28.8.03

Saída de emergência



Saiu de casa tão atrasado que nem se preocupou em tomar o café. Mal abriu a porta de casa e desatou uma carreira pela rua, querendo chegar o mais rápido possível à estação do metrô. "Outro atraso no escritório e estou ferrado!" , era só o que conseguia pensar.

As calçadas cheias foram seu primeiro obstáculo. Praticava um inusitado balé urbano ao se desviar das pessoas, que pareciam não entender sua pressa. Passava raspando por uma senhora ali, quase trombava em um estudante aqui, sem se preocupar com roupas ou feições. Seu único objetivo era chegar à estação e quem estivesse na sua frente era apenas um empecilho.

Até que ele, não tendo agilidade para se desviar de duas pessoas ao mesmo tempo, esbarrou com força num sujeitinho franzino que vestia um terno surrado. A violência do encontrão levou os dois ao chão, com maior prejuízo para o rapaz fraco.

- Ei! Ficou louco?!?!
- Desculpe! É que eu estou com...

Não pode terminar a frase. Mais estranho que o terno velho do rapaz era a forma como ele se barbeou: apenas metade do rosto estava lisa, perfeitamente escanhoada; a outra metade ostentava um bela barba. A surpresa que a imagem lhe causou o deixou sem fala por uns momentos.

- O que foi?!?! O que está encarando?
- Nada, nada...desculpe...tenho que ir. Estou atrasado...

Ia demorar muito para ele explicar a situação. Seu atraso não permitia que ele ficasse tecendo teorias sobre todo sujeito com comportamento exótico que trombasse pela rua. Continuou sua carreira rumo ao metrô, ignorando o resto dos transeuntes.

Chegou à estação com o ticket já na mão, pronto para voar pela roleta. Não poderia perder sequer um trem. Olhando o relógio viu que tinha que percorrer em 5 minutos um percurso que demoraria, se desse sorte, 25.
Chegando a plataforma, viu que um trem estava prestes a sair, faltava apenas uma senhora entrar no vagão mais perto de onde ele estava. Correu e entrou no trem, com as portas praticamente se fechando. Sentou arfando, de olhos fechados para se recuperar do esforço.

"Estranho ter lugar no metrô essa hora", pensou, antes de abrir os olhos. Quando deu sua primeira olhada no vagão, viu uma cena que nunca esperaria: ele estava praticamente vazio, havendo apenas a senhora que entrou e ele. Esse fato era uma impossibilidade total às nove da manhã. "Que dia mais maluco!", foi o que pensou.

Vasculhou os bolsos para ver se não tinha perdido nada na corrida. Enquanto verificava suas coisas, reparou que a senhora que o acompanhava na viagem estava olhando fixamente para ele.

- O senhor está bem? Parece que lhe falta ar.

Ele se virou para velha mulher e pela segunda vez no dia ficou sem palavras. O que o deixou chocado foi a maquiagem que ela usava. Não era daquelas maquiagens pesadas, até normais para senhoras daquela idade. Ela estava pintada, literalmente, de palhaça. Tinha, por baixo de uma espessa camada de tinta branca que lhe cobria todo o rosto, duas bolas vermelhas nas bochechas, havia coberto uma área muito maior que os lábios com batom e duas cruzes pintadas sobre os olhos completavam a figura.

- E então? O senhor está melhor? - insistiu a senhora
- Eu...eu estou bem. Ahn...a senhora...
- Sim?
- Desculpe perguntar. Mas por que a senhora está assim?
- "Assim", como?
- Com essa pintura no rosto...Desculpe, não quero parecer indiscreto ou muito curioso.
- Que pintura?
"Nossa! A véia caducou!", imaginou. Vendo que para ela estar com aquela pintura no rosto era normal, ele não quis mais tocar no assunto. Claro que não conseguiu desviar os olhos da senhora, o que passou a incomodá-la.

- Por que o senhor está me olhando desse jeito? E de que pintura está falando?

Ele não queria ser grosseiro com a senhora e, mesmo que fosse, tinha sérias dúvidas se ela ia compreender o que ia falar. Aproveitou que o trem parou na estação seguinte e desceu, apressado. "Chega de metrô! Vou pegar um táxi!" Era a solução para chegar menos atrasado e evitar o contato com mais gente esquisita.

Saiu da estação na mesma corrida que havia entrado. Saiu esbarrando nas pessoas, mas nem pensou em parar para desculpas. Praticamente se jogou na frente de um táxi que passava pela rua. Sem olhar para trás, abriu a porta traseira do carro e antes do falar bom dia foi logo avisando ao motorista:

- Toca pra Rio Branco, voando. Estou muito atrasado!
- O senhor manda, chefia. - respondeu o taxista.

Não se interessou em olhar para o motorista. Pegou a carteira e conferiu se tinha como pagar a corrida, e por sorte, tinha. O táxi seguiu pelo Aterro do Flamengo numa rapidez absurda, do jeito que ele pediu. A velocidade não permitia que ele visse as pessoas nas calçadas. Elas não passavam de borrões dispersos, o que era bom, pensou. Se pudesse não ver mais ninguém nesse dia turbulento, agradeceria a Deus.

- Muito atrasado, chefia? Posso ir mais rápido se o senhor quiser - falou o motorista repentinamente.
- Não, não...está bom - respondeu olhando a paisagem.
- O senhor não é muito de falar, né? Sabe...Todo mundo diz que taxista fala muito. E é verdade! As pessoas podiam ser mais compreensivas...A conversa é nossa única distração.
- Pois é - respondeu à reclamação do taxista com aquele tom de "a-conversa-acaba-aqui".
- Ah...O senhor não quer mesmo conversar, né?

Quando ele tirou os olhos da janela e foi responder ao taxista, não acreditou no que viu: o motorista estava dirigindo com os pés, mesmo não sendo deficiente. Ele guiava com destreza naquela posição esdrúxula, apertando com os dedos dos pés uns botões no volante, que deveriam ter a função dos pedais e do câmbio. Os braços estavam por cima do banco, sãos e fortes, como se ele estivesse dirigindo daquela forma para relaxar.

- Por que diabos você está dirigindo assim?!?! Ficou louco?!?! - berrou, já longe do seu estado normal.
- Mas....Foi o senhor que disse pra eu ir voando! - respondeu ofendido o taxista.
- Não é disso que eu estou falando, seu maluco!!! Pegue no volante com as mãos!
- Ué?!? Por que?!?!
- Como, "por que"?!?! Por que você está dirigindo com os pés???
- Qual o problema? - a confusão do motorista parecia sincera - Como o senhor dirige??? Tira os pés para guiar?

Ao falar isso, o motorista deu uma gargalhada altíssima, como se tivesse ouvido a piada mais engraçada do mundo. Ele já estava pronto para agredir o taxista quando ele repara que já está no fim do Aterro. Antes que fizesse uma loucura, pediu para o carro parar.

- Ora! Eu levo o senhor até a Rio Branco...
- Não precisa...É logo ali na esquina. - Olhou o taxímetro e pegou uma quantia aproximada na carteira. Jogou por sobre o banco do táxi e saiu, sem se despedir ou esperar o troco.

Desceu e voltou a sua já rotineira corrida. Se perguntou se todas as esquisitices que haviam acontecido com ele até aquela hora - e ainda não eram dez da manhã - não seriam uma praga do chefe dele, por seus constantes atrasos. Naquela parte do Centro, as ruas estavam vazias, até que ele alcançou a praça Mahatma Gahndi e a cruzou em direção à Cinelândia, repleta de gente. Chegou lá correndo, mas dessa vez, prestou uma certa atenção nas dezenas de pessoas que andavam. Viu um senhor de idade, calvo e com cara de político conservador, impecavelmente vestido, porém descalço e com os pés imundos. Depois passou voando por uma senhora, que devia ter uns bons setenta anos, vestida como uma normalista, com sainha, meia ¾ e lancheira, inclusive. Perto dela, um policial, paramentado com todos os equipamentos que um policial carrega, estava vestido de Pato Donald, e como o personagem, também não usava nada da cintura para baixo. O que mais o assustava era a tranqüilidade das pessoas diante de tão absurdos comportamentos. O mundo inteiro parecia haver enlouquecido e ele, diferente do resto das pessoas à sua volta, não tinha a menor idéia de como agir.

Entrou no prédio onde trabalhava e encontrou Agenor, o ascensorista, vestido de Super Homem. Nem comentou nada.

- Olá...O andar de sempre, senhor? - perguntou com um sorriso no rosto
- Claro, Agenor.
- Certo! Para o alto e avante!

Entrou no seu escritório e encontrou seu chefe sentado à sua mesa. Tinha uma cara inexpressiva e para deixá-lo mais apreensivo, não aparentava ter nenhum comportamento estranho. O mesmo terno sóbrio, o mesmo penteado antiquado e a mesma pasta 007, essa ao lado da mesa, no chão.

- Olá...Atrasado de novo, não? - Disse o chefe, mais jovialmente do que jamais vira
- Chefe...Se eu contar o que passei hoje, o senhor não vai acreditar...
- Sei disso, sei disso. É por isso que agora tenho outras formas de impor a disciplina aqui na firma. Você será o exemplo, por estar sempre atrasado.

Assim que terminou de falar, o chefe levanta da cadeira empunhando um machado, que estava escondido por baixo da sua mesa. Ele não estava crendo no que via, mas diante das circunstâncias, achou melhor correr. O chefe deferiu um golpe e errou por muito pouco. Tinha dado muito azar: porque logo o chefe dele havia virado um louco perigoso?

Correu até o corredor do prédio e apertou o botão do elevador. Não pode esperar por muito tempo. O chefe logo havia surgido na porta, com a mesma cara inofensiva e com o mesmo machado ameaçador. Ele desistiu da espera e voou em direção à saída de emergência. A porta, para sua sorte estava aberta. Ele entrou e rapidamente a trancou por dentro.

Mas a sorte dele durou muito pouco. Ao fechar a porta, ele tentou dar uns passos pelo escuro e notou, da pior maneira, que não havia onde pisar. A saída de emergência levava a um precipício.

26.8.03

O Banho


A água quente do chuveiro ajudou Elaine a relaxar. Imediatamente ela lembrou do que o seu cabeleireiro falou sobre a temperatura da água com a qual ela costumava lavar os cabelos. Ele sempre reclamava que no inverno, banho escaldante é um terror para o couro cabeludo, escamava a pele toda e pronto, eis a caspa. Elaine lembrou que tinha que colocar na lista de compras o shampoo de lavagem profunda. E logo depois se recriminou desses pensamentos. Pensar em vaidade numa hora dessas era horrível.

Não se apressou no banho. Sabia que todos a esperavam na sala, mas esse era seu primeiro momento consigo mesma desde...quando mesmo? Nem ela se lembrava. Desde que o estado do Rogério se agravou, todos sempre estavam à sua volta, se não para confortá-la, para estar próximo ao marido doente. Ela sabe que alguns eram sinceros no apoio que ofereciam, eram realmente seus amigos. Outros, infelizmente a maioria, eram aqueles que estavam por perto para, de alguma forma, se aproveitarem do espetáculo que se tornou a doença do esposo. Era inevitável. Ser casada com um homem famoso tinha suas desvantagens.

Desde o dia em que descobriu que sua morte era questão de tempo, Rogério havia se decidido a não ser um moribundo de hospital, não queria ser uma dessas figuras esquálidas, andando de bata, expondo de forma mórbida sua morte lenta. Ficaria em casa. Tinha dinheiro para transformar seu lar em uma UTI, se assim desejasse. E em casa, conseguiria também manter a imprensa afastada por mais tempo. Os repórteres até que demoraram a descobrir o que havia com Rogério. Isso talvez tenha prolongado um pouco sua saúde.

Elaine se ensaboava com cuidado, aplicando delicadamente o sabonete líquido na esponja, sem pressa. Queria se limpar dos flashes dos paparazis que a perseguiram nos últimos meses toda vez que ia ao supermercado, se livrar do cheiro dos falsos apertos de mão e dos abraços dos amigos de ocasião que lhe impregnava a pele. Ela sabia exatamente quem eram os - muitos - urubus de defunto e quem eram os - raros - amigos que estavam do outro lado da porta do banheiro. Nesse momento, ela não queria ver nenhum deles. Nem os que vieram para aparecer nos jornais com seus Ray Bans pretos nem os que vieram confortá-la.

Saiu do chuveiro e se secou com o mesmo cuidado com que tomou banho. Lembrou-se de como Rogério, ainda são e forte, a secava, também lentamente, mas com força, quase arranhando sua pele. E gostava de ver a pele dela vermelha, dizia. Muitas vezes, terminavam fodendo ali mesmo, no banheiro, o que os obrigava a tomar outro banho.

Eu era feliz. - Pensou Elaine.

Colocou o roupão dado de presente pelo marido em um tempo em que ambos eram felizes. Se olhou no espelho defronte a pia e viu o quanto os últimos acontecimentos haviam acabado com ela. Estava sem cor, com olheiras. Amarrou os cabelos num coque, do jeito que Rogério adorava, deixando a mostra seu longo pescoço. Pegou o perfume que ela adorava colocar porque ele adorava sentir seu cheiro nela. Desistiu. Pegou a loção pós-barba dele, que estava pela metade e agora dificilmente passaria dessa marca. Queria estar com o cheiro dele no corpo. Passou pelo corpo a loção e vestiu o vestido preto que ela nunca esperou usar. Se olhou no espelho, se viu pela primeira vez como viúva e chorou.

Elaine secou as lágrimas, abriu a porta e saiu, pronta para sua nova realidade.

19.8.03

Exemplo


Faça o que eu digo, não faça o que faço. Digo isso com propriedade. Sou dessas pessoas que recheiam o inferno, cheio de boas intenções. Mas não me peça para realizá-las. Siga meus conselhos, é o meu conselho, mas não me tome nunca como exemplo. Sou fraco, completamente viciado em vícios.
Aliás, não gostaria de servir de exemplo nunca. Nem que eu fosse um poço de virtudes. Vejo os exemplos de pessoas exemplares. A expressão servir de exemplo muito raramente é benéfica para quem foi o alvo dela. Geralmente, os exemplos são realmente alvos: de tiros, vinganças, punições. Não. Eu não quero ser exemplo. Não quero a responsabilidade de guiar ninguém, nem pela trilha da vitória nem pelos becos da derrota. Sigo assim, mestre dos meus defeitos, mas apenas meu mestre.

Não procuro seguidores.

18.8.03

Desistência


Não desisti, estou apenas ocupada
Não desisti, estou preso no engarrafamento
Não desisti, estou estudando pras provas
Não desisti, isso é mostrar o meu valor
Não desisti, quero que sintam minha falta
Não desisti, estou sem inspiração
Não desisti, o governo é que me atrapalha
Não desisti, apenas não compactuo com isso
Não desisti, tenho a vida toda pela frente ainda

Desistir não é coisa de macho
Desistir é pros covardes
Desistir é mostrar fraqueza
Desistir é trair meus ideais
Desistir é ir contra minha natureza
Desistir é uma merda
Desistir não está nos meus planos
Desistir nunca; render-se jamais!
Desistir é morrer

Quanto a mim
Desisto quando assim me aprouver
Não sou afeito a pontas de facas
Os socos que eu dou eu escolho onde

Eu não desisto, é o que dizem
Quero ver o culhão pra aguentar
Quero ver a coragem em suas caras
Quero ver não encherem o saco
Quero ver sua teimosia
Quero ver a falta de tino

Agora, vai.

14.8.03

Duas histórias telefônicas



- Hmmm...Não adianta ligar pra mim que eu não estou em casa.
- Nem em sonho eu ligaria para você.
- Que isso! Não seja tão radical, amor. Já que começamos num papo telefônico, que tal me dar o seu número?
- Começamos o que? Eu nem te conheço, amigo!
- Hmmm... Amigo. Como pode não conhecer um amigo? Não é bem o que eu queria, mas já é um começo...
- Sai fora, cara...
- Me dá seu número que eu saio.
- Eu não tenho telefone.
- Serve o número do celular que você está usando agora.
- Meu fone tá cortado.
- Eu pago a sua conta...
- Você não desiste?
- Nunca.
- Bom...Jura que você sai fora se eu te der meu número?
- Se você prometer me atender, eu juro.
- Tá bom. Tá aqui.
- Hmmm...Bárbara. Nunca vi um nome tão condizente com seu dono.
- Olha. Você prometeu ir embora. Estou esperando um cara.
- Tá bom, tá bom, eu vou. Você vai me atende, né?
- Vou, agora sai fora. Antes de ir, uma coisa. Melhore seu repertório de cantadas. Ele é horrível.
- Você me ensina umas novas quando eu te ligar.
- Tá bom.

(Dia seguinte)

- Alô?
- Alô? Bárbara?
- Ahn...Não. Aqui é a Judith.
- Judith? Não é a Bárbara?
- Não tem nenhuma Bárbara nesse telefone.
- Jura? Não é você Bárbara??? Você prometeu falar comigo.
- Não...Aqui é a Judith, já disse. Que número você ligou?
- 9999-8877
- É esse mesmo. Mas eu não conheço nenhuma Bárbara...
- Você deve ter me dado o nome errado e não se lembra...eu sou aquele cara...
- Não. Eu nunca faria isso. Aliás, prum cara chato como você, eu daria um fora logo.
- Que isso, Judith!!! Eu fiz algo pra te deixar tão chateada assim?
- Não, mas você está me incomodando. Até mais...
- Não desliga, Ju...Vamos conversar...Esquece essa tal de Bárbara e vamos falar de nós. Você mora onde, Ju?
- Não me chame de Ju! Não te dei essas intimidades! Eu nem te conheço, amigo...
- Hmmmm...Amigo? Como pode não conhecer um amigo? Não é bem o que eu queria, mas já é um começo..

(***)

- Como assim, "terminar"??? Nós começamos a namorar essa semana!
- Não interessa. Você não se preocupa o bastante comigo.
- E em uma semana você descobriu isso? Olha, nem estou discordando...Mas queria saber que diabos eu fiz pra você pensar isso de mim.
- Porra. A gente se conhece há um mês e você repetiu cinco vezes uma coisa detestável.
- CINCO VEZES?!?! O que foi, afinal de contas?!?!?
- É a quinta vez que você perde meu telefone...
- Ahn?
- É isso o que você ouviu. Você perdeu meu número 5 vezes em um mês...
- E não sei o que é mais ridículo. Você contar esse tipo de coisa ou achar isso relevante o bastante para terminar um namoro.
- O fato em si não é relevante. Mas isso me dá uma mostra do que você é. Se você em um mês não conseguiu decorar o número da sua namorada....
- Ah, deixa de ser boba! Se você me conhecesse melhor, saberia que eu tenho uma memória péssima pra números.
- Sei, sei...garanto que você sabe de cor quanto foi o último Fla x Flu...
- 5 x 2, num esculacho do mengão...Gols de...
- Tá vendo, tá vendo!!!
- Merda! Futebol não vale! Se você me conhecesse melhor, ia saber que a única coisa que eu sempre decoro são as estatísticas do meu time.
- E daí a gente percebe quais são suas prioridades...
- Que bobeira isso tudo! Quer dizer que, se ao invés de te pedir o número eu ligasse pro 102, nós não estaríamos tendo essa conversa?
- Provavelmente não...
- Tem certeza que quer terminar um namoro porque eu não peguei a lista telefônica?
- Tenho...
- Se é nesses termos, beleza. Vou embora...
- Pode ir, pode ir...E nem adianta me ligar depois!
- Ah, pode deixar...Eu não sei seu número mesmo....

12.8.03

Herói


O sujeito na frente do herói, sujo, gordo e mal vestido, quem diria, era seu carcereiro. Apesar da revolta, nosso herói não se abateu. Sabia que no momento propício, fugiria da cadeia e esse seria o primeiro a morrer.

- Tira a roupa. Inteira. Até as meias e a cueca.

Nosso herói tirou e teve que se sujeitar a um revista pra lá de minuciosa. O herói queria esmurrar o carcereiro ali mesmo, naquele momento. Não seria uma atitude muito inteligente, havendo um guarda armado ali. E se tinha um defeito que nosso herói não tinha, era estupidez.

- Você vai ser o primeiro a morrer - disse o herói
- Vamos ver - respondeu o carcereiro, rindo e batendo na protuberante pança.

O carcereiro conduziu o herói pelos corredores fétidos da cadeia, segurando-o pelo pescoço, um guarda escoltando ambos. Enquanto o rotundo agente penitenciário abria a cela, nosso herói observou o infecto cubículo: 3 x 3, escuro e repleto da escória da sociedade. Umas 20 pessoas se amontoavam num lugar que seria pequeno para 5. O herói foi jogado dentro da cela, com um safanão.

- Se acomoda aí, meliante. Vai pensando em como acabar comigo - o carcereiro riu novamente, mostrando os dentes falhos e amarelos.

Nosso herói dirigiu-lhe o olhar mais malévolo que podia. Depois olhou do alto para seus "companheiros" de cela, demonstrando claramente que não pertencia ao grupo formado. Ele logo sairia dali. E não iria se misturar com tal gente. Encontrou uma brecha no mundo de gente que estava dentro da cela e sentou-se no chão, sem abrir a boca.

Pegou um cigarro pôs na boca. Não tinha isqueiro, mas não pediu fogo a ninguém. Um cara baixinho e desnutrido, visivelmente nordestino, ofereceu fogo ao nosso herói. Sem falar nada, o herói pega o cigarro acesso do magrelo e acendeu o seu, encostando a brasa no seu cigarro apagado.

- E aí, cara? Tá na jaula por que?

Nosso herói olhou com asco para o preso. Se dignou a responder pelo favor feito por ele.

- Por uma traição...que será vingada em breve, assim que eu sair daqui.
- E você acha que vai sair daqui em breve?
- Eu não acho. Eu vou.
- Você é muito marrento, sabia, mermão?

Quem disse isso foi um negro forte, mais de dois metros de altura. Nosso herói olhou para ele como se ele não passasse de um inseto. Acabara de encontrar um substituto pro carcereiro. Esse seria o primeiro a morrer.

- Ah...Sou?
- É sim. É melhor tu abaixar a bola, amigo.
- Eu não sou seu amigo, e muito menos seu irmão. E se eu fosse você, ficava quieto.

Ao ouvir isso, os presos em volta do nosso herói se afastaram dele, como um bando de ratos diante de um gato. O herói sentia o cheiro do medo deles, e sentiu ainda mais nojo daquelas pessoas, que além de criminosas, eram covardes. O negro se aproximou do nosso herói, que se levantou.

Mas, antes de estar de pé, nosso herói levou um murro no meio do rosto, que o jogou direto na parede. Ele ficou atordoado, e não esperava por isso. Antes que conseguisse se aprumar, o negro acertou-lhe um soco no estômago, que o jogou definitivamente no chão. O herói estava tonto, a visão estava turva e a gritaria dos outros presos não o ajudava em nada para recuperar o equilíbrio. A joelhada no rosto, levada em seguida, foi o tiro de misericórdia. Nosso herói, estava ao chão, prestes a desmaiar. A última coisa que nosso herói sentiu foi a aproximação do negro e seu pé, esmagando sua traqueia, como se fosse feita de papelão.

O corpo do nosso herói foi tirado da cela horas depois, quando já estava prestes a feder. O carcereiro, exibindo seus dentes podres, veio rindo. Já sabia qual seria o destino do "corajoso".

- As vezes, confiança demais faz mal - pensou, rindo, o carcereiro - As vezes, o "herói" morre no começo da história...

4.8.03

Beleza



- Eu falei que ela retornaria aos 20 anos.
- E o que ela disse?
- Ora, minha filha....Ela disse amém! Que mais ela poderia falar?

Era triste para um estrela do porte de Diana Serpa ter esse diálogo numa clínica vagabunda, se preparando para uma sessão da mais nova substância rejuvenecedora do mercado. Para ela, que já havia sido a triz televisiva mais famosa do país, aquilo era o fundo do poço: ter que se sujeitar a estampar com seu rosto um outdoor numa rua escondida de Botafogo em troca de um paliativo contra as marcas do tempo. Daí para baixo, Diana não sabia mais o que poderia acontecer. Pelo menos diziam que os efeitos da nova droga eram melhores que os do botox.

Como era de se esperar, Diana tinha aquela vaidade que só quem sofreu anos com o assédio de fãs e jornalistas pode ter. O estrelato tinha sido um fermento para seu ego, que não era dos menores. Sua beleza clássica lhe rendeu fama e dinheiro. Se tinha talento? Bem, talento é uma outra história. Ela sabia que enquanto mantivesse a boa forma ainda estaria em voga. Se dissessem a ela que, apenas 6 anos depois de ser considerada a quarentona mais bonita do Brasil - ela já contava com 43 anos, mas isso era um segredo de estado - teria uma derrocada tão grande, Diana daria uma daquelas gargalhadas de novela na cara da pessoa.

- Ah, os cinquenta....Que merda! - Pensava.

Voltou para casa, o rosto meio dormente pelas agulhadas. Sabia que a pequena recauchutada iria ajudar. Já tinha até um plano. Depois de dois dias, iria visitar Carlão Moreno, velho diretor de TV e um dos manda-chuvas daquela grande emissora. Ele sempre tentou ter um casinho com ela. Infelizmente, para ele, quando ela não precisava de ajuda e quando ele, mesmo que Diana precisasse, não poderia fazer muito. Mas agora, os tempos eram outros. E se ela precisasse fazer uma segunda chamada no "teste do sofá", melhor que fosse com alguém que tivesse algum real interesse nela.

Não quis se olhar no espelho, não naquela hora. Já estava cansada de ver algo desagradável quando via seu próprio reflexo. Agora, em pouco tempo, ela estaria bela de novo. Como diziam - no seu tempo? - em pleno viço.

Acordou no dia seguinte e antes de abrir os olhos já estava se apalpando. Viu que não estava inchada e foi logo colocando uns cremes recomendados pelo esteticista homossexual que a atendeu na clínica. Tomou uma ducha, sem molhar o rosto, ainda empastelado pelos cremes. Saiu do banho feliz. Viu seu rosto no espelho, branco com as pastas, e escovou os dentes. Queria que o creme ficasse o máximo de tempo possível agindo. Colocou um vestido sexy e se achando já preparada, resolveu visitar o Carlão nesse dia mesmo. Ligou para ele, marcando a visita. Ele já estava agindo como uma raposa velha da televisão, deixando Diana esperando uns cinco minutos no telefone e depois perguntando "quem era mesmo?" , como se tivesse se esquecido da mulher que faria de tudo para levar para cama a menos de 2 anos.

Ele tinha uma agenda muito cheia hoje - "sabe como é vida de diretor!" disse ele, arrogante - então ela tinha cerca de uma hora para chegar no seu escritório. Tinha que correr, não queria dar motivo para ver a porta fechada na sua cara por causa de alguns minutos atrasada. Pegou um kleenex e foi tirando a máscara facial no elevador mesmo, e foi correndo para o carro. Foi pelo espelho retrovisor que viu pela primeira vez os efeitos do nova substância . Não estava como esperava, pelo menos no pequeno pedaço de rosto que via toda ver que olhava para o retrovisor. Talvez tivesse sido melhor esperar os dois dias mesmo. Mas agora não tinha mais jeito. Já tinha marcado com o Carlão e não adiaria mais sua volta ao sucesso.

Chegando nos estúdios onde Carlão tinha seu escritório, se viu inteira pela primeira vez: o reflexo no espelho do elevador mostrava que ela estava, se não com a mesma cara, podia estar até um pouco mais cansada, com mais rugas que antes. Se desesperou. Mas não poderia fugir. Havia chegado à sala do Carlão.

A secretária a anunciou e depois disse que esperasse um pouco. Ela sabia que Carlão faria isso, era o comportamento típico de quem tem o poder de ajudar alguém como ela. Ficou lá, pensando se deveria mesmo fazer isso com a cara que estava. Não tinha mais como recuar. Seria uma afronta para o "grande diretor" e essa porta estaria definitivamente fechada se ela fizesse essa desfeita.

- Diana, minha querida! Você está linda!!! Entra, entra! Desculpa te fazer esperar...Vida de diretor, sabe como é!

O chavão proferido como uma forma de autoafirmação irritava profundamente Diana. Carlão estava mudado. Mais calvo, mais gordo e muito mais repugnante do que era. Se soubesse que teria que passar por essa situação, teria tido o casinho com ele naquela época. Pelo menos ele tinha cabelos, anos atrás.

O encontro tinha sido horrível. Carlão parece que não tinha perdido sequer uma fração do interesse em Diana, apesar de ter à sua disposição milhares de garotinha tenras e durinhas dispostas a tudo para ter uma chance na TV. Os dois saíram para almoçar e depois aconteceu o final mais previsível para a trama: foram para um motel. Apesar dela se sentir lisonjeada pela vontade demonstrada por Carlão, bastava ela olhar para o espelho no teto para se ver feia e pior, se sujeitando a outra humilhação, ao transar com um homem que não a interessava em absoluto. Conversaram sobre seu novo futuro televisivo depois da cópula.

- Queria muito, muito mesmo, te ajudar, Di...E até posso. Só não sei se você vai querer essa ajuda.
- Não me chame de Di, que eu detesto - "olha a intimidade desse porco" , pensou - Fala que ajuda é essa, que eu te respondo se aceito ou não.
- O elenco da próxima novela já está fechado, meu bem. Só sobrou um papel, a da vilã...
- Não é muito meu estilo, mas eu topo...
- Calma, Di...Eu não terminei. O papel sobrou porque a Zora Assumpção não aceitou. A personagem deve ter uns 40, 45 anos. E ela tem uma filha adolescente. Não sei se se encaixa com seu perfil...

Ela estava aturdida. Não sabia se ele estava sendo irônico, ou se ele realmente achava que ela não aparentava ser a mãe de uma adolescente. No fundo, ela não queria ser a vilã da história. Não sabia se seus fãs, acostumados com seus papéis de heroína, gostariam de vê-la fazendo maldades na tela. Mas isso era até suportável, e se atuasse bem, poderia ser uma volta por cima triunfal. Com certeza a mudança de perfil faria com que as capas de revistas voltassem a aparecer. Mas o lance da filha adolescente, realmente a preocupava. Não queria, de forma alguma, se associada a imagem de mulher de meia idade.

- Não tem nenhum outro papel, Carlão?
- Não, Di. Não um que se encaixe com você. Se você topar fazer a vilã, está tudo certo. Você começa a ensaiar amanhã mesmo.

Era um dilema. A necessidade de voltar à TV era enorme. Mas se vendo deitada, ao lado de um cara que a enojava, vendo seu corpo lentamente se degradar, suas carnes ficarem flácidas e as rugas que o tempo se encarregou de por em seu rosto a fizeram tomar a decisão. Já que ela sabia que sua decadência era uma realidade, não deixaria que seus fãs percebessem isso.

- Não, obrigado. Você só me ofereceu esse papel por despeito. Está me achando velha.
- O que?!? Claro que não, Di... Você está ótima! Não aparenta a idade que tem. Você está com quanto? 45?
- Só um sujeito ridículo como você faria esse tipo de pergunta para mim. Não preciso da sua esmola nem da sua irônia. Sei que estou velha. Olhe para o teto. Pode tentar me enganar, mas o espelho não mente. Você já conseguiu sua trepadinha com seu antigo fetiche. Não vai conseguir minha gratidão por causa desse papelzinho de merda.
- Que isso, Di...Você está sendo grosseira. E eu realmente acho...
- Não quero saber o que você realmente acha. E, pela última vez, nunca mais me chame de Di.

Diana pegou suas roupas, se vestiu e saiu, ignorando os argumentos do Carlão. Ele jurou que era verdade que estava achando ela remoçada, mas ela não lhe deu ouvidos. Voltaria à clínica e veria o que ia fazer de efetivo para parecer mais nova. Seu rosto, retocado por programas de computador, já estava na outdoor da clínica. Ela queria ter o mesmo rosto nela.

(...)

- Mas você está ótima, Diana.
- Pare, Walter. Eu não sou cega. Quero uma retocada total. A primeira sessão não adiantou nada, estou me achando até mais velha.
- Você está paranoica, honey... Você rejuvenesceu uns 15 anos!
- Mentira! Quero mais uma sessão.
- Mas você não precisa!
- Walter... Eu quero outra... Agora!

Walter já tinha visto outras clientes reagirem assim, mas nunca tão rápido e nunca com tanta veemência. Achava até arriscado ou nova sessão assim, tão em cima da outra. A beleza que Diana havia recuperado poderia se perder, se o efeito do substância ficasse muito artificial, pelo exagero. Mas ela estava irredutível. Faria a aplicação, já que ela fazia tanta questão.

- Diana, eu acho que você está ótima. Mas se você acha que precisa...
- Eu não acho. Eu preciso.
- Tudo bem. Mas se ficar artificial, a culpa não será minha. Você já é uma mulher madura, e mesmo que esconda muito bem a sua idade, as pessoas têm uma noção de quantos anos você tem. Não adianta você ficar com a aparência de uma menina de 20 anos.
- Eu estou com cara de 60, e não de 20. Chega de papo e pegue as agulhas.

Walter fez as aplicações, muito a contragosto. Disse para ela repousar e que dessa vez ela esperasse o efeito antes de tomar alguma atitude impensada. Recomendou que o chamasse para avaliar os efeitos da nova aplicação. Ele iria direto para casa dela, assim que ela ligasse.

No dia seguinte, Diana acordou e seguiu o mesmo ritual dos cremes. Dessa vez, deixou que eles ficassem o tempo que Walter havia recomendado, deixando que eles tivessem o atuação necessária. Ouviu os recados da sua secretária eletrônica e ouviu uma mensagem do Carlão. Queria falar com ela novamente, com calma. Pediu que ela entrasse em contato com ele. Ela voltou para cama, ignorando o recado. Dormir a deixaria mais calma e seria bom para sua pele.

Acordou algumas horas depois e foi direto ao espelho. Tirou o creme do rosto e teve um choque: estava encarquilhada, com os olhos rodeados por pés-de-galinha e com todas as marcas de expressão impressas como navalhadas no rosto. A visão aterradora quase a matou de desgosto. Resolveu que se tinha que matar alguém seria o Walter, que deve Ter feito algo de errado na aplicação. Iria ligar para ele imediatamente, e se ele não conseguisse dar um jeito naquilo, trucidaria "aquela bicha louca" com as próprias mãos.

- Walter!!! Venha imediatamente aqui pra casa. Algo deu errado. Traga as seringas.
- Anh? Diana? O que houve, meu amor? Fala...
- Cala a boca, Walter. Vem pra cá AGORA...

Walter sabia que essa reação seria possível. Imaginou que ela devia estar se achando muito esticada, nova demais para sua idade. Levou as seringas só para deixá-la menos nervosa e também uma revista dos anos 70 com ela na capa. Compararia a foto com o reflexo no espelho e convenceria que era melhor ser uma mulher de meia idade com cara de adolescente que uma garota com cara de velha.

Ao chegar no apartamento da Diana, se espantou com ela. Por baixo da cara enfurecida dela, via que ela estava maravilhosa, tão bonita quanto era há décadas. Sentiu um orgulho imenso daquilo, que decididamente era sua melhor criação. Com aquela exuberância, em breve ela estaria de volta à TV e ele iria ficar rico com ela, seu melhor mostruário.

- Walter!!!! Olha o que você me fez!!! Eu estou horrenda!!!
- Como assim horrenda? Nunca vi você tão bonita como hoje! Eu te transformei numa obra-prima!!!
- Obra-prima?!?!?! Olha essas rugas, seu viado! Trate de dar um jeito nisso ou eu te mato!!! Eu juro!!!!
Walter não entendeu o porque da brincadeira. Ela estava linda como há muito e vinha com esse papo de que estava velha? Não se via sequer uma ruga em todo o seu rosto. Ficou assustado. Diana nunca primou pelo talento, mas aquela representação de ódio estava perfeita. Dava até medo.

- Trouxe as seringas?

Walter queria ver até onde ia o delírio da Diana. Mexeu na maleta e invés das seringas, pegou a revista que tinha guardado para esse momento.

- Olha aqui, Diana. Você está mais bonita que nessa revista. E aqui você não tinha nem 25 anos! Nunca vi um tratamento dar tão certo como o seu.
- Você está cego ou está brincando comigo, sua bicha? - Diana estava completamente possessa, agarrando Walter pelo braço com muita força - Em que me pareço com essa foto? Nem parece que sou eu, ou parece que tirei essa foto há 50 anos!

Walter se desvencilhou do aperto e levou Diana até o espelho que cobria uma das paredes da sua sala. Encostou a revista ao seu rosto e apontou no reflexo.

- Diana, você está com algum problema. Olha a foto! Olha seu reflexo. Na foto você já começa a ver uma ou outra ruguinha aparecendo. Você agora está perfeita!
- Não!!!! Você está cego!!! Você vai me aplicar outra sessão agora...
- Nunca! Você está louca! Tem que procurar um tratamento. Eu me recuso a estragar um rosto tão belo...

Diana não conseguia ver o mesmo que Walter. Dando um empurrão no esteticista, correu até o quarto e voltou com uma arma.

- Walter. Eu não posso ficar com essa cara idosa. Não mesmo. Você vai aplicar outra sessão em mim, nem que eu tenha que te dar um tiro.
- Diana... Você não está bem. Precisa de ajuda, urgente....
- Sei que preciso. E é você quem vai me ajudar. Coloca agora...Prepara as seringas. Já.

Walter não sabia se Diana falava sério ou não, mas não queria pagar pra ver. Se ela não conseguia ver que estava na melhor das formas, azar o dela. Preparou as doses, a instalou numa poltrona confortável e começou as aplicações. Se sentia como um estudante de pintura retocando a Mona Lisa. Era um pecado mexer em algo tão perfeito como o novo rosto da Diana. Sabia que corria o risco de ser morto por aquela maluca, se o resultado final não a agradasse, mas mesmo assim, movido por uma curiosidade implacável, decidiu que ficaria até ver o efeito final daquela dose extra. Para evitar que ela ficasse muito agitada com a expectativa dos resultados, ministrou em Diana um calmante, sem que ela percebesse.

Depois que Diana adormeceu, Walter ficou um tempo olhando para ela, procurando entender o que se passava naquela cabeça. Por que será que ela não conseguia ver sua própria beleza e por que a fixação em dizer que estava velha, quando o oposto era evidente? Diana podia se considerar uma felizarda. Apesar de aparentar agora ter uns 20 anos a menos do deveria, ela não estava nem um pouco ridícula, como aquelas peruas loucas por uma cirurgia plástica que parecem uns Frankesteins, com corpo de 60 e carinha de adolescente.

O esteticista se perguntou se a tal nova substância havia sido suficientemente testada antes de ir a público. Walter nunca soube de um caso de efeito colateral, e certamente o medicamento não teria uma contraindicação como essa, de fundo psicológico. Sim, de fundo psicológico, porque o caso da Diana era de loucura. Walter pensou em pesquisar sobre isso no dia seguinte, antes de cair no sono.

(...)

Walter foi acordado abruptamente com um grito. De um pulo, levantou, temendo pela arma que deveria estar na mão da Diana essa hora. Correu até o quarto da atriz e a viu chorando, diante do espelho. Ela estava, inacreditavelmente, mais bonita que na noite anterior.

- Agora não tem mais jeito, Walter. Você e essa merda que você colocou na minha cara acabaram com a minha beleza - falou Diana, entre um suspiro e outro.

Walter não conseguiu responder. Não por causa da loucura evidente da mulher, mas porque estava extasiado pela sua beleza. Nunca, em toda vida, havia visto uma mulher tão linda. Por um momento, ele se viu apaixonado por Diana, ignorando sua tendência sexual, definida há tanto tempo.

- Diana...Você...- balbuciou
- Eu o que, Walter? Eu estou acabada. Não há mais nada a se fazer....

Antes que Walter pudesse sair do seu transe, Diana apontou a arma que segurava na boca e disparou. Depois do estampido seco, imperou o silêncio no quarto.

(...)

Diana gostaria de ver seu próprio velório. Milhares de fã e alguns poucos amigos apareceram à concorrida cerimônia fúnebre. A imprense marrom, sedenta por escândalos, cobriu o acontecido com alarde. Depois de tanto tempo, Diana Serpa voltava às primeiras páginas. Infelizmente, não da forma que ela desejava.

Um dos jornalistas presentes encontrou Carlão, o diretor de TV, que, de óculos escuros, chorava discretamente em um canto da capela. Vendo que ele era a personalidade mais famosa do recinto, foi entrevistá-lo.

- Então, Sr. Carlão. Quando foi que o sr. viu Diana pela última vez?
- Foi anteontem. Estou chocado. Não consigo acreditar no acontecido.
- E sobre o que tratou o encontro? Um papel para a estrela na próxima novela?
- Isso, isso. Estávamos negociando.
- Uma perda incrível, não?
- Com certeza. Diana tinha um talento incrível. E estava bonita como nunca.
Com certeza, com certeza. Bem...obrigado, Carlão.
Claro, claro...Não foi nada.

Ao fim da entrevista, os dois continuaram conversando.

- Realmente, fazia tempo que a Diana não aparecia, não tinha como sabermos como ela estava em forma.
- É. Mas eu sou um diretor que sempre procura o melhor pra minha programação. Sabia que Diana estava linda. Ia ser a volta por cima dela.
- Muito azar. Mas por que diabos será que ela, quando ia ter seu retorno triunfal, meteu uma bala na cabeça?
- Não faço ideia...
- Bom...Pelo menos o enterro está lotado. Ela teria gostado disso. E, apesar de ter estourado os miolos, manteve o rosto intacto...
- Pois é. Ela está linda. Mais linda do que nunca. Não parece ter mais que 20 anos...

23.7.03

Autoconhecimento


O desaparecimento do Dino começou ser notado apenas depois da sua terceira semana. Todos o seus amigos sabiam que ultimamente ele era dado a esses sumiços misteriosos, mas ele nunca tinha ficado tanto tempo sem dar notícias. Ele sempre fora o "louco da turma", então suas atitudes estranhas eram esperadas por todos. Essa foi a razão pela qual ninguém se preocupou tanto com sua ausência.

Depois que Dino começou a fazer análise - para "se conhecer melhor", dizia - seu comportamento excêntrico foi mudando gradativamente. Para melhor, todos achavam. Se antes eles era o doidão imprevisível, que preocupava a todos, agora eles estava mais sereno. Suas loucuras, teoricamente, não eram mais aquelas que poderiam feri-lo, como em outros tempos. Sua busca pelo autoconhecimento fez com que ele abandonasse seus hábitos destrutivos, tornando-o mais contemplativo, recolhido. Os céticos da turma apostavam que isso era uma fase, quem em breve ele voltaria a fazer as mesmas merdas que sempre fez. Mas, para surpresa e alívio de todos, Dino mantinha-se direito por um tempo maior do que todos julgavam. Ele trocou seus atos tresloucados por viagens que sempre fazia sozinho, justificando que precisava meditar. "Meu terapeuta recomendou", era a desculpa. Essa era a explicação para seus sumiços repentinos, que se tornaram uma constante. Nunca ia para lugares agitados ou para cidades cartões postais. Preferia os lugarejos remotos, se possível que não tivessem nem uma mísera pousada. Pegou gosto por acampamentos, onde era mais difícil de encontrar pessoas que atrapalhassem seu retiro.

Todos seus amigos o achavam realmente mais centrado, pacífico. Isso era bom para ele, claro. Mas para dois ou três de seus amigos mais íntimos, ainda havia "aquele" brilho nos olhos do Dino, um brilho que apesar de esmaecido, indicava que nem tudo estava bem, que o velho Dino insano ainda estava lá, apenas descansava, entediado, devido a falta de ação imposta pelo seu novo comportamento.

E foram esses amigos íntimos que acharam muito estranho tão longo sumiço. Suas viagens não duravam nunca mais de uma semana, e na volta ele adorava encontrar toda a turma para mostrar seus avanços em sua trilha de autoconhecimento. Nem no curto período em que pensou em seguir sua carreira por formação, a medicina, ele desapareceu por tanto tempo. Na segunda semana sem aparecer, Sandro, seu amigo mais íntimo, começou a procurá-lo, ainda sem alarde. Ligou para seus familiares, para seus outros amigos e ninguém sabia o destino do Dino. E foi então que, na terceira semana desaparecido, Sandro resolveu ir até à casa do amigo.

A campainha insistentemente tocada não surtiu efeito. Não sabendo bem a razão, Sandro sentiu que algo não estava certo, que de alguma forma, Dino tinha aprontado uma das suas. Sandro encostou o ouvido na porta e não ouviu nada, a principio. Manteve-se na posição mais alguns segundos e distinguiu, quase imperceptível, um ruído conhecido, mas que ele não conseguia identificar. Fechou o outro ouvido e prestou atenção por mais uns momentos. Para seu horror, depois de apenas um segundo ele reconheceu o barulho por trás da porta trancada e não teve dúvidas: arrombou-a com um chute.

As moscas que infestavam o apartamento zumbiam incessantemente, a origem do ruído. Andando até o quarto do Dino, Sandro sentiu o cheiro insuportável de carne em decomposição. Encontrou o corpo do amigo estirado na cama, parcialmente esquartejado, sem as duas pernas e sem um braço. A cena chocante foi demais para Sandro, que já nauseado pelo forte odor de morte, correu ao banheiro e vomitou.
Tentando se recompor, Sandro lavou o rosto, bebeu um pouco de água e juntando o que lhe restava de coragem, voltou ao quarto. Com as ideias mais claras e ligeiramente mais calmo, Sandro pode notar o que havia de estranho na já surpreendente cena. Apesar de estar retalhado, o corpo de Dino não tinha machas de sangue: os cortes em seu corpo estavam enfaixados, o que levava a crer que o objetivo de quem quer que tenha retalhado seu amigo não era matá-lo com isso. Ele estava vestido e não havia sinal de luta ou dos seus membros decepados. Se aproximando da cama, Sandro pode ver que Dino tinha uma caneta nas mãos e que um bloco repousava no chão, ao lado da cama. Perto do bloco, tigelas com restos de algum tipo de sopa rala e mal cheirosa que as moscas tentavam acabar. Sandro pegou o bloco e reconheceu a letra do amigo, apesar da escrita tênue e imprecisa.

Sandro guardou o bloco no bolso e resolveu de uma vez por todas chamar a polícia. Não sabia mais o que fazer diante do corpo do amigo. Esperou os policiais chegarem, respondeu todas as perguntas feitas por eles e foi para casa, sem mencionar o bloco que havia guardado. Sabia que naquelas anotações poderiam estar pistas sobre quem fez aquilo ao Dino. Sabia também que ele poderia se meter em problemas ao ocultar tão importante objeto, mas tinha que ler o que ele escreveu antes de qualquer pessoa.

Tomou um banho gelado assim que chegou em casa. Tentou, inutilmente, tirar das narinas o nauseabundo odor que o impregnava. Não teve o resultado esperado, mesmo depois da longa ducha. Foi para cama e tirou o bloco de dentro da calça. Pela debilidade da letra do Dino, sabia que ele estava muito mal quando resolveu escrever aquelas anotações. Não era um relato muito grande, um pouco mais de uma página, como ele mesmo já imaginara. Dino devia estar às portas da morte quando pegou da caneta. Começou a ler as últimas palavras do amigo.

"Eu sabia que devia levar até as últimas consequências minha busca pelo autoconhecimento. Fui a muitos lugares, usei muitas substâncias, naturais ou não, e embora isso tenha me ajudado, não me trazia as respostas que eu procurava. Falei com padres, pais-de-santo, gurus e isso ainda não me havia sido suficiente. Busquei da ciência ao misticismo e nada. Aprendi várias verdades, sobre o mundo e sobre os homens, mas elas não eram a minha verdade.

Tive um vislumbre do que poderia ser a resposta para o que eu procurava quando encontrei um documento escrito de uma tribo latina muito antiga. O documento trazia uma receita para uma poção que, diziam os relatos, tinha poderes mágicos. Quando consegui traduzir todos os ingredientes dessa beberagem, resolvi fazer o que seria minha última viagem. Consegui cada erva, cada extrato vegetal, cada elemento da receita no meio da floresta equatorial, entre o Peru e a Bolívia. A promessa para quem bebesse da poção era a de que a verdade sobra a sua natureza passaria a estar em cada fibra do seu corpo, tornando a pessoa finalmente plena.

Fiz a poção e ela teve um efeito alucinógeno sobre mim. O importante foi que finalmente eu descobri, no meio da minha viagem interior, o que fazer. Eu já sabia como absorver toda a "verdade sobre a minha natureza". Sabia exatamente como aproveitar esse conhecimento, que realmente inundava, fisicamente, todo meu corpo. E é fisicamente que devo saborear essa verdade.

Sabendo o que devia fazer, comecei a me preparar. Para evitar a dor que o processo causaria, bastou apenas preparar uma boa quantidade da poção. Além de alucinógena, a infusão era um excelente analgésico. Os procedimentos para estancar uma hemorragia eu já conhecia desde a faculdade. Aliás, os anos na escola de medicina também me foram úteis para obter as ferramentas necessárias para o que eu pretendia. Para evitar que sujasse completamente minha casa, faria a operação na banheira. Esse lugar seria ideal também por ter facilmente, água corrente...
"

Sandro não queria acreditar no que estava lendo. Seria loucura demais, até mesmo para um Dino sob efeito de drogas. Ele, que achava que nada poderia ser pior que a câmara mortuária onde encontrou o amigo, via, horrorizado, que aquilo era apenas o fim de um ritual macabro. A visão do Sandro começou a turvar, conforme ia avançando sua leitura. Ele não conseguia mais ler coerentemente, e ia pulando algumas partes, contra sua vontade.

"...depois de cortar minha perna na altura do joelho e de fazer a completa assepsia do corte, separei minuciosamente toda a carne dos ossos. Essa seria a melhor forma para..."

Sandro não queria mais ler o relato, mas não conseguia parar. O horror que se apossou dele era mais fraco que a mórbida curiosidade. Quase no fim da última página, quase não se conseguia mais entender a letra do Dino, tão fraco era seu traço. Ao chegar no fim do escrito, que não terminava com um ponto final, mas sim com a palavra "fraco" sem a última sílaba, Sandro jogou longe o bloco e deitou sua cabeça no travesseiro, não acreditando no que acabara de ler. Dormiu, mais pelo choque que pelo cansaço.

Ficara desacordado quase um dia inteiro. Acordou com batidas na sua porta. Era Nicola, um amigo comum dele e do Dino. Ele entrou esbaforido pela sala, visivelmente tenso.

- Sandro...Você já soube? O Dino...
- Sei...Eu encontrei o corpo - respondeu Sandro, apático.
- Foi você? A polícia não informou isso pra gente. Isso tudo é horrível! Fizeram a autópsia no Dino. Você não vai acreditar o que encontraram no seu estômago...
- Eu sei o que foi, Nicola...Eu sei....

28.6.03

Sobre o fogo extinto


Eu queria ter um amor calmo, sem as exigências emocionais que as paixões tórridas trazem, sem os "direitos & deveres" dos relacionamentos passionais, sem o desespero que a ausência causa. Mas me foi impossível. Agora estou morto. Irremediavelmente.

Você se foi. E nosso amor flamejante se extinguiu, para você. O amor é máquina que precisa de combustível para sua fornalha, ou ele se apaga. Em algum momento, você acordou e não viu mais as achas de lenha que alimentavam nossa paixão. Assim que você partiu, me deixou aqui, mero amontoado de cinzas.

Agora eu vivo procurando pelos sinais imperceptíveis da nossa antiga fagulha, catando suas gimbas de cigarro em cinzeiros esquecidos, fazendo de tudo por uma só gota de saliva que tenha saído dos seus lábios. Mas não resta nada. Nem o pó das coisas esturricadas.

Nem o calor das brasas adormecidas.

Agora que o fogo se apagou, não tive nem o privilégio da quietude dos cremados ou a tepidez da paz interior. Apenas troquei a fogueira da paixão pelo inferno da saudade.

26.6.03

O Chute


Eu chutei essa cidade. Chutei-lhe a boca cheia de dentes perfeitos, chutei seus lábios famosos, deformando-os, imperceptivelmente é verdade, mas a deformidade que lhe deixo é perene.

Assim como sua marca, em mim, é eterna. A cidade me socou o estômago com toda sua força e vigor. Meu chute foi meramente uma reação à sua violência explícita, sua voracidade implacável. O vomito provocado por tão forte golpe deixou exposto o que havia de pior em mim; o que teve de revelador teve de purificante.

Parto agora da cidade e saio agredindo-a. Não há ressentimentos, contudo. Aprendemos sempre, seja da forma mais sutil ou da mais contundente. O chute que desferi em sua face foi por gratidão.

24.6.03

O dia seguinte


Acordei e o dia
Já era dia
Como todos os dias
Acordei e a vida
Já estava vivida
À revelia
Acordei e só havia
Uma medida
Sorri pro dia
E cortei meus pulsos com doce
ironia

23.6.03

O Egoísta


Nicanor era o sujeito mais egoísta da turma. O caso dele nem era de sempre pensar primeiro nele. Ele só pensava nele. As outras pessoas não tinham a menor importância. Eram meros coadjuvantes, em um mundo em que a única coisa que tinha relevância era o seu próprio umbigo.

– Nicanor, Nicanor...Deixa de ser assim! Quase ninguém mais liga pra você, vai acabar ficando sem amigos – disse certo dia Deodato, um dos poucos que ainda gostavam dele.
– Deodato, amigo meu é dinheiro no bolso! Tô nem aí. Não dependo deles pra nada.
– Nicanor...Todo mundo precisa de amizades. Nenhum homem é uma ilha. Esse seu egoísmo ainda vai te trazer problemas.
– Eu não sou egoísta, Deodato. Eu apenas tenho como prioridade tomar conta dos meus assuntos. E além do mais, por que eu tenho que me preocupar com os outros? Os outros não podem se preocupar com eles mesmos? Eu já tenho muito trabalho cuidando de mim.
– Pô...aí você ainda tá parecendo preguiçoso, além de egoísta.
– Deodato, não encha meu saco!
– Tá bom, tá bom, sem estresse. Mas você não conhece aquela lenda oriental sobre o céu e o inferno? Segundo essa lenda, o céu e o inferno são lugares idênticos. As almas ficam todas em uma cela gigantesca, completamente gradeada. A única coisa que serve de alimento para essas almas é uma montanha de arroz que fica na frente da grande cela. Todo esse arroz fica fora do alcance das almas, mas o criador deu a todas elas palitos, desses de comida japonesa, com os quais eles conseguiam alcançar a comida. E é aí que vem a diferença entre o paraíso e a expiação eternos. No inferno, cada alma tenta pegar os grãos de arroz e colocá-los na própria boca. Mas como os palitos são muito longos, eles não conseguem chegar perto o bastante para comê-los. Essas almas viverão o resto da eternidade com fome. No céu, ao contrário, cada alma que pega seu grão de arroz dá sua porção de comida à alma do seu lado, e assim todos comem e vivem felizes.
– Que merda de história! O que significa e em que se aplica à nossa conversa?
– Não seja burro, Nicanor! Ajudar os outros é vital para uma vida melhor, para quem é ajudado e para quem ajuda. Sozinho, você é fraco. Num time, você é forte.
– Pra começar, meu time sou eu e ponto. Além do mais, detesto arroz puro e preferiria ficar com fome pelo resto da eternidade a me ater a essa dieta ridícula. E outra coisa: se o céu é essa mixórdia de ficar preso passando comida pra boca dos outros pra todo o sempre, dispenso solenemente. Que paraíso mais sem graça!
– Porra, Nicanor, você não entende nada mesmo...

Pois foi passando o tempo, Nicanor ficando cada vez mais isolado e o que é pior, mais feliz. Realmente não sentia falta de companhia. Ele se bastava. E com isso ele foi vendo seu já restrito círculo de amizades definhar até não sobrar mais ninguém. Nem mesmo o Deodato. Seu isolamento, com o passar dos anos, foi mudando seu comportamento, naturalmente. Como não havia pessoa que pudesse avisá-lo da sua alteração, a mudança era imperceptível para ele. Tinha adquirido ojeriza ao desprendimento humano. Qualquer demonstração da fraternidade entre as pessoas o encolerizava. Para ele, toda forma de boa ação tinha por traz alguma má intenção camuflada. Ele tinha se tornado um sociopata em potencial. E para ele, tudo estava normal, se achava até mais lúcido do que nunca. Ele nunca iria imaginar que espécie de problemas essa atitude lhe causaria.

Caminhava Nicanor pela praia num dia chuvoso. Andava rápido, para evitar os pedintes, aos quais tinha particular aversão. Apesar de bonitas, o calçamento em pedras portuguesas das praias cariocas não são muito práticas, e úmidas, se tornam escorregadias. Ao avistar um grupo potencial de crianças que iriam lhe abordar pedindo esmolas, abaixou a cabeça e acelerou o passo. Foi seu erro. As pedras limosas o fizeram escorregar, deixando-o no chão. O que mais irritou Nicanor não foi a queda em si, nem o momento constrangedor por que passara – ele não dava a mínima para opinião alheia – mas sim a pronta ajuda que um rapaz que fazia seu cooper lhe ofereceu. Ao ver Nicanor no chão, a primeira ação do rapaz foi segurar-lhe o braço, ajudando-o a levantar-se. Isso enfureceu sobremaneira Nicanor, que com um safanão se livrou da mão amiga.

– Me largue, moleque! Não preciso da sua ajuda!
– Calma, senhor...Eu só queria ajudá-lo...
– Eu não pedi sua ajuda...

Ao falar isso, Nicanor deu um safanão no rapaz, afastando-o. O garoto caiu, incrédulo, no meio da pequena aglomeração que já se formava. Essa atitude do Nicanor enfureceu os curiosos, que não entenderam sua reação desbaratada.

– Ei!!! O menino só queria ajudar o senhor! Não precisava fazer isso com ele!!! – reclamou uma senhora que acompanhava a cena.
– A senhora fique quieta, ninguém pediu sua opinião!
– O senhor devia ter mais educação! Desrespeitar assim uma senhora pode ser prejudicial ao senhor.

Quem havia dito isso era um homem forte, com quase dois metros de altura. Nicanor já estava completamente descontrolado e, como também era um sujeito com uma boa constituição atlética, não se amedrontou. Deu uma resposta atravessada ao homem forte, que de pronto partiu para um tipo de agressão menos verbal. Os curiosos se afastaram diante das cenas de pancadaria, mas, para surpresa de todos, Nicanor começava a levar a melhor na briga, causando graves lesões ao seu oponente.

Vendo seu defensor apanhando, a senhora que foi ofendida por Nicanor resolveu ajudar, acertando lhe uma bela guardachuvada na cabeça. Nicanor, colérico, acertou um murro no rosto da senhora, que caiu desmaiada no chão. Esse foi o sinal para que os outros curiosos também tomassem partido na confusão, e logicamente não do lado do contumaz egoísta. O rapaz que o ajudou a levantar lhe deu uma rasteira por trás, levando-o ao chão. Caindo de cabeça, Nicanor sentiu que tinha um talho na fronte, que pro seu azar, vertia sangue em abundância. Ele ainda tentou resistir, mas ao vê-lo no chão, o grupo de pessoas o atacou sem piedade, e em pouco tempo ele estava inconsciente, devido à violência dos golpes que sofrera.

A ironia da coisa é que, apesar de ser um ato de vandalismo e brutalidade, Nicanor acabou morrendo por linchamento, a forma menos egoísta de ferir uma pessoa.

16.6.03

Açúcar queimado


Estava prestes a entrar naquela fase da saudade onde até os defeitos da pessoa distante fazem falta. Outro dia desses se pegou com o gosto da calda do pudim de leite que ela fazia. E olha que ela invariavelmente errava e o sabor de açúcar um pouco queimado sempre predominava.

Foi ela quem quis terminar, ele não iria correr mais atrás e estava tudo encerrado, ponto. Mas ali, ouvindo o cd do Sinatra que compraram juntos, era difícil não lembrar dela e de suas manias. Como querer dançar sempre que ele colocava o “ol' blue eyes” no cd player. E o jeito engraçado como ela conduzia a dança, porque ele sempre foi uma nulidade como pé-de-valsa.

A saudade é uma merda!”, pensou nessa hora.

Ele nem sabia o que era pior: se era a saudade em si ou o fato de um cara racional como ele sentir falta de coisas que o incomodavam de forma absoluta. Seu ciúme exagerado, que passava em muito o limite em que ele ficaria lisonjeado ou a irritação provocado pela seu perfeccionismo patológico. Tiveram brigas homéricas por conta disso. E agora ele, um sujeito calmo, totalmente avesso às brigas e discussões inúteis, começava a sentir falta até dos arranca-rabos que tinha com ela.

Viu que sua situação estava ficando insustentável quando mesmo as lembranças das diferenças de gênio entre os dois não eram o bastante para fazer ver que a separação era o melhor para ambos. Próximo do fim, eles já nem conversavam, viviam se falando aos berros. Seguirem caminhos diferentes era o mais correto, todos seriam mais felizes e ainda poderiam manter o pouco de respeito que um nutria pelo outro. Ele não era um desses caras guiados pela paixão. Não que fosse orgulhoso. Só achava que se anular como pessoa por causa de um relacionamento não era uma opção viável. Não acreditava que se podia renunciar a tudo pelo amor. Esse tipo de coisa só acontece em músicas bregas e filmes melados.

Então por que diabos ele não parava de pensar nela? Por que cogitava – loucura! – ligar para ela?

Largou o Sinatra no meio de “Nevertheless” e foi até a cozinha comer algo, mais para espairecer que pela fome. Abriu a geladeira e viu lá, ainda intacto, o pudim de leite feito pela sua mãe, que por pena do filhinho voltou a cozinhar para ele. Ele resplandecia, tinha a textura e as cores exatas, como numa foto de mostruário. Tirou uma fatia e comeu um pedaço. Abandonou o pudim na primeira colherada. Estava perfeito. Perfeito demais.

13.6.03

Inseparáveis

Depois de que podia se lembrar, Esaú sempre detestou seu irmão, Jacó. Queria, se possível, ficar longe um bom tempo. Infelizmente para ambos – para ambos mesmo porque Esaú fazia da vida de Jacó um inferno – era impossível a separação definitiva: eles eram gêmeos siameses.

Lógico que a razão estava com Esaú. Pelo menos ele pensava assim. Se achava desfavorecido em relação ao irmão. Era até engraçado pensar que seus pais, Esdras e Josefina, tivessem um preferido entre eles. Mesmo que isso fosse possível, como dar algo a um sem que outro soubesse e pedisse o mesmo? Para o azar de Jacó, Esaú nunca primou pelo bom senso.

Jacó imaginava que tudo havia começado quando eles foram manchete no jornal da pequena cidade em que nasceram. Na foto, recém-nascidos ainda, Jacó saíra em destaque, pois estava acordado. Esaú estava dormindo e parcialmente coberto. Sempre perguntavam quem era o que estava acordado, diziam que parecia ser o mais esperto. A matéria, emoldurada e em lugar de destaque na parede da sala, era odienta para Esaú. Se ele tivesse a chance, já teria estilhaçado o quadro há muito tempo.

Esaú fazia de tudo para apoquentar Jacó. Dormia depois dele, para esbofetear-lhe a cara, destratava as visitas que o elogiavam, começou a beber e fumar escondido só porque fazia mal ao irmão. Jacó não contava nada aos seus pais, apesar do tormento que sua vida se tornou. Na verdade, tinha medo do Esaú. Achava-o louco, temia o que ele podia fazer com ambos.

E parece que, algum tempo depois, Esaú realmente enlouqueceu. Os tormentos que aplicava a Jacó estavam recrudescendo, se tornando mais cruéis. Para afligir o irmão, Esaú não estava mais se preocupando mais nem com sua própria integridade física e moral. Tomava drogas que deixavam os dois alucinados, rasgava a parte das roupas que cabiam a Jacó, deixando as suas intactas. E Jacó persistia em seu silêncio. Era tão absurdo o estado em que andavam que seus pais começaram a pensar que os dois estavam enlouquecendo. Nunca imaginariam que Jacó não pudesse fazer parte das insanidades que faziam. Sempre acharam Jacó ajuizado. Era impossível que ele se permitisse a tamanho descalabro sem sua conivência.

Um dia, Esdras e Josefina esperaram Esaú dormir e foram conversar com Jacó. Queriam saber o que estava acontecendo, se eles podiam ajudar de alguma forma, mesmo que fosse buscando um auxílio externo. Entendiam que a vida deles não era normal, que com na sua condição aberrante, eles eram mais sujeitos a sofrer danos psicológicos. Compreendiam o provável desespero que um rapaz da idade dele devia estar passando por não ter uma vida normal. E se ele, Jacó, que era o arrimo moral dos amalgamados irmãos estava tendo problemas, isso era muito preocupante. Seus pais perguntaram se eles podiam fazer algo para acabar com a aflição dos dois. Jacó permaneceu em silêncio durante alguns momentos e depois perguntou fez apenas uma pergunta.

– Existe a possibilidade de uma intervenção cirúrgica?
– Não, filho...Infelizmente não. Vocês dividem órgãos vitais.
– Entendo.

Depois disso, Jacó virou o rosto e dormiu, a cabeça no ombro que dividia com seu irmão.

Nos dias seguintes, Esaú continuou com sua série de martírios ao irmão. Mas ele notou uma diferença no comportamento de Jacó. Agora ele nem reclamava. Estava alheio a tudo, não se importava com nada que Esaú fizesse. Inclusive não disse palavra quando viu que o irmão estava pegando a seringa, se preparando para mais uma dose de heroína, seu mais novo vício. Esaú achou estranho. As recentes doses da droga os deixavam letárgicos, coisa que Jacó detestava. O mais incrível foi que ele até ajudou a amarrar a borracha que vedaria a corrente sanguínea de ambos. Esaú pensou que finalmente havia conseguido deixar Jacó viciado em algo, havia conspurcado seu virtuoso irmão, de forma indelével.

A onda dessa dose consentida foi a melhor que Esaú já teve. Ironicamente, nunca se sentiu tão próximo do irmão, os dois mergulhados num mar de torpor calmo, repleto de sonhos de liberdade para ambos. A sensação de que estava se separando do irmão–fardo era tão intensa que poderia se dizer que era real, física. Até a dor que de repente começou a fazer parte desse ritual lisérgico de libertação era bem vinda. Se fosse para ser uma pessoa só, valia o esforço.


Josefina acordou no dia seguinte e foi olhar os filhos. Deparou-se com uma cena dantesca. Seus dois filhos, dois como nunca foram antes, mergulhados numa poça de sangue, meio divididos, meio unidos. Um machado, fincado na altura da barriga de ambos, os havia quase separado por inteiro.

12.6.03

Istas


– Bom dia.
– Por que?
– Ahn?
– É...por que “bom dia?
– Como assim, “por que bom dia?
– Qual é o seu problema? Foi uma pergunta simples. Me dê uma razão pra esse ser um bom dia.
– Bom...O dia está bonito....
– Fraca essa. Além de beleza ser um conceito subjetivo, a “beleza” do dia não altera em nada a situação do mundo. É por essas e outras que eu nunca digo “bom dia”.
– Ah, já sei. Você é existencialista.
– Não. Sou realista.
– Sei não... Tá mais com cara de fatalista.
– E não é a melhor forma de ver a vida?
– Não. Eu prefiro ser otimista....
– Nos dias de hoje, ser um otimista é o mesmo que ser um entreguista. Não converso com ninguém que não seja no mínimo um reformista.
– Concordo que a situação mundial não é das melhores. Mas não adianta ter uma atitude derrotista.
– Derrotista não! Acredito numa melhora, mas é preciso fazer algo. Lógico que para isso é necessário que surja alguém que faça uma boa análise da nossa realidade...
– E quem seria esse analista?
– Não sou futurista! Como vou saber quem vai ser esse cara?
– Acho que as coisas estão melhorando, sinceramente. Confio no governo petista.
– Mesmo? Pensei que, com esse papo de otimismo, você fosse mais um neo-liberal.
– Nada...sou é socialista.
– Pois não parece...Hoje estou com tendências anarquistas, pra te ser sincero. Já fui comunista leninista–trotkista, mas agora são outros tempos.
– Com certeza...e o comunismo mudou muito, não? Desde o regime do Stalin não dá pra confiar nos vermelhinhos...Ele era um fascista.
– Isso é. Pode se ser comunista, socialista ou mesmo anarquista....mas sempre mantendo o ideal democrata.
– Democrata?
– É.
– Ah...pode ser...Mas acho esse conceito muito grego demais. É tão clacissista!