim de javali. No meio de tantos rins e temperos, ela não ia conseguir indentificar a falta de algo que ela nunca havia provado na vida.

Fiz o prato, levei pra Paula, que comeu tudo com muito (irch) gosto. Antes de dormir, como que lendo minha mente, ela me pergunta se eu tinha arranjado todos os ingredientes. Eu, claro, disse que sim, que ela ficasse tranqüila. Só pedi que ela não exagerasse tanto no próximo, ou quem teria o filho seria eu.

Não dormi bem. Tive sonhos horríveis, como um em que Paula dera luz a um par de rins, e o médico ainda batia nos órgãos, para fazê-los chorar. Em outro, um javali me perseguia com um dos seus rins fincado em uma das suas presas. Acordei desesperado. Não com os pesadelos, mas com uma dor isuportável no baixo ventre. Paula acordara junto comigo. A bolsa havia rompido.

Corremos para a maternidade, eu gemendo no carro de um lado, Paula do outro. No hospital, Paula foi para um quarto e eu fui parar em outro. Estava, vejam vocês, com uma crise renal braba. O médico me disse que, por algum motivo desconhecido, os pequenos cálculos que deviam estar nos meus rins se moldaram, virando uma única e grande pedra. E ela estava tentando sair pela minha uretra, o que causava a dor. Ela tinha que ser destruida, o mais rápido possível. Teria que fazer uma radiografia para ver o tamanho exato do cálculo.

No outro quarto, meu filho nascia, saudável e, o que era melhor, com feições humanas. No meu quarto, a imagem na tela computadorizada mostrava o enorme cálculo que tentava rasgar minhas tripas. Tinha a forma de um feto.

27.8.02

Revelação


Esse garoto, que eu e minha esposa demos tanto carinho, tanto amor. Nunca faltou nada para esse menino. Agora eu me pergunto se a culpa é minha, se as minhas viagens me afastaram demais do garoto. Será que se eu não fosse sargento da marinha isso tudo teria acontecido? Não…a culpa não podia ser minha, não mesmo. Eu dei para esse menino a melhor educação que eu poderia ter dado. E ele me responde dessa maneira...me traindo. Porque, sim, isso era traição. Eu já tinha na mente o futuro brilhante que ele teria na marinha, teria sido tudo o que eu não consegui ser…E ele me dá essa punhalada…Isso TEM que ser culpa da mãe dele. Sempre mimou muito esse menino…boa coisa não podia dar…




Ah, meu Deus…Claro que eu ainda vou amá-lo. Ele é meu filho. Essa revelação não muda em nada o meu amor por ele. Mas por que, Deus, por que?!?! Eu nunca deixei faltar nada pra ele. Ele estudo sempre onde quis, sempre teve os amiguinhos que quis, nunca o proíbi de nada. Mesmo quando o brucutu do seu pai estava em casa – nas raras vezes em que ele estava em casa – e não deixava você sair para onde quisesse, eu te deixava ir, não importando o quanto eu fosse ouvir dele depois. Ah….juro, não vou deixar de amá-lo, meu filho…E vou respeitar essa sua…tendência…mas me preocupa sua alma…Isso é anti-cristão…pense em Deus e como ele vai encarar essa sua vida em pecado!!!!




Não sei como eu posso estar me controlando dessa forma. É muita coragem desse…moleque falar isso para mim e eu não lhe arrebentar as fuças. Que disparate! Mas a culpa é minha, só pode. Se fosse no meu tempo, meu pai já teria me convencido a retirar o que eu disse com duas bordoadas. Mas eu sou muito controlado…E isso é até bom…eu podia matar o garoto.




Já até imagino o que seu pai vai falar pra mim. "Você mimou demais esse garoto!"…ele sempre diz isso. E, agora, começo a achar que ele tinha razão. Mas o que eu podia fazer? Eu te amo mais que amo a mim mesmo, meu filho.Não há nada que você não me peça que eu não faça na hora. Mas…isso!!!!…Já é demais…E meus netos? Eu que planejava ser avó em pouco tempo, cuidar daquelas criancinhas tão bem como cuidei de você…e agora? Terei cuidado bem de você
mesmo???




Não vou mais falar com ele. Não vou mais olhar para ele. Para mim, ele está morto. E é bom ele sumir da minha vista rápido…ou ele acabará morto para todo mundo…




Meu Deus…Onde eu errei? Não…foi a ausência desse pai dele…meses e meses viajando, sem um exemplo masculino dentro de casa…Esse que eu chamo de marido, que sempre colocou a sua carreira a frente da família…E se não fosse meu filho, minha cria, saída do meu, MEU ventre, eu teria colocado um par de chifres nele. Com MEU filho, eu já tinha alguém pra amar e cuidar, não precisava dele pra mais nada. Já meu filho, MINHA criança, precisava dele. Precisava de um pai por perto, pra educá-lo, mostra-lhe o que é certo…e onde ele estava? Viajando. Sempre.




(…)




Nunca pensei que uma simples revelação como a minha fosse causar tanto mal, ou melhor, trazer tanto mal à tona. Eu não percebi que a hipocrisia era o que levava o casamento dos meus pais adiante. Não queria a separação dos dois. Não foi essa minha intenção depois de falar a simples frase "Mamãe, eu gosto de garotos"…Não queria que minha mãe ou meu pai se culpassem. Não é nem questão de culpa. Como, culpa? Culpa de que? Se eu gostasse de garotas, de quem seria a culpa? Agora minha mãe vive sozinha, depois que seu anúncio de que ia se separar de papai o matou do coração. Vive na igreja, o dia todo. Diz que rezando pela minha alma. O que eu posso dizer para ela é que da minha alma, cuido eu. Vivo com quem eu amo, não incomodo ninguém…por que deveria temer o fogo do inferno? Por que sou feliz?


Saldo negativo


Tinha ouvido falar que investir em emoções era a mais nova tendência do mercado. O boato dizia que os rendimentos eram muito bons e a liquidez era excelente. Foi lá, tirou tudo o que tinha no banco, seus fundos de renda fixa, vendeu commodities e investiu tudo em emoções variadas.

Só que o mercado virou. Tinha gasto milhões em emoções como amor, esperança, amizade, lealdade e emoções correlatas. As ações desses sentimentos caíram vertiginosamente. Se deu bem quem investiu em rancor, ganância, ódio, mais fartas e sempre em alta nos dias de hoje.

O saldo negativo na sua conta bancária nem o afetava tanto. Mas quando teve que vender seu último papel de "esperança" para ter com o que alimentar a família, ele viu que não tinha outra solução: se jogou do 13º andar do prédio da Bolsa.

26.8.02

Asas


vertigem . [Do lat. vertigine, 'remoinho'.] S. f. 1. Med. Estado mórbido em que o indivíduo tem a impressão de que tudo gira em torno de si ( vertigem objetiva), ou de que ele próprio está girando ( vertigem subjetiva).
(…)
3. Fig. Desvario, loucura. 4. Tentação súbita.


No começo é o desejo. Daqueles que consomem a pessoas, dos que as fazem andar nas nuvens, que tira todos os pés do chão. O flutuar é bom, apesar de absorver muito as partes. Perde-se a perspectiva então.

Sem perspectiva, a vista das alturas pode chocar os estômagos mais sensíveis. Passa-se mal. A sensação do voar ainda é excitante e não se quer perdê-la de jeito nenhum. Mas o vício do voo é o mais contraditório de todos os vícios. Fica-se preso ao prazer da liberdade.

Quando o hábito de voar já não sacia mais, quando vê-se que os grilhões estão mais fortes que as asas que se ganhou, ocorre o seguinte: não se suporta mais o ar. O único desejo que se tem é manter os pés no chão. Chega-se a se odiar o ato de voar, vertigens começam a acontecer. Antes o mundo girava em torno dos graciosos voos. Agora, gira-se, como um satélite, sem vontade, na órbita de um astro desconhecido. Tudo o que se deseja nessa fase é uma âncora, algo que possa manter o corpo preso ao solo.

O que não se percebe é que essa âncora em pouco tempo se transforma, do dia para noite, em novas asas. E que o turbilhão que suga para o ralo do desejo só para para depois lançar todo seu conteúdo no céu começou novamente a girar.

Revolução


Apesar de ser uma situação tétrica, merecedora de uma solução imediata, não adiantava reclamar. O presidente não se encontra. Nem em seu luxuoso gabinete, cercado de segurança e isolado de todos os problemas, nem se encontrava em suas ações. Dizer que trocava os pés pelas mãos era um bruta eufemismo em se tratando da figura. Ele era, sem rodeios, uma verdadeira mula.

E sua visão obtusa do mundo infectou seus assessores diretos, seus ministros, todo o legislativo e o judiciário. O caos era inevitável em meio a tanto descaso e incompetência. Até o próprio presidente reconhecia que o limite estava próximo. Mas o que ele, coitado, poderia fazer?

Seu desastrado pronunciamento em rede nacional foi o responsável por tudo o que aconteceu. Disse que sabia ser o principal responsável pela penúria do seu povo, mas que a culpa não era só dele, que em países como o que governava, os problemas que os afligem remontam de muito tempo, e no caso desse país com vocação de colônia, mesmo com as riquezas para ser metrópole, são males que vêm desde antes da Revolução Francesa. Disse que seu governo e sua nação estava presa numa espiral história inevitável e irreversível. Como Pilatos, lavou as mãos.

Depois do pronunciamento, o povo se revoltou. Chegaram como podiam à capital do país e, munidos com paus e pedras, tomaram o poder. Não foi de forma pacífica.

Como Luis XVI, o presidente morreu degolado.

23.8.02

A peixaria


Durante mais de 60 anos, a peixaria dos Hermelindos nunca amanheceu fechada. Desde sua fundação, o patriarca Josefo Hermelindo tinha como filosofia "banca aberta, peixe vendido". Não importava se estava chovendo, se era feriado ou dia santo. Todo dia era dia de trabalho.

Os Hermelindos eram muito famosos no vilarejo de Marataúzes, Espírito Santo. Tinham a fama de exímios pescadores e de serem gente de muita fibra. Eram muito amigos de quem eram seus aliados e inimigos mortais dos seus desafetos. Só uma coisa rivalizava com a fama de homens do mar dos Hermelindos: sua cabeça quente.

Carmelo era o atual patriarca do clã. Neto de Josefo, Carmelo já corria pelos seus 60 anos, e não saía mais na sua jangada. Deixava isso por conta dos seus 3 filhos e alguns netos que já tinham idade e corpo para puxada do arrastão. Carmelo tinha plena confiança em Cícero, Jonas e Celso, sua prole. Tendo parado de ir para o mar, Carmelo ficou responsável pela peixaria. E como seu avô, nunca deixou de abri-la, por motivo nenhum.

Confiava e amava os filhos, mas seu xodó era seu neto mais velho, Carmo. Era o primogênito de Jonas, que homenageou o pai batizando o filho com tal nome. Tinha 17 anos e pelo viço do corpo, seria tão forte como fora o avô na juventude. Apesar de ainda novo, já se destacava nas pescas e manobrava a jangada como poucos. O apego ente neto e avô era tanto que despertava ciúmes. Principalmente em, surpreendentemente, Jonas.

Jonas nasceu em um época de dificuldade para os Hermelindos, por isso foi o menos adulado dos filhos. Se achava um injustiçado, seu pai nunca lhe demonstrou muito afeto e isso o ressentia muito. Quando Carmo nasceu, ele viu a parcela de amor que lhe cabia por parte de seu pai ser transferida para seu filho. Tomado pelo rancor, muitas vezes Jonas tratava mal o próprio filho. Isso só reforçava as ligações entre Carmelo e seu neto, que o procurava a cada novo destempero do pai.

Até que um dia – dia em que nuvens negras vinham pelo sudoeste anunciando que uma tempestade se aproximava – deu-se a tragédia. Conversavam os três, avô, pai e neto, sobre a pescaria do dia anterior. Contavam casos e histórias de antigas jornadas ao mar e se divertiam. Apesar de estar rindo, Jonas sentia uma pontada em seu coração toda vez que via o olhar que seu pai lançava a Carmo. Um olhar de afeto profundo, que ele nunca teve o prazer de ser o objeto. Estavam decidindo se iriam ou não à jangada, tentar pescar algo na parte da tarde. Pescador experiente, Carmelo não achava seguro. O vento era de chuva da braba, dizia, não convinha arriscar. Na empolgação da juventude, Carmo desdenhou da opinião do avô, dizendo que poderia ir, nem que fosse por pouco tempo, voltaria antes da borrasca cair sobre o litoral. Carmelo abraçou o neto, afetuosamente, e disse que sabia que ele era um Hermelindo de verdade, que era muito mais corajoso que seu pai, Jonas, mas que isso seria uma imprudência que ele não permitiria que fosse cometida. Ao ouvir isso, Jonas sentiu algo lhe subir à cabeça, já era demais. Se seu próprio pai era incapaz de lhe demonstar afeição, não aceitaria ser humilhado, ao ver sua coragem ser comparada com a de um fedelho.

Jonas estourou de vez. Cuspiu, de uma vez só, toda a mágoa que sentia do seu pai. Falou da infância abandonada que teve, da indiferença que sempre sentiu vir do pai, seu maior ídolo. Que sabia que Carmo era muito mais querido que ele. Mas não deixaria que seu pai comparasse a sua coragem com a do filho. Se ele achava Carmo mais corajoso, ele teria uma prova do quão corajoso ele poderia ser.

Jonas correu até a jangada pegou o arrastão e iria pro mar, não se importando com as vagas que já começavam a rebentar na praia. Carmo foi atrás do pai, implorando para ir junto, ele ajudaria. Ao encostar no ombro do pai, Carmo levou uma bofetada que o atirou longe. Carmelo não aguentou ver aquela cena parado e foi em direção dos dois, gritando com Jonas, falando para que ele nunca mais batesse em Carmo. Então ele disse:

– Pode deixar, pai. Nunca mais vou bater nele.

Partiu pro mar encapelado, apesar dos protestos do pai. Carmelo teve que segurar o neto para que não entrasse no mar atrás do pai. Foram vendo a jangada se perder no horizonte negro. E começara a chover. Quando não mais podiam ver a barca, Carmo se desvencilhou do avô e foi para mar. Gritando no meio da tempestade, pediu desculpas ao avô, mas precisava buscar o pai.

Carmelo recebeu toda a tormenta. Ficou na praia esperando pelo filho e pelo neto até o tempo amainar. Horas depois, só chegaram à costa destroços de uma jangada. Parecia muito com a dos Hermelindos.

No dia seguinte, Marateúzes acordou de alguma forma diferente. O ar ainda era límpido e o mar, acalmado depois da tempestade, acariciava a praia de leve. Mas definitivamente, algo havia mudado.

Naquele dia, algo estranho aconteceu. A peixaria dos Hermelindos estava fechada.

22.8.02

Piedade


Não tenho pena das vítimas da fome
Nem dos flagelados pelas guerras
Nem dos pais que perdem seus filhos

Não tenho pena dos aleijados e deficientes
Nem dos que são solitários
Nem dos que têm doenças terminais

Não tenho pena dos sem teto
Nem dos sem terra
Nem dos desempregados

Eles estão vivos
E de alguma forma
Podem compensar suas penúrias

Dignos de pena mesmo
São os pobres de espírito

Tenho pena dos preconceituosos
E dos invejosos
E dos intolerantes.

Tenho pena dos donos da verdades
E das mentes decadentes
E dos que se mantêm na ignorância

Tenho pena dos sem esperança
Dos sem sonhos
Das pessoas-zumbi

Esses não têm jeito
Respiram, andam e falam
Mas não estão vivos há muito

Silêncio


Acordou no silêncio do seu quarto. Estava escuro. Seu relógio-despertador-digital-de-última-gereção, que sempre acabava com o melhor do seu sono não estava funcionando. Não sabia que horas eram, se era dia ou noite. Se sentia estranho. Há quanto tempo estava dormindo? Horas? Dias? Semanas? Não sabia. Não se lembrava sequer como havia chegado ao seu quarto. Aliás, seria esse mesmo o seu quarto?

O breu era tão denso que poderia ser cortado com uma navalha. Só o movimento de suas pálpebras denunciava que estava acordado e com os olhos abertos. A escuridão era total. Pensou, rindo, que talvez estivesse em um buraco negro, onde até a luz era atraída. Pensando melhor, viu que nada tinha de engraçado na sua situação, que no fim das contas, ele nem sabia qual era.

Abriu os braços, tentando encontrar algo que pudesse tocar. Nada. Estendeu até onde pode seus membros e não sentiu nada. Nenhuma parede, nenhum móvel, nenhum objeto por perto. Decididamente não estava no seu quarto. Tentou levantar, tirando primeiro as pernas da cama. Não sentiu o chão. Esticou suas pernas e mesmo assim seus pés só tocaram o vazio. O desespero se abateu sobre ele. Não poderia estar flutuando. Ou poderia?

Aguçou o ouvido. Nada. Nem um ruído. Mesmo que estivesse nos recantos mais ermos da cidade onde morava, não ficaria sem ouvir o eterno murmurar da metrópole. Onde diabos estaria? O que havia acontecido afinal de contas? Tentou achar alguma coisa na cama onde estava. Se virou e foi aí que percebeu. Estava, decididamente, encostado em alguma superfície. Mas não saberia definí-la: seus contornos, sua densidade, sua área. Não sabia se era macia ou dura. Sua cabeça latejava.

Não sabendo o que fazer, teve a atitude normal nas pessoas à beira do desespero. Ele gritou. E da sua atormentada garganta, só saiu o silêncio.

20.8.02

O Quadro


Era a pessoa mais alegre do mundo. Tinha seus problemas, é claro, como toda a humanidade. Mas seus amigos nunca o viram triste ou acabrunhado. Era a alma de qualquer festa, todos adoravam sua companhia, era o que chamavam de "pessoa alto astral".

Mesmo quando ficava triste, ele não demonstrava. Nunca o viram reclamando da vida ou maldizendo qualquer coisa. Escondia de todos seus queixumes. Detestava incomodar os outros com o que julgava serem problemas só seus. Seus amigos mais próximos até reclamavam disso. Achavam impossível que ele não quisesse desabafar algo, queriam ajudá-lo, sem saber sequer se tinham algum motivo para isso. Falavam que não podiam dizer "amigo é pra essas coisas" logo para ele, o maior de todos os amigos de todo mundo.

Tudo ia bem na sua vida. Resolveu fazer uma loucura: chamou seu melhor amigo, um pintor, e pediu que retratasse sua alegria em um quadro. Colocaria no centro da sua sala, para deixar exposta sua felicidade para os que o visitassem. Planejou a "inauguração" do quadro para seu aniversário, quando chamaria todos os seus amigos e lhes daria pequenas reproduções da tela de presente.

Seu amigo começou a pintar no dia programado. Ele estava bem disposto, mais feliz até que de costume. Tudo foi bem até o terceiro dia da pintura. Chegou em casa com – inacreditável – o rosto tenso. Seu amigo perguntou o que houve. Arranjara uma briga no trabalho. Pela primeira vez na vida, tivera uma discussão, e com pessoas que via todos os dias à anos. Pedira demissão. Não queria mais ver seus companheiros de serviço. Seu amigo notou que no dia ele manteve a mesma pose, exceto pelo rosto. Algumas rugas que nunca tinha notado estavam lá. E o sorriso era meio forçado.

Nos dias seguintes, o pintor começou a notar mudanças drásticas no amigo. Ligaram para ele do trabalho, pedindo que ele reconsiderasse sua decisão de ir embora. Seu amigo passou uma descompostura em que ligou, não voltaria nunca mais ao trabalho. Até xingou a pessoa que havia ligado. Quando outros amigos, de fora do seu antigo emprego, ligavam, dizia que não queria ver ninguém, que tinha problemas. Imediatamente, todos que ligavam se prontificavam em visitá-lo, querendo conversar, ver no que poderiam ajudar. Não aceitava a ajuda e quando insistiam, chegava a ser grosso com eles. O pintor não entendia o que poderia estar havendo com ele, a imagem da temperança. Agora era um sujeito irascível. E estava cada vez mais difícil encontrar qualquer traço de alegria para pintar.

Piorando a situação, os convites para sua festa, que já haviam sido entregues, começavam a voltar. Alguns alegavam problemas pessoais para não irem. Outros, os que tiveram alguma desavença com o ex-alegre, apenas devolviam o convite. Alguns até o ofendiam depois da devolução. Cada recusa em ir a sua festa o afetava profundamente. Vivia gritando pela casa, soltando impropérios para Deus e o mundo. Seu amigo pintor, agora o único admitido em sua casa até o dia da festa, não o reconhecia mais. Para pintar o quadro, começou a ver fotos antigas do amigo, agora que só faltava o rosto para o fim da pintura.

Uma semana antes do dia da festa, no dia planejado para o término da pintura, chegou mais um convite devolvido. Era o penúltimo. Foi a desculpa para ele destruir tudo que existia na sua frente. O pintor teve medo do amigo, nunca vira ninguém tão furioso em sua vida. Quando não havia mais nada quebrável na sua frente, ele se dirigiu para o quadro, gritando que, de alguma forma, o quadro roubara seu emprego, seus amigos, sua felicidade. O pintor se interpôs entre o amigo descontrolado e sua obra. Chamou-o de louco, disse que ele precisava de ajuda. Brigaram. Como nunca em sua vida sequer havia se chateado com alguém, muito menos se estapeado com outra pessoa, o pintor facilmente subjugou o amigo. O pintor foi até ao quadro e tirou o manto que o cobria. Estava pronto.

No chão, ele viu seu rosto, como não via há muito. Era a expressão da felicidade plena, tinha literalmente a felicidade estampada no rosto. Ficou chocado por um momento, sem saber o que fazer, sem saber o que havia ocorrido. Um quadro tão belo não podia ser a razão de tanta desgraça. O pintor arrumou suas coisas e partiu. Disse que não poderia mais ser amigo dele. E jogou um envelope em cima dele, no chão. Era o último convite para sua festa.

16.8.02

Concepção


Estou gerando palavras
Que nascerão em breve

Minha cabeça
Cornucópia de ideias

É origem e gênese
Não se encerra em si

Mão, papel, caneta
São o motor

Meu cérebro
Pariu o escrito

15.8.02

Raso


Acordou sentindo-se superficial. Não no nível das ideias, onde até se destacava. Sentia-se leve no corpo, como se fosse uma folha de papel.

Teve medo de sair de cama e com o impulso tomado ir parar no teto. Sentia que tinha apenas duas dimensões. Se alguém se dispusesse, poderia pegá-lo e fazer dele um rolo, como uma planta de arquiteto em papel vegetal.

Se aventurou em levantar. Não saiu flutuando como temia, mas ainda se sentia leve, sem peso. Se vestiu. As roupas lhe dariam alguma massa, pensou. Não funcionou. A vestimenta que lhe cobria a nudez adquiriu suas propriedades corpóreas.

Começou a se desesperar. Resolveu não sair de casa. Só de imaginar o que poderia lhe acontecer na rua – o vento, as trombadas com as pessoas nas calçadas – tremia. Esperava sinceramente que esse problema acabasse rápido.

Mas não acabou. As horas, os dias, as semanas foram passando. Ele dormia, acordava, voltava a dormir e continua praticamente etéreo. Não sabia mais o que fazer. Não comia mais, não atendia o telefone. E o mais revoltante: ninguém deu por sua falta. As semanas viraram meses. Ele não definhava, mesmo sem se alimentar. E mesmo desaparecido, nada de procurarem por ele.

Desenvolveu uma teoria. Perdera a massa porque era, metaforicamente uma pessoa rasa. Começou a achar que não havia mesmo porque alguém procurá-lo. Todas as suas amizades eram superficiais, assim como seus assuntos, seus gostos, sua vida. Era uma espécie de ironia do destino.

Resolveu se matar. Abriu a janela do quarto, que desde sua mutação vivia fechada pelo medo que tinha das correntes de vento no 13º andar, e resolveu se jogar. De um pulo só, saiu flanando pela janela. Como ele esperava, seu corpo não caiu. Ergue-se no ar, como uma pipa contra o vento. Ao se ver voando, pensou que de repente sua vida até que valia a pena. Desistiu de se matar. Mas o que faria agora?

Pássaro de primeira viagem, não conseguia controlar seu voo. Seguia a vontade das brisas, as vezes indo acima dos arranha-céus, as vezes dando rasantes pelas avenidas repletas de carros e civilização. Quem o via, julgava ser um boneco de ar. Bem feito, mas um boneco. Cansado e meio enjoado das suas acrobacias involuntárias, começou a gritar por socorro. Mas ninguém o ouviu.

Uma corrente de ar quente o elevou, mais alto que nunca. O desespero e a falta de ar o fizeram desmaiar. Da rua, as pessoas apontavam para o balão que ia tão alto. Não conseguiam ver-lhe a forma.

14.8.02

Vida


A despeito dos lenços acenando
E dos choros de adeus
O barco parte

Não importam as vagas
Ou os caprichos das marés
O barco segue

Do outro lado
Há um porto
Novas pessoas choram
De alegria

O barco chega

13.8.02

Esfínge


Nunca esperei que isso fosse acontecer comigo, conosco aliás. Te encontrei – ou terá sido o contrário – tão casualmente. Acho que, no final das contas, são esses tipos de encontro que são os definitivos. Ou não, se analisarmos nosso momento agora.

Você fala, fala, e não diz nada. Sim/não, ser/não ser…Você não se decide. Talvez esse seja seu problema. Talvez esse seja o nosso problema.

Não me venha com essa dialética. Você está usando minhas armas, como sempre. O problema é que você é melhor com elas que eu mesmo. Eu me entrego sempre, esse é meu verdadeiro mal. E fui logo me entregar pra você, com seus mistérios, seus encantos escondidos…

Ah…sua verborragia me cansa, sabia?

Lá vem você com seus vocábulos guardados para nossas discussões. Não faça pose para mim. Sei da sua inteligência, sei o quanto você é esclarecida. Sei também que isso só realça seus segredos. Você é minha esfinge. Eu não te decifrei e agora você me devora. O mal é que não sou digerível: por isso você me vomita.

Não sou sua esfinge, amor. Não tenho segredos, nunca os tive. Sou transparente. Em momento algum te desafiei com meus mistérios inexistentes; nunca te ameacei com meu apetite. Não sou antropófaga. Não te devoro, nem física, nem psicologicamente. Se você foi vomitado? De certa forma, posso até concordar com isso. Você é indigesto.

Tudo bem. Nada de mitos para justificar o fim. Descobrimos agora onde errei, onde erramos. Você não tem estômago.


9.8.02

Shopping


Acordou de manhã e soprou o sono que ainda tinha. Somente ele fazia companhia à sua cama alemã, vencedora de um prêmio de design europeu. Esfregou os olhos, se espreguiçou e levantou. Foi até o banheiro. Banho quente (jacuzzi), barba (lâmina inglesa), escovar os dentes (Crest). Saiu renovado. Tomou um café da manhã saudável: frutas, suco, frios. Se arrumou. Se sentia bem e precisava se sentir assim para fazer o que pretendia.

Se arrumou com esmero. Colocou o melhor terno – aquele que ela adora – passou gel no cabelo, colocou o sapato italiano comprado na, agora mais que nunca, distante lua de mel. A gravata era da mesma procedência. Se vestiu como ela sempre pedia que se vestisse. Ele odiava se vestir assim, como um janota qualquer. Mas a ocasião exigia.

Colocou o Ray-Ban que havia ganho de presente dela no 1º aniversário de casamento. Se olhou no espelho. Estava realmente elegante. Ela adoraria. Isso, claro, se ela fosse vê-lo. Ela foi embora, e ainda levou a mala que ele havia comprado em Nova York para as férias na Riviera.

Pegou sua Walter PPK – era fã de James Bond – e apontou para sua cabeça. Antes de disparar, imaginou a cara dela vendo seu Armani sujo de sangue.

7.8.02

Desperdício


Desperdício é perder o contato com quem se gosta. Não só o contato físico, que no final, a despeito do que pensam as mentes lascivas e sexistas, nem é o mais importante. Falo de um contato mais sutil. Algo como mentes em sintonia, ou algo do gênero. E foi gratuitamente, assim, do nada – ou nem tão do nada assim. Erro eu, erra você, no fim erramos todos e perdemos a direção. Não que antes houvesse alguma estrada a ser trilhada, algum caminho em comum. Poderíamos, ao menos, poder mandar tchauzinho um para o outro, cada qual em sua trilha. Hoje? Nem isso. Não há mais diálogo, não há mais nada.

Será mesmo algo irreversível? Será que o que tínhamos é algo morto, putrefato, enterrado em catacumbas seculares? Não quero crer nisso, não mesmo. Mesmo as mais distantes paralelas se cruzam no infinito. E lá, nesse lugar hipotético, nesse Éden imaginário, estaremos tão perto que nossas mãos acenando poderão se tocar.

5.8.02

Carnaval


O pierrot escondeu minha colombina
Fugiu do baile com ela na mão
E para mim, abandonado e pobre folião
Nada além de confete e serpentina

Evoé, Momo
Como se na Quarta de cinzas
Não fosse eu o morto

Quem está por trás da máscara
Que pierrot é esse que brinca
E fica feliz com meu mal?

Minha fantasia, rasgara
Na minha folia, ele afinca
A lâmina com que cortou meu carnaval

Olê, olê, olê, olá
Sumiu minha colombina
De nada vale o que sobrar

31.7.02

Sordidez


Ele sempre desejou ser um dos personagens dos contos do Rubem Fonseca. Achava glamouroso a violência, os detetives canalhas, as tramas e lugares sórdidos. Até a escatologia o atraía. Era meio estúpido, a despeito do seu ótimo gosto literário.

Vivia pensando em ter os diálogos mordazes do personagens de Fonseca. Não que tivesse a mínima chance de ter algum. Não conhecia pessoas mordazes e as que fugiam um pouco do comportamento obtuso que lhe era peculiar, não lhe davam atenção. Quando dava a sorte de encontrar alguém cínico ou irônico gostava de criar discussões, onde sempre era irremediavelmente arrasado pelos seus interlocutores. Como a sagacidade não era seu forte, demorava a responder aos argumentos dos conhecidos um pouco mais eloquentes. Gaguejava, suava e era sempre humilhado, servindo de chacota nas rodas que frequentava.

Tinha um empreguinho medíocre, onde executava uma função medíocre, de forma idem. Se prestassem bem atenção no seu serviço, o descobririam completamente desnecessário. Tanto que passava grande parte do seu expediente fumando no corredor, pensando em prostitutas, assassinatos, policiais corruptos e respostas loquazes para qualquer situação. Ficava angustiado com sua modorrenta vida e pensava em dar uma guinada radical em sua rotina. Só não sabia o que fazer pra que isso ocorresse.

Começou a beber todos os dias, talvez por influência de um dos personagens de "Feliz Ano Novo" ou "O Cobrador", não sabia. Aparecia bêbado no trabalho, e se antes suas ocupações no escritórios eram nulas, agora ele estava atrapalhando o serviço alheio. Ficava horas seguidas no corredor, fumando sem parar. Um dia, seu supervisor lhe chamou para uma conversa. Sua conduta havia se tornado incompatível com as regras da empresa. Deveria passar no dia seguinte para assinar o aviso prévio.

Era um emprego de merda, como costumava pensar, mas era sua única fonte de renda e, além da leitura obsessiva dos livros do Rubem Fonseca, tudo o que tinha que para fazer na vida. Saindo da firma, bebeu mais e foi, ébrio, para casa. Foi direto ao quarto do pai. Sabia onde seu velho escondia um velho 38 e pegou-o. Voltou para o bar e bebeu a noite inteira.Desmaiou de bêbado, no banco da praça, abraçado ao embrulho com o revólver. Sentia no tato o glamour que a arma trazia. Ia, finalmente, mudar sua vida.

Chegou trôpego e fedendo ao escritório. Foi direto à sala do seu supervisor. Vendo seu lamentável estado, o supervisor lhe recebeu com uma chuva de impropérios. Ele sentiu seu sangue, infestado de álcool, subir-lhe a cabeça. "É agora" , pensou, "vou mudar minha vida!". Partiu para cima do supervisor, acertando um soco no meio do nariz. A cara estupefata e o sangue que jorrou da fronte do supervisor o deixaram feliz. Os protestos do supervisor só serviram para aumentar sua fúria. Ele nem precisou do revólver, já posto em sua cintura. Pegou o abridor de cartas e enfiou na jugular do supervisor, um jorro vermelho manchando sua camisa. "Ainda não acabou", pensou.

Saiu para o corredor. A secretária foi sua segunda vítima. Vendo a camisa dele suja de sangue, começou a gritar. Foi interrompida pela bala que lhe atravessou o olho direito. A cena o deixou feliz: a secretária chorava um pranto rubro, apenas por um olho.

O estampido chamou a atenção das pessoas. Um segurança, correndo em sua direção, levou um tiro no abdômen e outro no braço, caindo agonizante. Um contínuo tentou tirar a arma da mão dele, sendo reprimido por um golpe no rosto. Enquanto chutava o rosto caído do contínuo no chão, outro segurança apareceu, acertando-lhe o ombro com uma bala. Revidou com impressionante precisão, transformando o peito do segundo segurança uma massa de carne sanguinolenta. O contínuo, se recuperando do golpe, consegue segurar suas pernas e derrubá-lo. Ele caiu já atirando no contínuo, abrindo um buraco em sua testa. Seu ombro alvejado estava em brasa, tinha apenas uma bala, estava caído no chão com as pernas presas por um contínuo morto. Enquanto o número de pessoas que chegavam ao lugar aumentava consideravelmente, ele pensou "Ainda não"…

O terceiro segurança escapou daquela que foi a última bala do velho 38 que ele carregava. Em seguida, tudo foi muito rápido. Levou um chute no rosto do terceiro segurança e nem viu que cinco pessoas se amontoaram sobre seu corpo, golpeando-o por todos os lados.

***

Seria julgado pela morte de quatro pessoas e pela tentativa de assassinato de mais duas. Seu pai, homem com certa influência, lhe arranjara um ótimo criminalista. A linha de defesa era a da insanidade do réu. Ele estava sentado, impassível. Não se podia imaginar o que passava por sua conturbada cabeça. O advogado dele era realmente bom, fazia sua defesa de forma perfeita. Se ele, além de ótimo advogado fosse telepata, leria na mente do seu cliente o pensamento incessante: "ainda não, ainda não, ainda não, ainda não, ainda não, ainda não…"

Inesperadamente, ele pede a palavra. O juiz assentiu, e, pela primeira vez na vida, ele foi brilhante. Com argumentos bem pensados e uma oratória convincente, explicou os motivos dos seus crimes e alegou não ser louco. Seu advogado, vendo seu caso indo por água abaixo, tentou fazê-lo se calar. Seu pai só voltou a sentar contido pelos policiais no tribunal. Agora tinha certeza que seu filho enlouquecera.

Foi condenado a três penas máximas. Foi levado diretamente para o presídio, ficando em um cela superlotada. Em poucos dias, notando sua boa condição e nascença, começou a ser maltratado pelos outros presos. Fora espancado e humilhado várias vezes. Fizeram dele a diversão da cela, a mulher de todos, sem direito sequer a ter um protetor. Limpava toda a cela sozinho, levava bordoadas de todos, sem motivo aparente, as vezes o deixavam sem comida, como castigo nem sabia porque.

Estava feliz.

29.7.02

Narciso e o amor


Mesmo que a expressão "os opostos se atraem" carregue em seu cerne muito de verdade, não podemos deixar de levar em consideração o lado narcisísta do amor. Não existe amor possível sem que o objeto da nossa admiração não nos reflita, por pouco que seja. Temos a necessidade de nos reconhecer no objeto que amamos. Não há amor sem que não nos encontremos no outro, se quando encararmos o lago que ele é, não vejamos nossa própria face.

Se não temos um referencial nosso em quem amamos, o próprio amor se esvai. Narciso sem lago, sem reflexo, o amor onde não nos identificamos é seco, como um espelho d´água vazio. O amor olha para seu leito sedento e não se vê. Morre a míngua, esturricado, língua pra fora implorando por um lugar onde possa mergulhar e cumprir seu destino de afogado.