Samara vivia em função de Nicolau. Passava dias a fio ao pé da sua cama, esperando que Nicolau acordasse do seu longo sono. Desde que Nicolau adormecera, Samara mudou radicalmente sua vida, largando seus os estudos, seu trabalho, sua vida. Seus muitos planos de gente normal haviam sido abdicados antes: filhos, carro, uma casa melhor. O sono de Nicolau adormecera Samara de uma forma mais cruel. Tinha apenas 24 anos.
Samara e Nicolau viviam da parca pensão dele e da caridade de parentes e amigos. Não precisavam de muito. Samara tinha umas três peças de roupa e Nicolau duas, que eram trocadas uma vez por semana. O contato de Samara com o mundo era mínimo. Se resumia a encontrar alguém para tomar conta do marido enquanto ia à mercearia para a compra dos ralos mantimentos que precisavam, ao banco, uma vez por mês, para retirar a pensão do marido e à missa de domingo, onde rezava para que Nicolau despertasse. Samara já se desacostumara com as pessoas de um modo geral. Detestava ser constantemente alvo de comentários nas ruas. E além do mais, tinha mesmo que ficar ao lado de Nicolau, para beijá-lo assim que acordasse.
Samara e Nicolau moravam numa casa modesta, com sala, quarto e uma pequena cozinha. Poderia ser ainda menor, visto que o único cômodo realmente importante era o quarto. Era lá que o casal vivia suas esperanças e suas decepções. Viviam sim, porque Samara vivia por Nicolau, enquanto ele dormia. Na sua cabeça, planejava o que fariam com o resto de suas vidas.
As vezes, Nicolau parecia fazer algum movimento. Quando acontecia, Samara se levantava, olhos já marejados de sonhos, e se ajoelhava na sua frente. Pegava a mão de Nicolau e apertava com força, como se pudesse passar sua energia para o marido, fazendo-o abrir os olhos. Mas ele nunca acordava. As primeiras vezes em que isso ocorreu, ela sentava-se, resignada, e continuava esperando. Com o tempo, ela começou a ficar irritada e depois colérica com isso. Nessas horas ela pensava na injustiça do destino, não só com ela, que sabia não fazer mais que sua obrigação de esposa, mas com o marido. Chegava, mesmo sendo católica fervorosa, a duvidar dos critérios ou da própria existência de Deus. O arrependimento da sua ingratidão com o Criador vinha depois em forma de lágrimas. E quando Samara chorava era daqueles choros copiosos, que duravam dias.
Outras vezes, Nicolau nem precisava mover -– ou parecer que moveu – uma palha para Samara chorar. Nem ela notava quando começava o pranto, aliás. Podia estar lendo uma revista qualquer ao lado do leito, ou vendo um programa na pequena TV que ficava na mesinha do quarto. Ela só notava que estava chorando quando sentia o gosto salgado das lágrimas na boca. Samara não tentava impedir esse choro quando vinha, nem tentava entendê-lo. O choro, de vez em quando, a aliviava, de nem sabia o que.
Saber, sabia, mas não queria pensar nisso. Sabia que perder sua vida aos 24 anos era injusto, que não viajar, não estudar, não amar como todas da sua idade fazem normalmente era a maior das injustiças. Mas sabia também que Nicolau não escolhera adormecer, que era igualmente injusto para ele dormir sabendo que tinha uma mulher que o amava e que jurara permanecer ao seu lado na saúde e na doença e acordar abandonado, num hospital qualquer. Sabia disso tudo. Mas assim como Nicolau não escolhera dormir, Samara não havia escolhido essa vida. Eram muitas dúvidas. Samara preferia não pensar nisso, para não enlouquecer.
O tempo foi passando, Nicolau dormia e Samara velava seu sono. Nenhuma alteração na sobrevivência dos dois, salvo a lenta decomposição dos objetos. Suas peças de roupa ainda eram as mesmas, mais rotas, a cama de Nicolau estava mais funda, achatada sob o peso imóvel dele. Mas o que havia envelhecido mais era a própria Samara. A coluna já curvada de tanto estar sentada ao lado de Nicolau, a vista cansada de pouco ver a claridade do dia, a pele esbranquiçada, as rugas e sulcos no rosto, como valetas para as constantes lágrimas. Ninguém lhe daria menos de 40 anos, apesar de nem aos 30 haver chegado. Por outro lado, Nicolau parecia o mesmo. Tirando a alvura da pele, ele parecia até mais saudável que antes de cair no sono. Antes de começar a dormir, Nicolau exibia sempre o rosto extenuado do trabalho árduo e mal remunerado. Agora, pelo menos, e não poderia deixar de ser, parecia descansado. Samara o alimentava bem, fazia exercícios para suas juntas, e cuidava como podia de suas vestimentas, que eram bem mais apresentáveis que as suas. Ao desatento que olhasse o casal, bem poderia lhe parecer mãe e filho.
Isso não incomodava Samara. Até porque, seu contato com quem pudesse lhe avisar sobre essa situação era agora raríssimo. Desistira de ir à missa. Intimamente, desistira de Deus, só que agora não mais se arrependia. Ela não O maldizia ou coisa que o valha. Depois de um tempo, Samara simplesmente se esquecera Dele, ou melhor, esquecera o que Ele era. Ao banco parou de ir, depois que um sobrinho começou a trabalhar na mercearia. O moleque, já tendo idade para fazer as retiradas da pensão, fazia isso. E já deixava toda a quantia na venda, em troca dos víveres que mantinham a ela e a Nicolau. Ele mesmo levava as compras para tia, e deixava as encomendas na cozinha. Fazia meses que não via a Tia Samara. O resto família já a abandonara antes disso, depois das insistentes tentativas de tirá-la daquele claustro imposto por ela mesma. Aos convites para sair ou para se divertir um pouco ou para pegar um pouco de sol, Samara apenas respondia:
– Tenho que estar do lado do meu marido quando ele acordar. Tenho que beiijar meu Nicolau quando ele acordar.
A paciência da família chegou ao seu limite. Se Samara, na flor da idade, quisesse isso para ela, não poderiam fazer nada. E não fizeram mais nada.
Samara não percebia, mas era tão dependente de Nicolau quanto ele dela. Até mais, visto que ele não podia fazer escolhas, mas Samara sim. Dependente porque o que ela sentia por Nicolau não era mais amor. Tinha um obsessão por ele. Ou melhor, pelo seu despertar. Samara não amava mais Nicolau. Ela tinha apenas a certeza que o homem que ela escolheu para passar o resto de sua vida, o homem que ela conhecia tão bem, que sabia ser forte como nenhum outro, não ficaria entrevado para sempre numa cama. E ela se agarrou a essa idéia como sua tábua de salvação. Samara não percebeu que ela mesmo havia se entrevado, numa cadeira, ao pé da cama de Nicolau. Sua tábua de salvação se transformou em sua âncora.
Samara não sabia mais o que faria se Nicolau acordasse. Talvez, se ela pusesse reparo no que sua figura se transformou, soubesse exatamente o que fazer. Ela não era mais a Samara com que Nicolau se casara. E não era a sua ruína física que contava. Era sua decadência moral, sua fraqueza como pessoa, sua atitude covarde em não viver a sua vida sem Nicolau. Samara não tinha mais o frescor no olhar, o brilho no sorriso. Era um arremedo do que fora. Sua devoção desmedida havia passado, há muito, dos limites. Ela não poderia abdicar de viver por Nicolau. Se ele acordasse agora, ele ficaria mortificado com a visão da mulher que amava. E se culparia por isso, e a chamaria de orgulhosa e egoísta. Porque só o orgulho faria alguém carregar essa cruz de esposa–mártir a ponto de se destruir como pessoa e só o egoísmo explicaria o fato de Samara não imaginar que Nicolau nunca se perdoaria de ter feito isso a ela. Mas Samara não pensava nisso. Samara não pensava mais em nada.
Até que um dia, Nicolau acordou. Samara nem percebeu os primeiros movimentos dele, tão lentos foram. Foi o grunhido de Nicolau que tirou Samara do seu torpor. A principio ela pensou que seus ouvidos a enganavam, se recusando a acreditar que Nicolau tenha tido alguma reação. Mas olhando para aquele rosto já decorado em cada um de seus poros na mente, ela via, sim, que se mexia. Podia ver com que dificuldade Nicolau tentava abrir os olhos, e não conseguia. A própria voz, depois de anos sem serventia, parava na garganta, estrangulando o que poderia ser um pensamento. Samara não acreditava no que via, não esperava por isso e não tinha ideia de como agir. Ela pegou a mão de Nicolau, e sentiu, depois de tanto tempo, vida. A vida voltava a Nicolau, e Samara, que esperara tanto por isso, não sabia o que fazer. Diferentemente de antigamente, Samara não tinha vontade de chorar. Nem de rir. Samara só sabia, agora, que sua vida teria uma grande mudança. Não sabia se para melhor ou para pior.
Depois de alguns minutos de muda agonia, Nicolau conseguiu abrir os olhos. Ainda não falava, mas com os olhos entreabertos, reconheceu Samara. Tentava balbuciar algo, mas sua voz débil só emitia barulhos incompreensíveis. Samara chegou perto do rosto do homem que conhecia tão bem e tentou ouvir o que ele dizia. De nada adiantou, não havia o que entender naquela tentativa de fala. Quando ela se afastou um pouco, Nicolau conseguiu dizer algo – Samara! – desmaiando com o esforço logo em seguida. Samara caiu prostrada em sua cadeira, não tendo certeza se o que acontecera era real ou um sonho. Será que Nicolau voltara de vez? Será que agora ela poderia beijar o marido que ama – ama? – tanto, que zelou por todo esse tempo? Será que ele vai ser grato por sua abnegação, vai reconhecer o sacrifício dela por ele? Será que agora, depois de tanto tempo, Samara poderá voltar a viver?
Fazia anos que Samara não sabia o que era ser feliz. E ela estava agora. Se levantou de pronto e foi ao banheiro. Tinha que estar limpa para Nicolau, tinha que estar bonita para o homem que, sim, ama. Ela chega ao banheiro, abre o armário e repara que maquiagem, coisa que ela já pouco usava antes de Nicolau adormecer, era algo que não tinha há muito. Fechou o armário e se olhou no espelho, procurando ver o que poderia fazer por ela mesma, depois de tanto tempo. Então ela viu seu reflexo ao mesmo tempo que pensava em si própria pela primeira vez em anos. E Samara não acreditou no que viu. Aquela no espelho não era ela, não podia ser. Aquele rosto encarquilhado, aqueles olhos vazios, aquela boca sem vida. Para a morte, não existe maquiagem, não existe disfarce. Porque foi isso mesmo que acontecera. Ela, Samara, perdera sua vida em algum momento, e não se deu conta disso. Estava morta, mais morta até do que Nicolau jamais esteve. O que poderia essa velha fazer por ele, um homem que acabara de acordar de uma longa noite de sono, mais ainda assim apenas uma noite, que ainda tem as mesmas esperanças e sonhos de anos atrás? Para Nicolau, a vida passou num piscar de olhos; para Samara, a morte chegou aos poucos, dia após dia, sugando sua vida devagar.
Não havia nada que pudesse oferecer ao seu marido. Samara já sabia o que fazer, apesar de saber o que isso significava. Para ela, não havia mais salvação. Para Nicolau, ainda restava uma opção. Samara foi até a cozinha e preparou a última refeição que daria ao marido adormecido. Fez com todo esmero a sopa preferida de Nicolau, uma sopa de feijão que ele adorava comer depois do trabalho. Procurou, no meio das compras trazidas pelo sobrinho, o remédio que havia encomendado para os ratos que estavam rondando sua cozinha. Pegou um pouco do pó, colocou na sopa de Nicolau e levou para sala. Ele estava dormindo, mas diferente dos anos de sono silencioso, ressonava. Samara sentou-se no leito que vigiou por tanto tempo, se chegou a seu marido, ajeitando a cabeça de Nicolau no seu colo, e carinhosamente, lhe deu uma colherada da sopa. E depois outra e outra e mais uma. Ela sente o corpo de Nicolau se contorcer, de leve no começo, depois mais fortemente. Nicolau engasga, lutando desesperadamente para respirar. Com o esforço, seu olhos se abrem, agora fora de sua órbita normal, os olhos de um condenado. Samara vê mais uma vez o rosto que tanto amou um dia, olha direto nos seus olhos, sente a força da mão de Nicolau – mãos que já a apertaram muitas vezes antes, há uma eternidade atrás – mais uma última vez, e pela primeira vez em muito tempo, sente o quanto o ama ou melhor, amou. E chora mais uma vez. Mansamente.
Nicolau pendia em seu colo quando Samara deixou o prato ainda na metade cair ao chão. Ela se levantou, ajeitou o corpo de Nicolau na cama, colocando-o na posição em que permanecera durante muito tempo. Foi até a cozinha, pegar um pano para limpar o quarto, quando ouve seu sobrinho chamá-la, pela porta. Ele diz que estava passando e que ouviu o barulho de algo se quebrando e pergunta se não poderia ajudar em algo.
– Não, meu filho, não foi nada. Deixe que eu me viro.
– Tem certeza, tia Samara? Por que a senhora não me deixa entrar para ver o que houve?
Samara vai até a porta e abre, meio alheia à presença do sobrinho. Ele vai até o quarto e vê que tudo estava tudo normal, exceto pelo prato de feijão caído. O garoto pergunta mais uma vez se a tia não quer ajuda. Samara diz que não, pra ele não se incomodar. O cheiro de casa é de coisa velha, do mofo dos anos, quase sufoca o sobrinho de Samara. Com piedade nos olhos, ele pergunta se não seria bom a tia dar um passeio de vez em quando, pegar um sol, ver pessoas. Samara apenas responde:
– Tenho que estar do lado do meu marido quando ele acordar. Tenho que beijar meu Nicolau quando ele acordar.